Autoria: David Bowie
Álbum: Blackstar
Editora: ISO Records / Columbia Records (Sony Music Entertainment)

Blackstar_album_cover

O que faz geralmente um artista consagrado à beira dos 70? Encosta-se, vivendo à conta dos seus sucessos passados em tours mundiais, ou sai de cena. E o que faz David Bowie, no dia em que completa 69 anos de idade (8 de janeiro)? Lança Blackstar, um disco complexo, intenso, denso e arrojadamente experimental, enquanto se mantém afastado dos holofotes mediáticos e, tudo indica, dos palcos (desde 2006 que não dá um concerto). Afinal, vindo de quem vem, não surpreende – era fácil apresentar um disco assumidamente pop, mas Bowie não se encosta. Está-lhe no sangue: ele é um camaleão vanguardista que, ao longo da carreira, sempre se soube reinventar sem medo de arriscar. Fosse em 1976 ou em 2016.

Há três anos, e após um hiato de uma década, David Bowie apresentou The Next Day, uma transição tranquila com um pé no passado e outro no presente. Ora, Blackstar vem de outra galáxia, com os dois pés assentes no futuro. Composto por sete canções que escapam aos padrões radio friendly (excepção para a balada “Dollar Days”), o disco distingue-se pelas texturas intrincadas com que Bowie expõe um certo lado negro, simultaneamente bizarro, alienado e cativante – tudo a partir de uma fusão improvável de ambientes etéreos, jazz e muito saxofone, (algum) rock, ritmos minimalistas ou industriais, vozes ora limpas ora sofridas, e dramatismo lírico. Ao princípio, estranha-se. Depois, entranha-se. Blackstar será, por certo, um dos grandes discos de 2016.

A primeira canção, que dá título ao disco, marca o tom e é a que melhor caracteriza esse lado sombrio. Numa viagem ritualista de 10 minutos dividida em três movimentos, Bowie narra-nos um sacrifício e apresenta uma espécie de figura messiânica (ele próprio?), numa mistura poderosa e desconcertante de ocultismo, vozes fantasmagóricas, trip hop, arranjos subtis de saxofone e influências musicais do Médio Oriente.

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O que se segue depois é, na prática, o desenvolvimento das várias ideias musicais que surgem nessa primeira canção. A violência de “‘Tis a Pity She Was a Whore” (com um longo e desarmónico solo de saxofone) e “Sue (or In a Season of Crime)” – ambas versões regravadas dos originais de 2014. O lamento calmo e auto-destrutivo de quem perde tudo em “Lazarus” (o momento alto do disco) – canção, aliás, composta para a personagem alienígena que Bowie desempenhou em The Man Who Fell to Earth (1976), agora convertido em musical. A doçura na exposição íntima de um passado idílico, na balada “Dollar Days”. E, por fim, a resignação, em “I Can’t Give Everything Away” – declaração que é ritualisticamente repetida até ao encerramento do disco.

Blackstar é, portanto, tão enigmático quanto o artista David Bowie. Está decorado de composições ousadas (com o jazz a sobressair), vive entre o futuro e referências pontuais ao imaginário criativo dos anos 70, é turbulento mas também estranhamente coeso, equilibra-se entre a fantasia e a intimidade, habita nas sombras da alma mas tem algo grandioso que ilumina. Numa frase, Blackstar não encaixa em categorias estilísticas pré-definidas do pop-rock – mas, lá está, David Bowie também não. E se isso teria tudo para dar errado, o inglês assegurou-se que tudo deu certo. É por isso que gostamos tanto dele: nem que seja por um dia, como ele cantava na imortal “Heroes” de 1977, Bowie ainda nos convence de que tudo é possível.

Alexandre Homem Cristo é doutorando no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e conselheiro no Conselho Nacional de Educação.