O Comboio Apitou Três Vezes (High Noon, 1952)

highnoon

A batalha pelo controlo ideológico da produção cinematográfica de Hollywood começara muito antes da investida da Comissão Parlamentar sobre Atividades Anti-americanas contra a influência política (ou mesmo uma fruste tentativa de domínio) do Partido Comunista Americano sobre o teatro e o cinema dos Estados Unidos. E a existência da Comissão também foi anterior uns anos à entrada em cena do infamado senador McCarthy – e do jovem republicano Richard Nixon ou do jovem democrata John Kennedy, que também tiveram papel mais ou menos destacado na campanha da Comissão. A chamada caça às bruxas (muita gente fez de conta que não acreditava em bruxas mas lá que as havia, havia-as, como há muito não é segredo para ninguém) – raramente foi retratada diretamente no cinema. Mas plasmou-se em alegorias como a deste celebrado filme de cowboys que em toda a parte foi lido entre linhas. Um xerife de saída ameaçado por um grupo de pistoleiros pede em vão a solidariedade da comunidade que defendera: “Solo ante el peligro” foi o título que o filme teve em Espanha. É protagonizado por Gary Cooper (um ator que na vida real foi tudo menos ‘progressista’; mas esse desajuste aconteceu muitas vezes – Ginger Rogers, uma reacionária encartada, protagonizou Tender Comrade um filme escrito e dirigido pelos comunistas Dmytryk e Dalton Trumbo). Produziu o filme um produtor com notória predileção por ‘filmes de tese’ nem sempre muito bem-sucedidos cinematograficamente (Stanley Kramer). Realizou-o Fred Zinnemann (foi o seu único western, os seus voos de realizador eram outros). O argumento era de Carl Foreman, que pouco depois entrou na ‘lista negra’ dos produtores e se exilou em Inglaterra, onde fez o resto de uma distinta carreira (tinha sido o autor do Cyrano de Bergerac – 1950 – um texto brilhante em que brilhou José Ferrer; seria, por exemplo, às escondidas, um dos premiados argumentistas de “A Ponte do Rio Kwai”). Grace Kelly tem neste filme um dos seus primeiros papéis no cinema.

Há Lodo no Cais (On the Waterfront, 1954)

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Um dos melhores filmes americanos do pós-guerra e talvez o melhor de Elia Kazan, escrito por Budd Schulberg. Ambos tinham sido em tempos membros do PCA. Foi muito atacado pela intelligentsia que o considerou uma auto justificação de duas destacadas ‘testemunhas amigas’ no inquérito parlamentar sobre a infiltração do Partido Comunista nos meios dourados da Broadway e de Hollywood. No seu testemunho, Kazan quis assumir a responsabilidade de ‘name names’ de antigos comunistas que conhecia, um ato de poucas consequências práticas (ou os próprios o tinham autorizado ou eram mais do que conhecidos da Comissão) mas que tornou fácil à crítica de esquerda vilipendiá-lo como ‘delator’ e depois desclassificar o filme como uma “apologia da delação”. O argumento foi “sugerido pelos” artigos do jornalista Malcolm Johnson que investigara a corrupção sindical e a infiltração da Máfia no porto de Nova Iorque (reportagens que lhe valeram o Prémio Pulitzer). O crime campeia infrene nos molhes de New Jersey. O protagonista é Terry Malloy, pugilista frustrado, forçado a perder um combate decisivo a bem das apostas batoteiras do mano “sindicalista”. (“I coulda been a contender. I coulda been somebody…” é uma das réplicas mais famosas do cinema americano); acaba por se revoltar contra os brutais senhores do trabalho nas docas e testemunhar contra os autores de um assassinato mafioso a que assistiu. O filme é, entre outras coisas, um festival de representação na linha do Actor’s Studio: Marlon Brando, Rod Steiger, Karl Malden, Lee J. Cobb… Kazan nunca se desculpou da posição que tomou nem aceitou o papel de “vítima” (Only Victims foi o nome um tanto lamecha que deu à sua tese sobre a matéria o actor Robert Vaughn) – e o rancor “progressista” foi eterno: veja-se a reação de parte da rutilante plateia da cerimónia dos Óscares de 1999 em que Kazan recebeu um Óscar Honorário.

https://www.youtube.com/watch?v=xSImMMMf5nA

Os Revoltados do Caine (The Caine Mutiny, 1954)

Outra alusão, do realizador Edward Dmytryk, mais um comunista arrependido. A bordo de um navio de guerra cujo comandante começa a dar sinais de não estar totalmente bom da cabeça, o imediato, instigado por outro oficial, um miliciano intelectual, retira-lhe o comando, seguindo-se o respetivo conselho de guerra. É fundamentalmente um drama de tribunal: o advogado militar que defende o oficial insubordinado consegue que saia absolvido, à custa da humilhação do comandante, mas na altura de festejar o triunfo pronuncia uma violenta diatribe contra o intelectual um tanto cobardolas que esteve na origem de tudo. Tem Humphrey Bogart no papel pouco característico do comandante vítima de “fadiga”, José Ferrer (lá está, um “progressista”) sobressai como advogado de defesa e Fred McMurray desempenha o papel que sempre lhe assentou muito bem de falso bom rapaz, um privilegiado traiçoeiro. Dmytryk, realizador credenciado e estrela do cinema “noir” americano com “Murder, My Sweet” (“Enigma”, 1944, adaptação do Farewell, My Lovely de Raymond Chandler) e “Crossfire” (“Encruzilhada”, 1947, filme pelo qual o nomearam para o Óscar de melhor realizador), foi um dos célebres Hollywood Ten, os dez de Hollywood, quase todos argumentistas e quase todos à data membros do Partido Comunista, que se recusaram a prestar declarações perante o House Committee on Un-American Activities (cuja sigla correcta é HCUA mas que geralmente dá mais jeito tratar por HUAC, House Un-American Activities Committee, sem segunda intenção). Esses dez invocaram o Artigo Quinto da Constituição Americana que protege a vida privada, uma estratégia que não deu bom resultado: foram condenados por “contempt of Congress”, a multas e a uns meses de prisão e postos ipso-facto na lista negra. Dmytryk voltou depois atrás e colaborou com a Comissão. Em 1996 publicou Memoir of the Hollywood Ten, em que conta muitas histórias dessa época, incluindo o episódio Bertolt Brecht, oportunista como sempre, neste caso com a bênção do Partido.

O Testa de Ferro (The Front, 1976)

Trinta anos depois, o cinema de Hollywood já se sentiu capaz de abordar de frente a questão das listas negras fomentadas pela cruzada da HCUA e aquilo que passou a ser obrigatório designar por “histeria anti-comunista” (o anti-comunismo é sempre “histérico”). Encarregou-se de escrever esta comédia agridoce, com laivos de tragédia, Walter Bernstein, um dos comunistas blacklisted nesses anos. Eram os anos em que a cortina de ferro tinha descido sobre metade da Europa, Estaline tinha fundado o Cominform para substituir o Comintern na direção do movimento comunista mundial, o Partido Comunista tomava o poder na China, travava-se a Guerra da Coreia – e Kim Philby e outros faziam a sua carreira nos Serviços Secretos ingleses e americanos ao serviço do KGB, a cujas brigadas de execução entregaram milhares de anti-comunistas europeus. A Guerra Fria esteve longe de ser sempre incruenta. Os estatutos do Partido Comunista Americano juravam lutar pela “instauração do socialismo segundo os princípios científicos enunciados pelos grandes mestres da humanidade Marx, Engels, Lenine e Estaline”, em nome, claro, da paz no mundo e da fraternidade dos homens. O autor de The Front escreveu mais tarde Inside Out: A Memoir of the Blacklist (1996): é na sua própria experiência que o filme se baseia bem como noutras histórias verdadeiras; ele foi um de vários argumentistas que durante alguns anos só puderam trabalhar no cinema americano sob nomes supostos ou emprestados. Tinham mais sorte do que os realizadores nas mesmas circunstâncias, que dificilmente se podiam esconder. O testa de ferro da história é um banal empregado de cafetaria que empresta o nome a várias vítimas da lista negra e acaba por assumir a pele que envergou (ecos de “O General della Rovere” e de “A sombra do guerreiro”?): nesse papel Woody Allen teve talvez a sua mais notável interpretação ao serviço de outros argumentistas e realizadores. A visão que Bernstein nos apresenta dos seus camaradas é, naturalmente, cor-de-rosa. O filme, dirigido por Martin Ritt, um realizador sólido mas nunca especialmente inspirado, não vai muito além da pesada mediania que caracterizou toda a sua carreira.

https://www.youtube.com/watch?v=QuAWRf1CmiQ

Na Lista Negra (Guilt by Suspicion, 1991)

A batalha por Hollywood travou-se em grande parte no terreno dos que escreviam, em particular, para começar, no campo da luta pelo poder na Screen Writers Guild. Para falar apenas de alguns dos mais conhecidos, premiados e bem pagos dos argumentistas proscritos, Bernstein de The Front nasceu em 1919, Abraham Polonsky em 1910, Alvah Bessie em 1904 – Dalton Trumbo, agora biografado cinematograficamente (a crítica de Eurico de Barros já foi feita aqui), em 1905. Fizeram-se homens nos tempos da Depressão, da confusão ideológica do New Deal, da aliança com a União Soviética na cruzada anti-fascista da Guerra de Espanha e na Segunda Guerra Mundial. John Howard Lawson – o decano dos Hollywood Ten – nascido em 1894, foi durante muitos anos o chefe da secção do Partido Comunista em Hollywood sob as ordens de V. J. Jerome, comissário cultural do Partido em Nova Iorque; foi o primeiro Presidente da secção Oeste do grémio dos argumentistas; publicou em 1953 um livrinho de leitura muito instrutiva intitulado Film in the Battle of Ideas. Irwin Winkler, que escreveu e dirigiu “Na Lista Negra”, é um produtor e realizador doutra geração: a sua carreira no cinema começou em fins dos anos 1960 (da série dos “Rocky”, que produziu do primeiro ao mais recente, até “O Lobo de Wall Street”, passando por ‘Tudo bons rapazes”). “Guilt by Suspicion” (um dos sete filmes que realizou, sempre com uma mínima correção profissional) é a história de um realizador a quem a famosa caça às bruxas dá cabo da vida – na versão simplificada geralmente aceite. Quem quiser uma visão mais completa e menos conformista destes dramas encontra-a, por exemplo, em Hollywood Party, de Kenneth Billingsley, e em Pour en finir avec le maccarthyisme, de Jean-Paul Török, luzes sobre a lista negra em Hollywood. O protagonista de “Na lista negra”, por acaso, não é argumentista, é um realizador, interpretado por Robert de Niro – que uns anos depois aceitou, a par de Martin Scorsese, entregar o Oscar honorário a Kazan.