761 publicações para 4.831 seguidores verem. Aos 23 anos, Catarina Coelho dificilmente passa um dia sem ir ao Instagram, rede social onde vai publicando imagens referentes às peripécias do dia-a-dia — entre as fotografias dos snacks mais e menos saudáveis estão várias selfies, umas focadas no rosto, outras de corpo inteiro. “As selfies são uma maneira de tirar fotos ao look do dia, sendo que é possível escolher os ângulos e a posição que mais nos favorece”, conta ao Observador, ao mesmo tempo que garante que usá-las é uma maneira de “realçar a parte que para nós é mais importante e que queremos que os outros vejam”.

A jovem licenciada em ciências da comunicação admite que as selfies publicadas nas redes sociais quase nunca correspondem às primeiras fotografias que tira. O cuidado em parecer bem fá-la premir no botão da câmara do smartphone as vezes que forem precisas até ficar satisfeita com o resultado final. A isso acrescenta-se a edição, com a devida seleção de filtros, e o retorno na forma de “gostos” (ou likes, tal como se diz e escreve na língua inglesa). Coelho tem uma média de 600 pessoas a clicarem favoravelmente nos seus autorretratos:

“Sei mais ou menos a média por hora e quando os likes estão um pouco abaixo [do habitual], penso no que poderá ter corrido mal. Estamos tão habituadas a que o ‘público’ reaja de uma certa forma que quando não o faz é estranho.”

https://www.instagram.com/p/-TskH8Puh8/

Catarina Coelho é uma em milhares (senão milhões) de pessoas que já se renderam ao conceito da selfie. Exemplo disso é o estudo britânico publicado em setembro de 2015 que dava conta de uma geração milénio (geração Y) que corre o risco de tirar 25.676 selfies ao longo das suas vidas. Que não haja dúvidas: a designação ganhou tanta popularidade que em 2013 o Dicionário de Oxford nomeou-a palavra do ano; antes disso já a revista Time lhe tinha concedido um mérito semelhante.

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Não se conhecem ao certo as origens da designação selfie, mas há relatos de que terá sido um australiano o primeiro a usá-la numa publicação datada de 2002. O certo é que uma ida ao Instagram revela que há quase 250 milhões de referências à respetiva hashtag (isto considerando apenas os perfis abertos). E entre os infindáveis autorretratos já tirados estão alguns muito marcantes — seja pelos seus protagonistas, seja pela história que retratam — que já entraram para a história das selfies (um top feito com a ajuda do site Gidy segue em fotogaleria). Exemplo disso é o retrato tirado nos Óscares de 2014, protagonizado por Ellen DeGeneres, Jennifer Lawrence ou Julia Roberts, que em março desse ano era notícia por ser o tweet mais partilhado de sempre.

Selfie sim, mas porquê?

Uma das perguntas a fazer é precisamente o que leva alguém a tirar e publicar uma fotografia de si próprio, a apontar o smartphone ou a câmara fotográfica na sua direção, isolar-se temporariamente do mundo e sorrir? “Tirar selfies quase todas as pessoas o fazem, umas mais do que outras. É uma questão mais antiga do que se julga e tem que ver com a forma como queremos que nos vejam”, começa por dizer Cláudia Morais, que sublinha desde logo duas situações associadas a esta cultura, uma positiva outra negativa:

“As selfies acabam por promover a autoestima e promoção da pessoa, da sua imagem, o que é particularmente verdade entre os adolescentes”;
“Há a possibilidade de haver uma diminuição de autoestima a quem acede a estas selfies. Isto porque não se publica a primeira imagem que se tira, antes a melhor de um conjunto. E depois vem a parte da edição. É uma imagem melhorada de nós mesmos. A maior parte das pessoas [sobretudo os adolescentes] acaba por se sentir desvalorizada perante as selfies dos outros.”

A psicóloga e autora de livros como 25 Hábitos de Casais Felizes defende que a selfie permite um “autocontrolo da imagem que queremos passar aos outros”. Ou seja, quanto mais selfies tiramos, nas quais nos projetamos como aventureiros ou interessantes, por exemplo, mais as pessoas nos veem daquela forma. E num mesmo registo há sempre a máxima Instagram or it didn’t happen, o que em português quer dizer algo como “publica no Instagram ou então não aconteceu”. No entanto, diz Morais, estas fotografias não deixam de ser um fragmento do que somos por inteiro.

A ideia de controlar uma imagem está diretamente relacionada com o estatuto, com a aceitação social. E segundo vários estudos, diz Morais, as pessoas tendem a revelar uma subida de autoestima em função do retorno, isto é, do feedback nas redes sociais — seja na forma de gostos ou de comentários. Mas há uma ressalva: “Para algumas pessoas essa dependência [pode ser] excessiva e só tende a ser prejudicial. Se a minha autoestima estiver dependente desse retorno, vou sentir-me frustrada se passado meia hora não tiver tido likes.

Paulo Sargento, também ele psicólogo, assegura que a investigação feita na área aponta para pessoas com características narcisistas quando em causa está uma publicação exagerada de selfies. Mas em jogo entra também a baixa autoestima, como quem diz a necessidade de reconhecimento por parte de terceiros — o que remete para a procura do eu enquanto imagem em detrimento da personalidade.

“Somos aquilo que fazemos, mas aqui parece que o culto da imagem se sobrepõe ao culto da personalidade. É provavelmente a primeira vez que isto acontece na história.”

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Visual Hunt

O também diretor da Escola Superior de Saúde Ribeiro Sanches lembra que a procura pelo reconhecimento ganha uma dimensão ainda maior quando o foco são os adolescentes, uma vez que aquilo de que mais necessitam é sentirem-se aceites pelos seus pares. Nesse sentido, os likes podem funcionar como uma porta de entrada para o convívio social.

Para Sargento os meios tecnológicos podem ainda ajudar as pessoas a lidar com a sua imagem, por permitirem a publicação e consequente edição de imagens melhoradas, uma realidade capaz de promover relações fora das redes. “Graças aos recursos tecnológicos posso encontrar a melhor selfie e ajustá-la. No dia-a-dia nós olhamo-nos ao espelho e evitamos a parte que não nos agrada. Todos nós ajeitamos a nossa imagem quando nos vemos ao espelho, sendo que na selfie também fazemos isso. Publicamos selfies que nos valorizam.” Os problemas surgem, então, quando o ato se torna numa espécie de adição.

Mas será que há selfies a mais? “Demasiadas selfies acabam por transmitir uma imagem narcisista e acabam por prejudicar relações de menor intensidade”, diz Cláudia Morais, no sentido em que apenas familiares e pessoas mais próximas vão gostar daquilo que veem. “As pessoas acabam por revelar que se sentem menos próximas de quem tira mais selfies, como se houvesse algum tipo de rejeição.” Morais acrescenta ainda que uma selfie só tem valor se contar uma história, caso contrário a mensagem que poderá passar é: “Olhem para mim.”

A corroborar esta ideia está um estudo levado a cabo por um quarteto de universidades — University of Birmingham, University of the West of England, University of Edinburgh e Heriot-Watt University — que diz que a partilha de fotografias no Facebook pode prejudicar relações com amigos, familiares e colegas. David Houghton, o principal autor do estudo, diz que a pesquisa “mostrou que aqueles que publicam frequentemente imagens no Facebook correm o risco de danificar relações na vida real. Isto acontece porque as pessoas, sem ser amigos muito próximos ou familiares, parecem não se relacionar tão bem com aqueles que partilham constantemente imagens de si próprios”.

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@lattefarsan via Visualhunt.com / CC BY-SA

A psicóloga recusa-se, no entanto, a falar em “adição”, embora reconheça que há quem publica demasiadas fotografias. “O que é demasiado é aquilo que nos prejudica de uma forma ou de outra. O demasiado tem que ver com o número e o despropósito: tirar fotos minhas sem qualquer motivo não gera empatia, não gera interesse nem aceitação social. É nessa medida que [o excesso] poderá ser prejudicial.” Paulo Sargento, por sua vez, aborda apenas a questão da “adição promovida pela tecnologia”, isto é, “o uso patológico da tecnologia”.

No meio disto tudo há que distinguir a selfie tirada em grupo — seja a meio de um jantar de amigos ou no auge de um concerto de música — da individual. Se a primeira remete para um momento de partilha, diz Sargento, a segunda está associada ao que o psicólogo diz ser um “fenómeno mais estranho e até patológico”. Isto porque não é só o ato de tirar a fotografia mas também de a editar, com recurso a diferentes mecanismos — dos habituais filtros de Instagram aos programas específicos para o efeito, como o Photoshop. Em causa está a construção do “eu ideal” que se tornou bem mais fácil.

Uma indústria “selfish”

Basta olhar à volta para ver o poder comercial da selfie. Na verdade nem é preciso completar um giro de 360 graus. Se de um lado vemos pessoas a passear com selfie sticks (agora “ameaçados” com o surgimento de uma nova aplicação, além de serem proibidos em vários locais, como nos parques temáticos da Disney), do outro vemos a indústria da beleza (e não só) de olhos bem abertos para o universo dos autorretratos.

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gato-gato-gato via Visualhunt / CC BY-NC-ND

Em outubro deste ano o Observador publicava um artigo sobre como as selfies estão a mudar a maquilhagem. E é, de facto, caso para tanto alvoroço, com marcas a terem cada vez mais em consideração este fenómeno na formulação de novos produtos. Exemplo disso são os artigos que agora são testados em diferentes ambientes — seja à luz do sol, sob as lâmpadas fluorescentes ou tendo em conta o próprio smartphone. Foi também nesse mês que a BBC deu conta de um lucro brutal nas vendas de maquilhagem de rosto, olhos e lábios — 500 milhões de euros nos primeiros oito meses de 2015, além de um crescimento de 14% em comparação com igual período do ano passado.

Falamos de uma indústria que começa a criar uma forte dependência em relação às selfies, sobretudo as que são tiradas por celebridades com um poder de influência inquestionável. É o caso da socialite Kim Kardashian, nada envergonhada no que toca a premir o botão para captar diferentes momentos de si própria. Não é por acaso que Kardashian é considerada uma espécie de rainha das selfies, sobretudo depois de ter lançado o livro Selfish, uma autobiografia composta por autorretratos que leva o selo da prestigiada editora nova-iorquina Rizzoli e que já provou ser um sucesso.

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A capa do livro de Kim Kardashian

Do abstrato para o palpável, em Portugal já existem produtos de maquilhagem “à prova” de smartphone, tal como o kit de pós da marca Too Faced (à venda nas lojas Sephora) que tem o condão de imitar os filtros do Instragram graças a uma tecnologia de luz que dá brilho, bronze e luz à pele. Também a marca Make Up Forever decidiu apostar na sua linha HD ao criar uma gama de produtos aptos a funcionar em câmaras de alta definição. Como se isso não bastasse, uma corrida rápida pela imprensa internacional resulta numa pesquisa de dicas de maquilhagem para garantir as melhores selfies. A Teen Vogue e a Glamour Magazine servem de exemplo, mas nem por isso são as únicas. E se há este cuidado ao tirar um autorretrato, também estão em voga as selfies sem qualquer maquilhagem.

Com ou sem batom, sombras ou blush aplicado, a verdade é que também já existe uma capa de telemóvel que quer ajudar a registar, adivinhe-se, as selfies perfeitas. Criada pela stylist de Beyoncé, chama-se Ty-Lite e consiste numa capa com luzes LED à volta, de maneira a potenciar a “luz perfeita” para um autorretrato, além de ser aplicável a vídeos ou videochamadas.

https://www.instagram.com/p/BADCDw5vbeV/?taken-by=tyliteofficial

No mesmo registo está a Selfie Brush que basicamente é uma capa para smartphones na forma de uma escova gigante com um espelho incluído. A isso acrescentam-se os controles remotos para tirar selfies sem que sejam precisas manobras de equilíbrio para premir o botão e, ao mesmo tempo, manter o telefone estável — os tais “botões remotos” podem ser wireless, como o ShutterBall, ou nem por isso.

O conceito tornou-se de tal forma viral que até existe aquilo que se pode chamar de selfie-spoon (o que em português quer dizer “selfie-colher”). E como funciona? De um lado é uma colher, do outro um telemóvel. O objetivo é, muito provavelmente, comer enquanto se tira uma fotografia de si próprio. O objeto foi criado pela General Mills Brand, uma empresa curiosamente apostada em cereais e outros produtos alimentares e, segundo a Time, pretende resolver o problema de “escolher entre comer ou publicar uma selfie“.

Selfie: entre a vida e a morte

Como podemos, então, distinguir a linha que separa o “normal” do que chega ao pódio do exagero? Paulo Sargento responde, embora sem dar quaisquer números. A ideia a reter é simples: a barreira do que é socialmente aceite, digamos assim, é ultrapassada quando começa a existir prejuízo na vida social e pessoal do indivíduo. Exemplo disso é o facto de a família queixar-se de quem passa demasiado tempo ao telefone ou até quem corre riscos físicos para tirar aquela selfie.

Note-se que até outubro de 2015, um total de 12 pessoas tinham sido vítimas mortais de selfies aventureiras e arriscadas. O número não será o mais atual, até porque uma pesquisa na Internet pelo duo pouco feliz “selfie + death” na secção de notícias leva-nos de imediato à história de uma estudante universitária que caiu de um edifício em Manila, nas Filipinas, depois de estar a tirar selfies com uma amiga. A isso acrescenta-se a crónica que a revistas do New York Times publicou em dezembro do ano passado sobre a ideia da morte associada a estes autorretratos. E é por lá que se lê que houve quem tivesse caído (e morrido) nas escadas do Taj Mahal e de uma ponte russa em busca da selfie perfeita.

Mas há mais histórias que fazem um retrato, embora minoritário, de consequências extremas associadas ao ato de premir o botão. Numa altura em que a música “Happy” de Pharrel Williams fazia sucesso na rádio, a norte-americana Courtney Sanford publicava uma selfie com uma legenda referente ao tema musical para, segundos depois, sofrer um acidente de viação fatal. Outro caso infeliz é o de Otero Aguilar que, sendo um grande admirador dos autorretratos em questão, um dia foi longe demais e apontou uma arma à cabeça para a fotografia — disparou a arma antes da câmara.

Cláudia Morais faz questão de separar este fenómeno do das selfies ao defender que estas últimas “cumprem o tal propósito de aumentar a probabilidade de sermos vistos como queremos. Se eu quiser passar uma imagem de aventureira, aumenta a probabilidade de correr alguns riscos em nome da imagem que quero transmitir. Estamos a falar obviamente de uma minoria, enquanto o número de selfies é, de facto, assustador.”

Um conceito em permanente evolução

Selfie é, de facto, um termo continuamente repetido — recorde-se as cerca de 250 milhões de referências à hashtag em questão nos perfis abertos do Instagram –, mas também em constante mutação. Prova disso pode ser a hashtag #divorceselfies, uma referência aos autorretratos tirados aquando do divórcio de um casal. A isso acrescentam-se as selfies tiradas em funerais, na companhia de animais ou até num estado de embriaguez pouco recomendado. Mas há mais variações a registar, sobretudo as que implicam mutações da palavra mais e menos óbvias. A pensar nisso, o site The Week fez um glossário das já muitas variações do termo:

  • Belfie: selfie do rabo. De acordo com o The Daily Dot, que se dedicou a apurar a história deste tipo de fotografia, a primeira belfie foi tirada em julho de 2012. Note-se que até existe um belfie stick;
  • Dronie: selfie tirada com recurso a drones;
  • Felfie: selfie em contexto rural e agrícola;
  • Helfie: selfie focada no cabelo;
  • Beardie: fotografia focada na barba de um homem;
  • Brelfie: fotografia de uma mãe a amamentar o seu bebé;
  • Selfeye: fotografia a mostrar pormenores de maquilhagem de um olho;
  • Welfie: uma das definições é workout selfie, o que diz respeito à selfie habitualmente tirada no ginásio.

Talvez o mais surpreendente é que a lista continua com mais algumas (poucas) propostas por acrescentar, o que leva a crer que o termo ainda venha a sofrer mais modificações. Uma coisa é certa: ainda antes de a palavra dominar as redes sociais já muitos de nós tínhamos o hábito de virar a câmara ao contrário e tirar retratos de nós próprios, sozinhos ou acompanhados. A chegada de uma definição veio, então, apenas dar mais força a um gesto que em tempos passaria despercebido e que agora faz indiscutivelmente parte do nosso dia-a-dia. Caso para perguntar: e você, já tirou uma selfie hoje?