A Comissão Europeia avisou o Governo que a redução do défice estrutural prevista deixa Portugal muito longe da meta, pediu esclarecimentos e fez uma ameaça velada que poderá chumbar a proposta de Orçamento do Estado para 2016. O Governo, depois de negociar com Bruxelas, apresentou uma redução do défice estrutural em apenas 0,2 pontos percentuais. Na prática, o que divide Portugal e Bruxelas?

Depois de semanas de negociações prévias com a Comissão Europeia, o Governo de António Costa acabou por ceder na meta do défice. O objetivo do Governo era que o défice descesse de 3% do PIB no ano passado, para 2,8% este ano. Depois do forcing de Bruxelas, Mário Centeno mandou para Bruxelas um esboço do orçamento com uma meta mais exigente, de 2,6%.

A redução do défice estrutural, que Mário Centeno qualificou como “significativa” acabou por não passou no crivo da Comissão Europeia, que, diz, está “muito aquém do ajustamento recomendado pelo Conselho em julho”.

O que está em causa

O défice estrutural, que mede o esforço efetivo de consolidação das contas públicas (uma vez que remove a componente cíclica da redução do défice). A recomendação do Conselho da União Europeia, de 14 de julho, estabelece que a redução do saldo estrutural tem de ser feita de forma a que se atinja o Objetivo de Médio Prazo para o saldo estrutural, que é de 0,5%.

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No entanto,  o défice estrutural no final do ano passado ficou nos 1,3%. A meta com que o Governo se comprometeu este ano era para reduzir este défice em apenas 0,2 pontos percentuais, para 1,1% do PIB.

Com este resultado, Portugal ainda estaria a seis décimas de atingir o objetivo estabelecido pelo Conselho, daí a Comissão Europeia, na carta divulgada hoje pelo próprio Ministério das Finanças, dizer que o ajustamento estrutural previsto está “muito aquém do ajustamento recomendado pelo Conselho em Julho”.

Que ajustamento foi feito no ano passado?

O Orçamento do Estado para 2015, que foi dado a conhecer na data prevista, em outubro de 2014, foi o primeiro de Portugal sob as regras do semestre europeu, porque antes disso estava ainda num programa de ajustamento económico e financeiro – vulgarmente conhecido como um resgate.

O acordo inicial era que Portugal reduzisse o défice nominal para 2,5% do PIB, mas Passos Coelho apresentou e manteve uma meta de 2,7%. As instituições europeias, em especial o FMI, duvidavam até desta previsão, apontando para o que o défice fosse superior a 3% do PIB, inicialmente entre 3,2% e 3,3%, metas entretanto ajustadas pelas organizações para entre 3% (FMI e Comissão Europeia) e 3,1% (OCDE). O Governo anterior manteve a meta de 2,7%, mas no final terá sido de 3%, já com um aperto de cinto no final do ano, anunciado por Mário Centeno.

No que diz respeito ao saldo estrutural a questão complica-se, especialmente pela forma como este é calculado. Não são de hoje as dúvidas e críticas apontadas a este indicador e, no final de cada ano, são frequentes as revisões profundas tanto nos valores de partida, como nos valores finais.

A julgar pelos dados mais recentes dados a conhecer pela Comissão Europeia, Portugal teve um défice estrutural de 1,4% em 2014. Juntando os dados do Governo no esboço do orçamento, isto significaria que a redução no défice estrutural no passado foi de apenas 0,1 pontos percentuais, metade do valor previsto para este ano, e considerado muito baixo pela Comissão Europeia.

Assim, segundo as contas publicadas no esboço do Orçamento enviado para o Parlamento e para Bruxelas, o défice estrutural cairia de 1,3% em 2015 para 1,1% em 2016, longe de atingir os 0,5% do PIB recomendados pelo Conselho da União Europeia, cujas recomendações dizem respeito a dois anos: 2015 e 2016.

O que aconteceu em 2015?

Quando Portugal apresentou a sua proposta de Orçamento do Estado para 2015 e a enviou para Bruxelas, não recebeu uma carta da Comissão Europeia a pedir esclarecimentos como aconteceu este ano, mas Bruxelas fez um parecer sobre a proposta de Orçamento, como acontece agora (tem até ao final da próxima semana para o fazer, duas semanas depois de receber a proposta de Orçamento).

A avaliação da Comissão ao Orçamento do Estado para 2015 criticava o ajustamento previsto, o ajustamento também na vertente estrutural, que nas previsões de então era na verdade um agravamento do saldo estrutural, e pedia a Portugal que tomasse medidas adicionais para garantir que Portugal cumpria as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC).

O que dizia a avaliação da Comissão ao Orçamento de 2015:

  • “O ajustamento estrutural previsto é de 0,4% do PIB em 2014 (e de 0,5% do PIB no período 2013-2014), muito abaixo do esforço exigido. O total de medidas de consolidação permanentes tomado durante o programa e no seu seguimento é estimado em 1,5% do PIB em 2014, evidenciando um desvio face aos 2% de medidas permanentes recomendado ao abrigo do PDE [Procedimento dos Défices Excessivos]”.
  • “De acordo com a avaliação global da proposta de Orçamento do Estado, o cumprimento das recomendações do PDE está em risco”.
  • “No geral, a Comissão é da opinião que a proposta de Orçamento do Estado de Portugal, que está sob a vertente corretiva [do PEC], está em risco de não cumprir com as provisões do Pacto de Estabilidade e Crescimento”.
  • “Por isso, a Comissão convida as autoridades a tomarem as medidas necessárias no quadro do processo orçamental nacional para garantir que o orçamento de 2015 cumpre as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento. A Comissão é também da opinião que Portugal fez progressos limitados no que diz respeito à vertente estrutural das recomendações emitidas pelo Conselho no contexto do semestre europeu de 2014 e vem assim convidar as autoridades a acelerarem os esforços de implementação”.

Espanha com críticas semelhantes. França e Itália obrigados a cortar mais em 2014

Apesar de Portugal só ter entrado com orçamento de 2015 neste processo, os restantes países começaram já um ano antes – aplicando-se a eles as regras de maior controlo orçamental por Bruxelas.

No ano passado, por exemplo, Bruxelas apontou o dedo a França e Itália, como o fizeram este ano com Portugal, e exigiram mudanças no esforço orçamental previsto. O resultado final foi uma redução do défice adicional em dois pontos percentuais e o aviso que seria feita uma nova avaliação na altura da entrega do Programa de Estabilidade e Crescimento, que poderia exigir esforços adicionais se a trajetória não fosse a prevista.

Este ano foi diferente. França e Itália foram alvo de críticas, mas Espanha foi quem recebeu as mais duras. França estava na linha da frente novamente devido ao esforço mais baixo que o previsto, mas pediu, e a Comissão acedeu, uma flexibilização nas metas exigidas devido aos gastos adicionais que teve de fazer com segurança, na sequência dos vários atentados terroristas de que foi alvo ao longo do ano passado, em especial o ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo em janeiro e os atentados de Paris, em novembro, que provocaram a morte a 130 pessoas.

Itália também recebeu uma flexibilização, mas nem por isso se livrou de críticas. Itália prevê um agravamento do seu saldo estrutural em 0,5% do PIB este ano, quando o previsto no Programa de Estabilidade do ano passado era que se mantivesse neutro. Itália tem, no entanto, duas coisas a seu favor. Em primeiro lugar, já não está sob procedimento dos défices excessivos. Em segundo lugar, os custos orçamentais com a crise dos refugiados não contam para o défice apurado por Bruxelas para efeito do cumprimento das metas.

Já Espanha, sofre críticas mais fortes. As previsões de crescimento apresentados pelo Governo de Mariano Rajoy, segundo a Comissão Europeia, são demasiado otimistas e o défice estrutural só deve melhorar 0,2 pontos percentuais do PIB (o mesmo valor projetado por Mário Centeno para Portugal), o que leva a Comissão Europeia a dizer, tal como disse hoje na carta enviada ao Governo português, que este ajustamento está “muito aquém do ajustamento recomendado pelo Conselho” da União Europeia. A crise política espanhola não tem evitado que a Comissão ponha forte pressão para que sejam tomadas medidas adicionais.