É a primeira vez que acontece em Portugal. Aos 12 anos, o filho mais velho do ex-ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho e da apresentadora de televisão Bárbara Guimarães, vai ter um advogado a representá-lo no processo de regulação de poder paternal que opõe pai e mãe.

Foi a própria criança a expressar essa vontade ao pai. E o advogado de Manuel Maria Carrilho, Nuno Gonçalves da Cunha, fê-la chegar ao Tribunal de Família e Menores de Lisboa. Desde outubro, com a entrada em vigor do novo Regime Geral do Processo Tutelar Cível, qualquer criança maior de 12 anos pode, nos casos em que os interesses dos pais e da criança estejam em conflito, solicitar expressamente ao tribunal a constituição de um advogado, autónomo dos advogados dos pais. O advogado será pago pelo Estado, como defensor oficioso.

Mas o que é que isto representa para a criança em causa? É melhor? Pior? Que garantias tem o menor de que o seu testemunho será preservado? E como se reconhece qualquer tentativa de manipulação por parte de um ou de ambos os pais para influenciar o testemunho do filho? Ter um advogado significa exatamente o quê? E com que sequelas saem as crianças destes processos litigiosos? O Observador ouviu vários especialistas que trabalham com crianças que se veem, de um dia para o outro, no meio de lutas entre pais e mães. As opiniões — embora todos considerem que estão a defender o superior interesse da criança — dividem-se.

Rui Alves Pereira é sócio da PLMJ e presidente da associação “A Voz da Criança”. Terá sido o seu nome o indicado pelo advogado de Manuel Maria Carrilho para defender o filho. O advogado, especializado em família e menores, não confirma, dizendo apenas que “essa é uma questão que deve ser apreciada pelo tribunal” e não por ele.

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Mas, enquanto presidente da “A Voz da Criança”, Rui Alves Pereira sempre foi a favor da possibilidade de o menor ter acesso a um advogado. E sobretudo de este ser escutado em tribunal. “O que nós fazemos na associação é reunir, à volta de uma mesa, advogados, juízes, procuradores, mediadores, psicólogos, e debater o direito da família. Um dos assuntos sempre debatidos foi o da audição da criança. É verdade que a audição era permitida antes, mas agora, com este novo Regime [Geral do Processo Tutelar Cível], está prevista diretamente na lei. Está lá expressa. Já a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, falava nesse direito da criança a ser ouvida. E Portugal ratificou essa convenção”, recorda.

Regime Geral do Processo Tutelar Cível

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O que diz, afinal, o Artigo 18.º do novo Regime?

1 – Nos processos previstos no RGPTC é obrigatória a constituição de advogado na fase de recurso.

2 – É obrigatória a nomeação de advogado à criança, quando os seus interesses e os dos seus pais, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto, sejam conflituantes, e ainda quando a criança com maturidade adequada o solicitar ao tribunal.

As diretrizes do comité de ministros do Conselho da Europa, de 17 de novembro de 2010, defendem o direito das crianças a estarem “individualmente representadas por um advogado” nos processos em que “haja, ou possa haver, um conflito de interesses” entre a criança e os pais. E Rui Alves Pereira recorda-as repetidamente enquanto explica o novo Regime Geral do Processo Tutelar Cível (e o artigo 18.º deste). “O que a lei agora diz é que é obrigatória a nomeação de advogado à criança, quando os seus interesses e os dos seus pais estejam em conflito, ou quando esta o solicitar ao tribunal. O que quer isto dizer? Quer dizer que a partir do momento em que a criança tem direito a um advogado, o interesse do processo passa a ser ela e não os pais.”

Mas conseguirá uma criança discernir sobre o que é melhor para si? E qual é o lugar do advogado? “Eu não defendo uma ditadura da criança, em que as suas vontades se sobreponham às dos pais, dos adultos. Não é isso. O que defendo é que o processo não pode ser de um pai contra o outro, mas da criança. O que importa para mim, como advogado, é o seu superior interesse. Mas suponhamos que a criança quer ir viver com o pai, porque com ele só joga PlayStation o dia inteiro e não tem que fazer os deveres de casa. Aqui, a vontade dela não deve ser considerada por mim. Eu devo defender o que é melhor para o meu cliente, sim. Mas também devo sentar-me, conversar com ele — mais a mais sendo uma criança — e explicar-lhe o porquê daquela decisão não ser a melhor para ela”, explica o advogado Rui Alves Pereira.

“A criança deve ser livre para brincar e livre de não ter que tomar decisões sobre com quem quer ficar ou não”

Maria Saldanha Pinto Ribeiro é presidente do Instituto Português de Mediação Familiar. E ainda graceja quando se lhe ouve dizer que a mediação familiar [que surgiu pela primeira vez na década de 1970 nos Estados Unidos] está “há 25 anos a dar os primeiros passos” em Portugal. Mas o passo que deu com o novo Regime Geral do Processo Tutelar Cível foi enorme. É que a mediação passará a ser aconselhada como alternativa aos julgamentos pelos próprios juízes.

“A lei não acaba com os julgamentos. Não é isso. O que a lei diz é que, para resolver o processo de regulação de poder paternal, primeiro recorrer-se-á a uma conferência de pais, depois a uma audiência técnica especializada e, por fim, à mediação familiar. Se nenhumas destas resultar, aí sim, recorre-se ao julgamento”, explica Maria Saldanha Pinto Ribeiro.

O que não pode acontecer mais é o caso arrastar-se durante anos num tribunal. “É a criança quem mais sofre com isso”, avisa, relembrando: “O importante é procurar um consenso, simplificando. E a mediação é rápida, pacífica. São os interesses da criança que estão sempre no centro da mediação. São elas o cliente do mediador, não os pais.” Mas nem todos os processos se resolvem na mediação. “Quando há violência, não se resolvem. Quando os pais simplesmente não se ouvem, quando há mágoa, desconfiança, não se resolvem. Ou dificilmente se resolvem”, lamenta a presidente do Instituto Português de Mediação Familiar.

No processo de mediação familiar, o mediador, ao contrário de um juiz, não ouvirá a criança. A conversa é feita a dois, entre os pais e com o mediador presente. Mas nos casos em que só o tribunal resolverá o processo de regulação de poder paternal, Maria Saldanha Pinto Ribeiro é a favor da audição da criança. Mas não concorda com tudo o que se lê no novo Regime Geral do Processo Tutelar Cível: “Quanto à criança ser ouvida, sim, é importante. Quanto a ter um advogado, o chamado terceiro advogado, creio que isso só irá judicializar ainda mais a família, irá causar maior sofrimento na criança, e é pior. Quem deve resolver o problema em tribunal são os pais, não a criança. A criança deve ser livre, livre para brincar e livre de não ter que tomar decisões sobre com quem quer ficar ou não”, alerta.

João Mouta não é mediador familiar. É presidente da “Pais para sempre”, uma associação para a defesa dos filhos e dos pais separados. Mas também nela se medeia a relação familiar deles. Ou o que sobra dela. E o que sobra são quase sempre os filhos. E estes nem sempre são a prioridade dos pais. “A criança idealiza que os pais dela vão ser marido e mulher para sempre. E nem sempre é assim. O que nós tentamos na nossa associação é minorar esse sentimento de perda. Porque se o casamento não é para sempre, os pais são-no. A criança não vai ter outros. O que fazemos é uma mediação familiar — isto quando não há casos de litígio, casos de abuso ou violência –, sentamo-nos com a criança, com os pais, e procuramos um acordo. Um acordo que, mais do que beneficiar um dos pais – muitas vezes os pais pensam primeiro neles e nunca nos filhos –, beneficie a criança”, explica.

O presidente da “Pais para sempre” não se surpreendeu com a notícia de que as crianças poderão, hoje, ser representadas em tribunal por um advogado. Afinal, “ele” sempre existiu. “Se recuarmos 20, 30 anos no tempo, vemos que a criança sempre foi representada em tribunal. Não era por um advogado, mas por um procurador do Ministério Público, aquilo a que se chamava de curador. Era ele o responsável por defender o superior interesse na criança, mesmo que contra — e isso aconteceu muitas vezes — a vontade dos pais. A criança sempre teve no direito português quem a representasse. O litígio sempre existiu e vai continuar a existir”, lembra.

Mas João Mouta não crê que nomear um advogado seja o mais aconselhado para defender a criança: “O curador de menores era mais do que suficiente. O problema é que essa figura foi sendo secundarizada nos últimos anos. A representação dos menores era entregue até aqui exclusivamente ao Ministério Público. Mas a escassez destes magistrados face ao elevado número de casos, não beneficia em nada interesse das crianças.”

O advogado tem a obrigação de defender aquilo que o seu cliente lhe pede que defenda. É esse o seu trabalho. E é um trabalho diferente do do curador do Ministério Público. “O que o advogado lhe vai pedir é que escolha entre o pai ou a mãe. E fará tudo o que está ao seu alcance para que a criança fique com o pai que escolheu. Ora, não se pode pedir isso a uma criança. Claro que se o advogado for um profissional honesto, cuidadoso, como acredito que será, o que fará é desempenhar o mesmo papel que o curador desempenhava e defender os superiores interesses da criança. Quando há, por um exemplo, um pai que é agressor, e a criança quer ficar com ele, o advogado deverá optar por seguir o que o cliente – no caso, uma criança — lhe pede, ou aquilo que é melhor para ela? As crianças têm direito a ser crianças. A brincar. Não a ter advogados e ter que decidir”, alerta João Mouta.

Depoimentos de crianças sem sigilo, mas divulgação pode ser crime

Algo que também penaliza a criança é a audição judicial. Mas não a audição em si: “A audição da criança está garantida há muitos anos; a Declaração Universal dos Direitos da Criança, da qual Portugal é subscritor, di-lo claramente”, relembra o presidente da “Pais para sempre”. O que penaliza a criança é quando o que nela se diz sai da sala de audições para a rua. “A audição da criança não é como a dos adultos. Seja uma criança ou um pré-adolescente, ambos serão ouvidos por um juiz num ambiente informal, talvez no gabinete, a sós e não na sala de audiências. O que não pode nem deve acontecer é o que se diz lá dentro sair cá para fora, seja para os próprios pais ou, quando são casos mediáticos, para a comunicação social. Isso só vai fragilizar ainda mais a criança“, lamenta.

No caso do filho de Manuel Maria Carrilho e Bárbara Guimarães, acabou por ser divulgado o que disse no depoimento efetuado em janeiro no Tribunal de Família e Menores (na audição estiveram presentes a juíza, uma técnica especializada e o Ministério Público) no âmbito do processo de regulação do poder paternal decorrente do pedido de guarda partilhada efetuado pelo pai.

Mas é possível prometer à criança que os pais nunca saberão qual foi o seu depoimento e o que disse de um e de outro? Não. Aliás, os pais têm todo o direito a saber e, caso entendam, formular perguntas ao filho adicionais às da juíza. Mais: os advogados destes poderiam estar presentes na audição e, por lei, até seria possível colocarem perguntas durante o depoimento da criança.

Mas é este depoimento sigiloso? Também não. A lei n.º 141/2015, de 8 setembro, é clara: o depoimento da criança é “gravado em áudio ou vídeo” (neste caso, foi em áudio) e “as cópias desta gravação são entregues aos representantes legais dos pais”, os advogados. Então, qual foi o problema neste caso mediático? O problema é que, nem uma semana depois do depoimento, uma revista fazia capa com frases atribuídas à criança, anunciando ter tido acesso às suas declarações.

Na sexta-feira, o tribunal emitiu um comunicado a explicar os pormenores da audição, dizendo que a divulgação do depoimento viola os direitos do menor.

Mas se os depoimentos das crianças nos processos de regulação de poder paternal não estão sujeitos a sigilo, já a sua divulgação na imprensa pode ser considerada crime de desobediência, como explica o advogado Rui Alves Pereira ao Observador. “Não há sigilo, não há segredo de justiça nenhum, mas há crime de desobediência na sua divulgação quando se identifica a criança, por se consubstanciar que esta está numa situação de perigo. Por outro lado, o código deontológico dos media é claro quanto a estas divulgações e identificações de crianças em perigo”, lembra o advogado.

O jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado. O jornalista não deve identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes sexuais e os delinquentes menores de idade, assim como deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor”, diz o ponto 7 do Código Deontológico do Jornalista

Uma coisa é certa, a procuradora-geral da República considera que pode existir realmente crime de desobediência na reprodução pela imprensa do depoimento da criança e encarregou, no começo do mês, o Departamento de Investigação e Ação Penal de analisar os conteúdos em causa. Esta disposição, que até novembro passado só se aplicava a menores em processos de promoção e proteção, passou a aplicar-se também em processos tutelares cíveis, como é o caso da regulação do poder paternal.

E se a criança estiver a ser manipulada?

Mas quando se coloca uma criança — no caso que agora enche páginas de jornais, um menor de 12 anos — a responder a perguntas sobre o relacionamento dos seus pais, até que ponto se percebe se há ou não há qualquer género de manipulação por parte de um dos pais? Ou de ambos.

É aqui que pode surgir o conceito da alienação parental. O que é isto? A alienação parental surge quando um dos pais procura influenciar o filho (ou os filhos) a odiar o outro, construindo uma imagem negativa deste, o que levará ao seu afastamento. E é uma postura que surge sobretudo quando os pais estão em litígio pela guarda dos filhos. Em alguns países, incluindo Portugal, os Tribunais de Família e Menores estão atentos à alienação parental e, nos casos em que esta é detetada, pode acontecer a alteração do poder paternal.

“Os pais são figuras de referência, transmitem segurança aos filhos. Quando os pais simplesmente não se entendem num processo de divórcio, quando deixam de colocar o interesse dos filhos em primeiro lugar, passam-lhe uma mensagem de insegurança, de vulnerabilidade. E a criança sofre. No consultório, escuto que são elas as responsáveis pela separação dos pais. Ou que acreditam que os pais deixarão de gostar delas depois da separação. Isto ouve-se-lhes particularmente quando há um dos pais que sai de casa. Quando há alienação parental, quando um dos pais, às vezes de maneira subtil, faz por manipular, distorcer, programar a visão da criança em relação ao outro pai, uma criança que já se sente insegura, sentir-se-á mais ainda. Uma criança que sente culpa pela separação, sentirá mais ainda”, explica Inês Afonso Marques, psicóloga clínica.

A também coordenadora infanto-juvenil da Oficina de Psicologia recorda que, quando em tribunal é pedido à criança que escolha se prefere ficar com o pai ou a mãe, a criança não hesita em escolher. “Nunca se deve pedir a uma criança que escolha entre o pai ou a mãe. Mas muitas vezes eles escolhem. Se é verdade que se aliam invariavelmente ao pai mais próximo, mais forte, também é verdade que, quando há um litígio intenso entre os pais, as crianças optam quase sempre por se aliar ao que mais precisa delas. Elas assumem quase uma postura de adulto, de proteção para com o pai mais fragilizado. Mas, fundamentalmente, se se sentir em perigo, a criança opta por se aliar aquela pessoa que lhe confere maior segurança. É um instinto quase de sobrevivência.”

Há crianças cujos pais se divorciam quando têm cinco, seis anos, e se adaptam à situação. Há adolescentes, com 14, 15 anos, que também se adaptam. E depois há os que, adolescentes ou crianças, simplesmente não se adaptam. “Aqui, não é a idade que importa, mas a maturidade, as próprias características da personalidade destes. E qualquer situação traumática nesta idade, sobretudo quando há violência envolvida, quando há maus-tratos – mesmo que psicológicos – entre os pais, deixa marcas que permanecem para o futuro, para a idade adulta. Estas crianças serão, mais tarde, adultos com dificuldade em manter relações de afetividade. Temem-nas”, explica a psicóloga clínica.

Há, portanto, que acompanhá-las desde cedo, como Inês Afonso Marques o faz. Mas, muitas vezes, e também por causa da alienação parental “de que são as maiores vítimas”, não é fácil – ou pelo menos tão rápido quanto se julga – ajudá-las a ultrapassar a separação dos pais e, sobretudo, o processo de regulação de poder paternal.

“Quando a criança chega ao consultório, é crítica de ambos os pais e não só de um. E foca-se em coisas do dia-a-dia: não quero ficar com a mãe porque ela não me deixa usar o computador, não quero ficar com o pai porque ele me obriga a tomar banho. É raro ouvir-se da boca delas uma referência à violência, ao alcoolismo, algo que se escutaria da boca de um adulto. Esse tipo de rótulos, mais duros, normalmente são a imagem distorcida que um pai lhe cria do outro.”

Então, como ultrapassar os rótulos? Mas, acima de tudo, como resolver os problemas que deles resultam? “O que nós fazemos é, primeiro, estabelecer uma relação de confiança com a criança. Fazê-la entender que é natural que se sinta triste, zangada. No fundo, validar esses sentimentos. Porque há muitos casos de humor mais irritável, de alterações do sono, de falta de concentração na escola que derivam da incompreensão destes sentimentos por parte delas. Antes de mais, é importante validar os sentimentos, compreendê-los e depois geri-los. E se com os adolescentes essa gestão é feita com diálogo, nas crianças é feita de forma lúdica”, explica a coordenadora infanto-juvenil da Oficina de Psicologia.

O filho de Manuel Maria Carrilho e Bárbara Guimarães tem 12 anos. A irmã mais nova, quatro. O pai é ex-ministro da Cultura. A mãe, apresentadora de TV. O filho foi ouvido em tribunal. E a sua audição foi capa de revistas e primeira página em jornais. Quem a fez chegar às revistas e aos jornais? Ainda ninguém sabe. Aos 12 anos, será a primeira criança em Portugal a ter um advogado a representá-la num processo de regulação de poder paternal.