Um quadro “abundante em ambiguidades”. A análise é da historiadora de arte Cornelia Lauf num texto publicado no site do Museu Guggenheim de Nova Iorque, em cuja coleção se encontra a pintura. A historiadora dá a entender que se trata de uma representação irónica e grotesca da alta sociedade em Paris, em vésperas da ascensão do nazismo. Reunida numa récita, na embaixada alemã, a elite estará sonolenta perante as movimentações políticas que vão levar Adolf Hitler ao poder em 1933. É uma das hipóteses de interpretação.

De facto, “Paris Society”, do expressionista Max Beckmann, é uma pintura estranha e desconcertante. Tem sido descrita como uma alegoria moral em que aristocratas, empresários e intelectuais convivem sem realmente comunicarem uns com os outros – como se cada um estivesse isolado e representasse uma personagem-tipo independente da realidade que os rodeia.

Max Beckmann, que não era judeu, nasceu em Leipzig em 1884, e tornou-se um dos muitos artistas perseguidos pelo nazismo – por fazer “arte degenerada”. Viveu em Berlim e Frankfurt e nesta cidade tornou-se professor do instituto de arte Städel, sendo afastado em 1933 por razões políticas.

Viveu exilado em Amesterdão, antes de se mudar para Nova Iorque, em 1947. Entre 1929 e 32 passou vários meses em Paris e daí a ligação da sua pintura à capital francesa.

1. Crítica aos incultos
Estão pelo menos 12 pessoas na sala, as mais importantes das quais podem até nem ser as de maior dimensão. Veja-se o cantor lírico, no centro, ao fundo, a debitar uma ária com visível entusiasmo. Ao lado dele está uma pianista de que também se ignora a identidade. A função deles será, pelo menos, a de espelharem uma crítica. “Ninguém presta atenção à performance, talvez o pintor tenha querido ridicularizar uma sociedade com pretensões culturais mas que ignora a verdadeira arte”, lê-se no livro Max Beckmann (1991), de Stephan Lackner, historiador e amigo do pintor.

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2. Tédio moral
Entre as 12 personagens, encontram-se cinco mulheres, todas por nomear. A mulher ao centro, obviamente enfadada e de braços cruzados, em desistência, é o símbolo do ambiente na composição: o tédio é moral, não só anímico, e servirá de agoiro para o que acontece quando as pessoas se alienam da realidade. “Uma série de desenhos mostra que o pintor concebeu a composição logo em 1925”, escreve Cornelia Lauf no site do Guggenheim. “Em 1931, quando a completou, acumulavam-se na Alemanha acusações e calúnias contra ele, um livre-pensador, pelo que o ambiente sombrio de ‘Paris Society’ parece refletir um presságio.” Refere-se, claro, à ascensão de Hitler na Alemanha. Não por acaso, Beckmann é considerado um “poeta da catástrofe”.

3. Aristocratas, empresários e intelectuais
Nesta récita parisiense, as personagens correspondem quase todas a figuras reais. O exercício de as descobrir foi feito, segundo Cornelia Lauf, pela viúva do pintor, Mathilde Beckmann. Assim, temos o príncipe Karl Anton Rohan (amigo de Beckmann, figura central); o banqueiro de Frankfurt L. Albert Hahn (no extremo direito); o musicólogo Paul Hirsch (sentado à esquerda); o embaixador alemão Leopold von Hoesch (canto inferior direito, com a mão nas fontes, ou estará a tapar os ouvidos?), o estilista francês Paul Poiret (no extremo esquerdo) e o ministro francês das Finanças Anatole de Monzie (à esquerda, em baixo, a olhar para um mulher). Porque estão juntos na cena? Cornelia Lauf faz a pergunta, mas não tem a resposta. “Matéria que se presta a interpretações”, resume. Paul Poiret é uma figura peculiar de entre todas, também ele símbolo de decadência e ruína. Foi um dos mais afamados designers franceses do princípio do século XX, até ter sido chamado a combater na I Guerra Mundial. O afastamento terá afundado os negócios.

4. Smoking na embaixada
As paredes rosadas da composição indicam que o retrato tem por cenário a embaixada alemã em Paris, o Hôtel de Beauharnais, diz o livro Of ‘Truths Impossible to Put in Words’: Max Beckmann Contextualized (2009). Neste contexto, ganha importância a roupa dos convivas. Segundo Stephan Lackner, o smoking dos homens da classe alta, hábito quase universal à época, raramente aparece na pintura, pelo que o quadro de Beckmann se apresenta como raridade. Ele “pode ter sido o único pintor que representou o smoking de forma tão patente”, escreveu Stephan Lackner. Refira-se, a propósito, que num dos seus muitos autorretratos, Beckmann aparece de smoking, em 1927.

Título: “Paris Society (Gesellschaft Paris)”
Autor: Max Beckmann (1884-1950)
Data: 1931
Técnica: Óleo sobre tela
Dimensões (cm): 109,2 x 175,6
Coleção: Museu Guggenheim, Nova Iorque