Quando soube que venceu o caucus do Partido Republicano no Iowa com 27,6% dos votos — contrariando as sondagens, que o colocavam em segundo lugar, atrás de Donald Trump –, Ted Cruz subiu ao palco da sua sede de campanha naquele estado e começou a falar. Foi o discurso mais longo da noite: 32 minutos. E, lá para o meio, disse algumas palavras ao público que caracterizam, de uma penada, a sua candidatura e as suas ideias:

Sabem o que é que assusta o cartel de Washington? Assusta mesmo, não é pouco… Eu não os assusto nem um pouco. O que os assusta é esta antiga coligação de conservadores ao estilo de Reagan a unir-se novamente. Estamos a ver conservadores, evangelistas, libertários e democratas de Reagan, todos a juntarem-se num só. Isso aterroriza Washington D.C..”

Cada um daqueles epítetos caracteriza bem Cruz. Conservador, por ser contra o aborto, a favor da pena de morte, um opositor acérrimo do casamento entre casais do mesmo sexo. Evangelista, por ser um cristão fervoroso, defensor da reversão da separação do Estado e da Igreja, chegando a dizer aos seus apoiantes para se preparem para os tempos vindouros e “vestirem a armadura de Deus”. Libertário, porque é uma das caras do movimento Tea Party, que defende a todo o custo o Estado mínimo — o discurso de 21 horas que Cruz fez em 2013 no Senado contra o plano de saúde pública de Barack Obama tornou-o numa celebridade, com especial ênfase para a parte em que aproveitou para ler um livro infantil às filhas, que estariam a assistir ao discurso do pai em direto na televisão. E Reagan, o ex-Presidente que serve de bengala retórica à maioria dos republicanos que pretendem chegar à Casa Branca, e à qual este texano de 45 anos recorre frequentemente. É a um retrato do homem que liderou os EUA entre 1981 e 1989 que Cruz reserva a maior parede do seu escritório.

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Ronald Reagan é uma das principais referências de Ted Cruz

Existe, porém, outra referência ainda maior para o homem que venceu o caucus republicano no Iowa: o seu pai, Rafael Cruz. Nascido em Cuba, o ancião fugiu aos 18 anos para os EUA depois de ter sido torturado pelo regime de Fulgencio Batista — mais tarde deposto pela revolução liderada por Fidel Castro, contra o qual acabou por formar uma aversão ainda maior, quando voltou a Cuba em 1959 durante um mês. Regressou aos EUA e a partir de então começou a embrenhar-se em movimentos conservadores e evangelistas, tornando-se pastor.

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“Se perdermos as nossas liberdades aqui, para onde é que vamos?”

Pouco demorou até as afiliações do pai Rafael passarem para o filho Ted, conforme contou à revista New Yorker o chefe de família. “Começou tudo em 1980, quando o Ted tinha nove anos.” Nessa altura, Rafael Cruz estava envolvido com um grupo de cristãos que faziam campanha por Reagan, que mais tarde viria a derrotar Jimmy Carter, que se candidatava então a um segundo mandato. “Durante aquele ano, falávamos todas as noites sobre a importância de nos livramos daquele socialista-esquerdista Presidente Carter e de substituí-lo por um conservador constitucional, Ronald Reagan. Eu devo ter dito ao Ted uma dúzia de vezes: ‘Quando eu estava em Cuba e eles nos tiraram as liberdades, eu tinha um lugar para onde ir. Se perdermos as nossas liberdades aqui, para onde é que vamos?’.”

O passado do pai acabou por se tornar um tema recorrente de Ted Cruz para se referir ao presente. No tal discurso de 21 horas, em que se opôs ao programa de saúde pública ao qual os republicanos, pejorativamente, se referem como “Obamacare”, o então senador e agora candidato republicano deu graças a Deus pelo facto do pai não ter encontrado no seu percurso “um liberal cheio de boas intenções” quando chegou aos EUA:

“Eu vejo isto de uma perspetiva pessoal, porque há 55 anos o meu pai veio de Cuba, tinha 18 anos, não tinha dinheiro e não sabia falar inglês (…). Graças a Deus que quando o meu pai era um imigrante adolescente no Texas, há 55 anos, que não veio um liberal cheio de boas intenções meter-lhe o braço por cima e dizer-lhe: ‘Deixa-me tomar conta de ti. Deixa-me dar-te um cheque com dinheiro do Governo. Deixa-me tornar-te dependente do Governo. Não te dês ao trabalho de ir lavar pratos. Não te dês ao trabalho de trabalhar.”

Ted Cruz estudou nas prestigiadas universidades de Princeton e de Harvard. Na primeira, fez parte da equipa de debate, onde tinha prestações ímpares, ao ponto de um antigo colega desses anos dizer que “o Ted era o melhor a debater em todo o país, sem dúvida”. Na segunda, especializou-se em direito constitucional, algo de que se faz valer diariamente — a maior parte das suas ideias são sustentadas por uma leitura literal da constituição.

Em 2000, aproximou-se ainda mais da política e foi conselheiro de George W. Bush para assuntos domésticos na campanha de 2000 — entretanto, o ex-Presidente, que tem feito campanha pelo seu irmão Jeb Bush, também candidato nestas eleições, desconsiderou Ted Cruz dizendo: “Simplesmente não gosto daquele tipo”.

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Ted Cruz foi conselheiro de George W. Bush na campanha de 2000. Não terão ficado em bons termos. “Simplesmente não gosto daquele tipo”, disse Bush acerca de Cruz (Photo by Ronald Martinez/Getty Images)

O primeiro cargo de importância pública de Ted Cruz foi o de solicitador-geral do Estado do Texas (um cargo abaixo do de procurador-geral), o que o levou a vencer cinco em nove processos que levantou contra o Supremo Tribunal. Esteve nestas funções entre 2003 e 2008. Mais tarde, em 2013, foi eleito senador pelo Partido Republicano para o estado do Texas. Alguns meses depois, em setembro, viria a tornar-se uma cara incontornável do movimento Tea Party, com o já referido discurso contra o plano de saúde pública.

Ajoelhado perante Deus contra o casamento gay

Ted Cruz demonstrou habilidade ao conseguir trazer para si duas facetas do Partido Republicano: a libertária e a conservadora. Para a primeira, não é por acaso que confessa a sua falta de afeição a Washington D.C., capital e sede administrativa dos EUA. Uma vez, num discurso no Texas, disse aos presentes: “Passei a semana inteira em Washington D.C. e posso dizer que é ótimo estar de regresso à América”. A este discurso anti-Washington, Ted Cruz junta a sua postura conservadora. Aí, a oposição ao casamento homossexual é a bandeira que mais vezes levanta. Num discurso feito na sua pré-campanha (Cruz fez uma ronda do país antes de assumir que era candidato), Cruz apelou tanto ao conservadorismo como à religião dos presentes:

“Quero encorajar todos os homens e mulheres aqui presentes para rezarem. Se alguma vez houve um problema para o qual nos devemos ajoelhar perante Deus, é a preservação do casamento entre um homem e uma mulher. E isto é um problema para o qual vamos precisar de tantos guerreiros da oração quantos forem precisos para inverter esta maré.”

Foi esta doutrina libertária e conservadora que lhe garantiu a vitória no Iowa, um estado onde o eleitorado republicano tem uma particularidade: o número de libertários e de evangelistas é grande e bastante acima da média. A prova disso foram os resultados do caucus de 2012, no qual Ron Paul, o mais libertário dos candidatos republicanos de então, conseguiu 21,5% dos votos — bem acima dos 10,9% que acabou por ter no final das primárias — e também os 24,6% de Rick Santorum, o mais conservador dos candidatos em 2012 que, apesar de ser católico, conseguiu convencer o eleitorado evangélico.

Ciente disto, a equipa de campanha de Ted Cruz tentou implementar o seu candidato no estado a partir de várias frentes. Um dos triunfos foi o apoio do congressista do Iowa, Steve King. Outro, foi feito num intensivo trabalho de porta a porta, no qual a contribuição direta do pai de Ted Cruz, pastor evangélico, foi essencial — a angariação do voto dos eleitores profundamente religiosos.

Assim, Cruz conseguiu sair por cima no Iowa, apesar de as sondagens não preverem tal cenário. Mesmo assim, a sua vitória não conseguiu esconder um facto: a pulverização de votos destas primárias republicanas. Para isto, terão sido essenciais os 11 candidatos por onde escolher (acima dos sete que havia nesta fase em 2012) e o elemento surpresa que Donald Trump introduziu na campanha, tomando o debate para si — à exceção de no último confronto televisivo, do qual escolheu ficar de fora.

DES MOINES, IA - JANUARY 24: Businessman Donald Trump speaks to guests at the Iowa Freedom Summit on January 24, 2015 in Des Moines, Iowa. The summit is hosting a group of potential 2016 Republican presidential candidates to discuss core conservative principles ahead of the January 2016 Iowa Caucuses. (Photo by Scott Olson/Getty Images)

As sondagens do Iowa previam a vitória de Trump com 30,7% e Cruz em segundo, com 23,8%. Os resultados foram outros: 27,6% para Cruz e 24,3% para Trump (Photo by Scott Olson/Getty Images)

A importância do Iowa para os republicanos

O Iowa tem apenas 3 milhões de habitantes — menos de 1% da população total dos EUA. Mesmo assim, de quatro em quatro anos, é por ali que começa o calendário eleitoral norte-americano. E não é por acaso que todos os candidatos que querem ser escolhidos dentro do próprio partido para as eleições gerais investem em larga escala na campanha. É que, tanto no Partido Democrata como no Partido Republicano, os resultados que saem do caucus do Iowa funcionam como indicador forte para determinar quem vencerá a corrida das primárias.

Já escrevemos noutro texto que, no caso dos democratas, 67% dos candidatos que ali vencem as primárias acabam por ir às eleições para Presidente. No caso dos republicanos, que adotaram o sistema de caucus no Iowa em 1976, só em três ocasiões de num total de sete é que isso se verificou — Gerald Ford (1976), Bob Dole (1996) e George W. Bush (2000). Porém, houve dois anos em que o segundo classificado no Iowa, que ficou praticamente colado ao primeiro, chegou ao final da corrida. Foi assim com Ronald Reagan em 1980 (29,5%, atrás dos 31,6% de George H. W. Bush) e com Mitt Romney em 2012 (que com 24,6%, ficou apenas 34 votos atrás de Rick Santorum).

Assim, pode dizer-se que em 71% das ocasiões, aqueles que venceram o caucus republicano do Iowa ou estiveram muito perto de o vencer, conseguiram a nomeação do partido para concorrerem à Casa Branca. Uma pretensão que Cruz agora tem como mais real do que nunca. Assim o deixou claro, já no fim do seu discurso de 32 minutos:

“Se ficarmos juntos, como um só, se o povo americano ficar junto e disser ‘nós queremos o nosso país de volta’, não há força em Washington que consiga aguentar contra o povo americano.”