Não é a Cinderela, é mesmo Cristina Kirchner, a presidente argentina que deixou de o ser quando perdeu as eleições de 22 de novembro para o conservador Mauricio Macri. Já lá vão quase 20 dias, mas a transição de poder não foi fácil e de lá para cá adensou-se a trama para decidir os moldes da cerimónia e os timings da tomada de posse. O caso foi mesmo para tribunal. E a decisão? À meia-noite de quarta-feira Kirchner deixava de ser presidente e o poder passava oficialmente para as mãos de Macri ao meio-dia desta quinta-feira, já sem a presença da antecessora, que se recusava a ser ela a passar a faixa presidencial para as mãos do novo chefe de Estado. Mas antes de chegar a meia-noite, a despedida de Kirchner teve direito a comício, gritos de apoio da multidão, confetti e uma quase transformação da Cinderela em abóbora.

Ao fim de 12 anos de mandato, a despedida da polémica presidente argentina teria de ser à sua imagem e semelhança. Num comício ao ar livre em frente ao Palácio Presidencial da Casa Rosada, em Buenos Aires, Kirchner foi recebida por milhares de apoiantes que vibravam a cada palavra. A dada altura, e com o aproximar da hora, a presidente ironizou: “Não posso falar muito porque às 24h converto-me numa abóbora”, disse, citada pelo El País, em referência à ordem judicial interposta pelo seu adversário para deixar o poder às últimas badaladas de quarta-feira. E se Kirchner recorreu à história que Disney tornou global, a multidão respondeu com futebol, adaptando um cântico de claque para insultar o sucessor Macri.

O convívio entre os dois nunca foi pacífico, menos ainda no rescaldo das eleições quando tiveram de concertar posições sobre a passagem do testemunho. É que Macri queria que o juramento da tomada de posse fosse no Congresso, conforme está escrito na Constituição, mas que o ato simbólico de receber a faixa presidencial das mãos do anterior Presidente decorresse na Casa Rosada. Já Kirchner queria que fosse tudo feito no Congresso, alegando que no seu tempo e no tempo do seu marido Néstor Kirchner não tinha sido assim. Mauricio Macri recorreu por isso à justiça, que acabaria por decidir a favor de Macri, decretando que entre a meia-noite de quarta-feira e o juramento oficial, ao meio-dia de quinta, a presidência ficaria entregue ao líder do Senado, e seria das mãos dele que o novo Presidente receberia os símbolos, na Casa Rosada.

No comício de despedida foram várias as vezes em que Kirchner disse que que se não iria estar na tomada de posse era porque o novo presidente se tinha “empenhado” em não fazer a cerimónia no Congresso, como dita a Constituição. Pelo caminho, aproveitava para atacar a justiça e o poder judicial. “Todos os argentinos estão de certa forma em liberdade condicional”, dizia, acrescentando que “violar a Constituição e pôr um Presidente por decreto não é raro nos dias de hoje”.

“Já vi muitas medidas cautelares, mas nunca na minha vida pensei que ia ver no meu país um presidente cautelar durante 12 horas”, disse, referindo-se ao facto de o presidente do Senado ter sido declarado presidente interino por 12 horas. E ainda ironizou: “A partir de agora no boletim de voto, além dos nomes dos candidatos presidenciais vão também estar os nomes dos presidentes interinos”.

No final, e soando as 12 badaladas, Kirchner despediu-se em lágrimas dos seus apoiantes, que pediram que voltasse a concorrer dentro de quatro anos. Saiu de helicóptero e ainda sobrevoou a praça em círculos entre aplausos. Ao que tudo indica, não se transformou em abóbora nem perdeu o sapato.

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