O relatório da Inspeção-Geral dos Assuntos Sociais (IGAS) francesa apontou três incumprimentos graves por parte do laboratório Biotrial, em Rennes, a quem a empresa farmacêutica portuguesa Bial tinha encomendado os ensaios clínicos de uma nova molécula que causaram uma morte. A apresentação das conclusões preliminares do inquérito foi feita esta quinta-feira pela ministra da Saúde francesa, Marisol Touraine.

O relatório preliminar ainda não identificou as causas diretas do acidente, mas as diligências vão continuar, nomeadamente as análises farmacológicas. O relatório final da IGAS deverá ser apresentado no final de março, mas por enquanto as conclusões apontam que a regulamentação atual foi respeitada.

Os inspetores da IGAS identificaram três deficiências graves no que diz respeito à conduta do estudo e à gestão de crise:

  1. O laboratório Biotrial não tinha informação suficiente sobre o estado de saúde do primeiro voluntário hospitalizado no dia 10 de janeiro – e que acabou por morrer. Além disso, em vez de cancelarem imediatamente o ensaio, ainda deram a molécula mais uma vez aos restantes voluntários e só cancelaram o ensaio no dia 11.
  2. Os voluntários do ensaio clínico não foram informados atempadamente do que tinha acontecido ao primeiro voluntário a ser hospitalizado e como tal não puderam decidir se queriam continuar no ensaio ou não.
  3. Num acidente inesperado como o que aconteceu no dia 10 de janeiro, o laboratório Biotral deveria ter comunicado imediatamente a situação à agência do medicamento francesa (ANSM, na sigla em francês), mas só o fez, oficialmente, no dia 14 de janeiro.

Apesar das falhas identificadas, os inspetores da IGAS não consideram que se “justifique a suspensão, como medida de precaução, da autorização de realização de ensaios clínicos concedida ao laboratório Biotrial”.

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A inspeção da IGAS debruça-se sobre três temas principais, como explicou a ministra Marisol Touraine:

Pontos a analisar Conclusões
Autorização dada à Biotrial para realizar os ensaios clínicos. A Biotrial cumpria os requisitos exigidos e a agência regional de saúde da Bretanha tinha dado autorização de realização dos ensaios.
As condições da autorização do ensaio que levou ao acidente. O ensaio não colide com a regulamentação em vigor, mas mesmo assim a IGAS faz três chamadas de atenção (ver em baixo).
A conduta prática deste ensaio clínico. Foram identificados três problemas principais em relação à gestão de crise (identificadas em cima).

Os três pontos identificados pela IGAS que têm margem para serem melhorados:

  • As informações fornecidas à ANSM são insuficientes;
  • Pouca clareza no plano do ensaio clínico (protocolo), ainda que esteja em conformidade com os regulamentos atuais;
  • A seleção de voluntários deveria ter sido mais criteriosa especialmente no que diz respeito ao consumo de substâncias psicoativas pelos selecionados.

Assim, a IGAS recomenda mais transparência na informação fornecida para que seja concedida autorização de ensaios clínicos em humanos, maior clareza na definição do protocolo estabelecido e critérios mais rígidos na seleção daquilo que é considerado um voluntário saudável.

Durante a conferência de imprensa, ministra acrescentou ainda que o estado de saúde dos quatro voluntários que apresentaram problemas neurológicos continua a melhorar, mas que neste momento ainda é prematuro dizer se vão ficar curados ou não. No final de fevereiro a novos exames no serviço de neurologia do Hospital Universitário de Rennes (HUR).

Os 90 voluntários que participaram no ensaio clínico antes do acidente já foram todos contactados e 75 deles já realizaram uma ressonância magnética, mas nenhum deles apresentou nenhuma das condições anómalas registadas nos voluntários que deram entrada no HUR depois de dia 10 de janeiro.

Inspeção critica Biotrial por falta de controlo de hábitos de drogas dos voluntários

A Inspeção-Geral dos Assuntos Sociais francesa considerou que a seleção de voluntários para a realização do ensaio clínico no Laboratório Biotrial, que causou uma morte, deveria ter sido “mais rigorosa e criteriosa”, nomeadamente quanto ao consumo de “substâncias psicoativas”.

“Falta precisão e coerência nos critérios de seleção [dos voluntários] quanto aos seus hábitos de consumo de substâncias psicoativas. Deviam ter mantido um critério específico de exclusão dos voluntários com hábitos de consumo regular de canábis”, refere o relatório da IGAS, divulgado hoje, no âmbito de uma investigação à morte de um voluntário, num ensaio clínico realizado no laboratório francês Biotrial para a farmacêutica portuguesa Bial.

O relatório da IGAS realçou que no caso particular de um voluntário, ao qual é atribuído o número 2508, estava “documentado” que consumia drogas, mas não deu essa informação aquando da sua inscrição na base informática da Biotrial, em outubro de 2015. E acrescentou: “quando fez um exame de pré-seleção em novembro para um outro ensaio, entretanto anulado, ele respondeu que não consumia drogas de maneira abusiva, tendo a despistagem dado negativa”.

Quando foi selecionado para o ensaio 1BIAL35, a despistagem a drogas deu novamente negativo, mas os inspetores da IGAS consideram “necessário” aprofundar a investigação quanto a esta questão. A inspeção não especifica se o voluntário em causa foi o que faleceu ou um dos cinco que foram internados.

Segundo o relatório, a Biotrial disse à IGAS que os voluntários foram “todos” interrogados sobre os seus hábitos de consumo de canábis. “Foi-lhes perguntado diretamente se eram consumidores de droga e foi-lhes feito um rastreio à urina, capaz de detetar o consumo recente destas substâncias”, lê-se.

A Biotrial adiantou ainda que as “intoxicações antigas”, nomeadamente consumos regulares ou episódios de dependência, deviam estar assinalados no histórico clínico do voluntário, fator que deveria conduzir à sua exclusão.

Bial reforça que cumpriu todas as boas práticas internacionais

“O desenvolvimento desta nova molécula (inibidor da enzima FAAH) seguiu, desde o início, todas as boas práticas internacionais, com a realização de testes e ensaios pré-clínicos”, disse a empresa portuguesa Bial, em comunicado de imprensa para as redações. “Este ensaio foi aprovado pela ANSM e pela Comissão de Ética Francesa, em conformidade com as orientações de Boas Práticas Clínicas, com a Declaração de Helsínquia e de acordo com toda a legislação aplicável a ensaios clínicos.”

O comentário da Bial surgiu no seguimento da apresentação do relatório da IGAS que, conforme reforça a empresa portuguesa, concluiu que “as causas do acidente verificado não puderam ainda ser apuradas” e confirmou que “Protocolo de execução do ensaio está conforme a legislação e as recomendações aplicáveis”.

O relatório da IGAS é preliminar e, como notou a Bial, ainda não inclui os dados clínicos dos voluntários do ensaio clínico.

Atualizado às 20h30, com o comunicado da Bial