O empresário angolano acusado pelo Ministério Público (MP) de ter alegadamente corrompido o presidente e quatro funcionários do Instituto dos Registos e Notariado diz-se “inocente” e considera as notícias que relataram os factos que lhe são imputados no caso Vistos Gold como “injustas, caluniosas, falsas e desonrosas”.

Estas declarações, as primeiras de Eliseu Bumba desde que foi formalmente acusado pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) no dia 17 de novembro, fazem parte de uma carta que o gestor enviou de Luanda para Amadeu Guerra, diretor do DCIAP, oito dias depois de ter sido noticiada as conclusões do inquérito criminal – e que foi incorporada nos autos consultados pelo Observador.

Eliseu Bumba contratou também o escritório de Leonel Gaspar, advogado que defende também José Oliveira Costa nos processos do BPN, para o representar no caso dos Vistos Gold.

Recorde-se que o MP não ouviu Bumba antes de deduzir a acusação porque as suas tentativas de notificação para ouvi-lo como arguido não tiveram sucesso. Não tendo tido sucesso, e permitindo a lei essa possibilidade, acusou o empresário angolano.

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Na missiva, Eliseu Bumba, que se apresenta como empresário e como alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros com a categoria de “Ministro Conselheiro”, diz que teve conhecimento da acusação pela comunicação social, “estranhando” essa “circunstância” “sem ter sido ouvido nem constituído arguido”.

Em defesa da minha amada pátria, da minha honra e do meu bom nome, bem como dos cerca de 200 técnicos especializados angolanos e portugueses, que integram a família Merap”, Eliseu Bumba faz questão de afirmar que as notícias da comunicação social portuguesa sobre a acusação do DCIAP são “injustas, caluniosas, falsas e desonrosas”.

Bumba manifesta-se disponível para colaborar com a Justiça, prestando depoimento “com urgência” sobre “todas as questões que careçam de justificação ou de esclarecimento”.

Contudo, o gestor diz que apenas poderá colaborar a partir de Angola. Isto é, Eliseu Bumba solicita ao DCIAP que use a sua “residência em Luanda para todos os procedimentos processuais, nomeadamente para ser notificado, prestar declarações e, se julgado necessário, ser constituído arguido, de acordo com o convencionado sobre cooperação judiciária entre os estados angolano e português”.

Assim, Eliseu Bumba solicita que o DCIAP o notifique na sua morada em Luanda do despacho de encerramento de inquérito que inclui a acusação produzida, “a fim de poder exercer os seus inalienáveis direitos de defesa, constitucionalmente reconhecidos nas leis fundamentais de Angola e de Portugal”.

Significa isto que o empresário angolano não está disponível para vir a Lisboa prestar esclarecimentos.

E porquê? Apesar de ter uma empresa em Portugal, a Lusomerap, detida maioritariamente pela sociedade angolana Merap Consulting (ambas alvo de investigação no caso dos Vistos Gold), Bumba explica na sua carta que, “nesta fase da sua vida profissional”, passou “a residir em permanência em Angola, dedicando-se empresarialmente a apoiar o governo da Nação [o governo de Angola] em projetos de manifesto interesse público”.

O contrato de 300 milhões para produção de legislação

Recorde-se que a investigação do DCIAP, liderada pela procuradora Susana Figueiredo, concentrou-se em três grupos de suspeitas, no que a Eliseu Bumba diz respeito:

  1. António Figueiredo, o principal arguido do caso dos Vistos Gold, e Eliseu Bumba terão alegadamente manipulado o protocolo de cooperação na área da Justiça entre Portugal e Angola, acordando o pagamento de cerca de 1, 2 milhões de euros a Figueiredo para a revisão dos códigos dos diversos registos (civil, comercial, predial e automóvel) e do notariado de Angola. Estes factos estão na origem da imputação da alegada prática de um crime de corrupção ativa para ato ilícito por parte de Eliseu Bumba e de um alegado crime de corrupção passiva para ato ilícito contra António Figueiredo.
  2. Venda à Merap Consulting de Eliseu Bumba de aplicações informáticas que terão sido criadas pelo Instituto de Registos e Notariado – e que deveriam, segundo o MP, ter sido cedidas gratuitamente a Angola, em respeito pelos acordos de cooperação assinados.
  3. O despacho de encerramento de inquérito do DCIAP visa também, mas sem censurar criminalmente por razões de competência territorial, dois contratos estabelecidos entre entidades angolanas. Um primeiro contrato alegadamente assinado no início de 2014 entre o Ministério da Justiça de Angola e o escritório luandense ACPC – Advogados e Associados para a revisão dos diversos códigos dos registos e do notariado angolano a troco de uma quantia que o MP estipula entre os 300 e os 400 milhões de euros. E um segundo contrato entre o escritório ACPC e a Merap Consulting que remete a operacionalização das revisões dos referidos códigos para a empresa de Eliseu Bumba pelo valor de cerca de um milhão de euros.

É importante referir mais dois factos em relação a estes acordos assinados em Angola:

  • O escritório ACPC assumiu o papel de representante do Ministério de Justiça de Angola quando esse papel era anteriormente desempenhado por Eliseu Bumba
  • O escritório luandense tem como sócios principais (mas com ligação suspensa neste momento) Raul Araújo (atual juiz do Tribunal Constitucional de Angola, coordenador da Comissão de Reforma da Justiça e do Direito e ex-bastonário da Ordem dos Advogados entre 2002 e 2004), Edeltrudes Costa (atual ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República) e teve como sócio fundador Carlos Feijó, também ex-ministro de Estado e ex-chefe da Casa Civil de José Eduardo dos Santos.

Ciente da acusação que foi produzida pelo DCIAP contra si, Eliseu Bumba ignora na sua carta dirigida ao procurador-geral adjunto Amadeu Guerra tudo o que diz respeito ao triângulo Ministério da Justiça de Angola, ACPC e Merap Consulting (precisamente pelo DCIAP não ter jurisdição territorial sobre essa matéria) e concentra-se nos factos criminalmente relevantes que lhe são imputados.

Eis os seus argumentos de defesa:

a) Está em causa na acusação a “cooperação institucional entre o Ministério de Justiça (MJ) de Angola e o Ministério de Justiça (MJ) de Portugal no âmbito das relações inter-estaduais Portugal/Angola”;

b) “A referida cooperação entre estados tem visado sobremaneira a formação de quadros angolanos, reformas legislativas e assessorias técnicas e jurídicas, implementadas entre o MJ de Portugal e de Angola desde há muitos anos”;

c) Devido à “capacidade técnica detida pela Merap na área dos registos e do notariado, foram-lhe adjudicados pelo MJ de Angola diversos projetos, como aliás é prática comum da gestão estadual de Angola, entre muitos outros estados”;

d) essa adjudicação foi precedida de “concurso público concorrido por diversas empresas nacionais e internacionais” para um projeto de modernização, simplificação e informatização dos registos e notariado de Angola;

e) “no âmbito da relação triangular entre MJ de Angola e MJ de Portugal compete à Merap a realização de todas as ações relativas a formação, fornecimento de aplicações, implementação de serviços e atividades conexas”;

f) “a atividade inovadora entretanto realizada pela Merap, resultante da constante formação de jovens técnicos angolanos que adquiriram elevada competência técnica, está a dotar Angola de autonomia nesta área técnico-jurídica”.

g) “a inovadora tecnologia informática entretanto criada pela MERAP, com o apoio do MJ de Angola” é “um orgulho nacional“, foi “implementada a nível nacional” e “está em condições de poder ser disponibilizada, no âmbito da cooperação institucional interestadual, a serviços públicos de outros países, nomeadamente aos PALOP

Eliseu Bumba termina a sua carta garantindo que a “Merap continuará a desenvolver a sua atividade especializada, colaborando com o Estado angolano na medida das suas competências e capacidades técnicas”.

Julgamento à revelia?

Após a receção da carta de Eliseu Bumba, o DCIAP promoveu diligências no sentido de averiguar se seria possível notificar o empresário angolano em Portugal através de um familiar e se a morada em Luanda indicada por Bumba era de facto a sua. Leonel Gaspar, advogado do empresário angolano, levantou uma cópia da acusação mas solicitou que a notificação do gestor na sua morada em Luanda fosse operacionalizada. O que aconteceu na semana passada através do envio de uma carta rogatória para Angola.

Bumba tem agora a possibilidade contestar a acusação do MP requerendo a abertura de instrução. Se optar por não o fazer, o processo contra si passará diretamente para a fase de julgamento.

Caso persista na sua decisão de não se deslocar a Portugal, Eliseu Bumba poderá ser julgado à revelia.