A publicação do livro Vozes de Chernobyl, da autora bielorrussa Svetlana Alexievich, peca apenas por aparecer em língua portuguesa quase vinte anos depois de ter saído do prelo em russo, prova de que os editores portugueses continuam muito desatentos ao que se escreve no Leste da Europa. Não fora o êxito da última obra desta autora no mercado livreiro francês — “O fim do homem soviético. Um tempo de desencanto” — e talvez a decisão da tradução das restantes criações literárias para português só tivesse sido tomada depois da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Svetlana Alexievich.

Mas mais vale tarde do que nunca e, no caso presente, nunca seria tarde porque — e não acho uma afirmação exagerada — estamos perante uma obra dramática de nível superior às obras de William Shakespeare e Dante. Os dois clássicos da literatura universal inventaram personagens, enquanto Svetlana Alexievich traz até nós seres humanos reais, que nos falam de infernos reais. O apocalipse alexievichiano é apresentado de forma nua e crua.

Hollywood tentou e continua a tentar representar em filmes o Apocalipse, mas nunca conseguirá igualar o realismo dos depoimentos recolhidos por Svetlana Alexievich entre as vítimas. “Para elas — escreveu — Chernobyl não é metáfora, não é símbolo, é a sua casa. Quantas vezes a arte ensaiou o apocalipse, experimentou diferentes versões tecnológicas do fim do mundo, mas agora sabemos com exatidão que a vida é capaz de ultrapassar qualquer obra de ficção científica!”

“Vozes de Chernobyl”, edição Elsinore, nas livrarias no próximo dia 29

A esposa de um dos primeiros bombeiros que se lançou ao combate mortal desigual, ainda mais desigual do que o duelo bíblico entre David e Golias, começa o seu relato no capítulo “Uma solitária voz humana” com as palavras: “Não sei do que hei de falar… Da morte ou do amor? Ou serão eles a mesma coisa… De qual deles devo falar?”. Estas palavras não ficam atrás das que Shakespeare utiliza no início do seu drama “Romeu e Julieta”:

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A triste história desse amor marcado
E de seus pais o ódio permanente,
Só com a morte dos filhos terminado”

A explosão no quarto reator da Central Nuclear de Chernobyl, que ocorreu na madrugada de 26 de Abril de 1986, não só constituiu a maior catástrofe tecnológica da história da humanidade, como foi uma das principais causas do fim do Império Soviético, porque mostrou a podridão e degradação tecnológica, humana e moral do regime comunista.

[veja aqui um excerto de um documentário do canal História]

https://www.youtube.com/watch?v=day7HsZ8TPA

Normalmente, quando falamos em Chernobyl, recordamos a Ucrânia, país onde se situa a Central Nuclear, porém Svetlana Alexievitch começa por recordar que a sua Bielorrússia natal foi a mais afetada pela radioatividade, morte que não tem cheiro, nem cor. Tendo dedicado algumas das suas obras às devastações provocadas pela Segunda Guerra Mundial no seu país, ela recorre a essa tragédia para que os leitores consigam fazer uma ideia da dimensão destrutiva da explosão incontrolada do átomo. Por exemplo, se as tropas nazis arrasaram 619 aldeias bielorrussas, Chernobyl contaminou ao ponto de obrigar a retirar a população de 485 aldeias. Se a radioatividade contaminou 4,5% do território da Ucrânia e 0,5% da Rússia, 23% do solo bielorrusso deixou de poder ser aproveitado.

E foi isso que a fez lançar mãos à recolha de testemunhos desse apocalipse. Escreveu a autora no décimo aniversário da catástrofe:

Bielorrússia… Somos para o mundo uma terra incógnita, uma terra desconhecida, inexplorada. ‘Rússia Branca’ é como soa aproximadamente o nome do nosso país em inglês. Todos conhecem Chernobyl, mas apenas em relação com a Ucrânia e a Rússia. Ainda precisamos de contar sobre nós…”

Desde o início que as autoridades comunistas soviéticas tentaram encobrir a catástrofe. Vangloriavam-se de ter construído centrais nucleares mas não se prepararam para situações extraordinárias porque elas não podiam acontecer no comunismo. E se aconteciam, por exemplo, a queda de aviões civis, naufrágios ou outras tragédias, estes acidentes não encontravam lugar na imprensa.

Aliás, o secretismo, a ignorância e a propaganda mentirosa contribuíram para o aumento considerável do número de vítimas da explosão do reator. Liudmila, a esposa do bombeiro, recorda: “Anúncio pela rádio: a cidade [Prípiat] será evacuada por três a cinco dias, que levemos os nossos agasalhos e fatos de treino, vamos ficar a viver na floresta. Em tendas. As pessoas até ficaram contentes: uma excursão de campismo! Vamos celebrar lá o Primeiro de Maio. Para variar. As pessoas preparavam espetadas para churrasco, compravam vinho. Levaram consigo as violas, os gravadores. Só as mulheres com os maridos sinistrados choravam.”

A vontade de encobrir as dimensões do perigo silencioso que pairava sobre milhões de pessoas era tão grande que a máquina comunista, ao mesmo tempo que enviava as suas esposas e filhos para lugares mais seguros, não desistiu de organizar manifestações de 1º de Maio, Dia Internacional do Trabalhador, até em Kiev, capital da Ucrânia.

Porém, os habitantes das zonas afetadas começaram a desconfiar que algo de anormal tinha ocorrido e que era preciso tomar medidas para combater a radioatividade. Como os boatos atribuíam propriedades curativas às bebidas alcoólicas, as pessoas correram para as lojas para comprar vodka, vinho, conhaque, qualquer coisa que defendesse os seus organismos.

Nem bombeiros, nem pessoal médico e sanitário estavam treinados para combater os “50 milhões de curies de radionuclídeos” que foram lançados para a atmosfera, por isso a grande maioria morreu pouco tempo após a tragédia.

Apesar de os serviços de segurança civil dos países vizinhos da URSS terem detetado níveis demasiadamente altos de radioatividade, as autoridades soviéticas continuavam a esconder as dimensões da desgraça, nomeadamente dificultando o trabalho dos jornalistas no país. O marido de Liudmila acabou por morrer num hospital de Moscovo e o funeral foi realizado debaixo de escolta policial: “«Não autorizamos a entrada no cemitério. Os correspondentes estrangeiros estão a assaltar o cemitério. Aguardem mais um pouco.» Os pais estão calados… O lenço da minha mãe é preto… Sinto que estou prestes a perder os sentidos. Entro em histeria: «Porque é preciso esconder o meu marido? Ele é… o quê? Um assassino? Um criminoso? Um delinquente? Quem é que estamos a enterrar?» A minha mãe: «Acalma-te, acalma-te, filhinha.» Faz me festas na cabeça, segura-me na mão. O coronel transmite: «Peço autorização para seguir para o cemitério. A mulher está a ficar histérica.» No cemitério fomos rodeados por soldados. Íamos sob escolta. O caixão também ia sob escolta. Ninguém foi autorizado a entrar para se despedir… Apenas familiares… Enterraram num instante. «Rápido! Rápido!», ordenava o oficial. Nem sequer deixaram abraçar o caixão”.

Os camaradas estrangeiros do Partido Comunista da União Soviética também procuravam amortizar as “calúnias imperialistas”. Nessa altura, estudavam na Ucrânia e Bielorrússia algumas dezenas de estudantes portugueses. Tendo em conta a gravidade da situação, Aníbal Cavaco Silva, então primeiro-ministro, dispõe-se a apoiar a retirada dos estudantes e familiares da Ucrânia. O Partido Comunista Português enviou instruções internas para que os estudantes recusassem a proposta para não contribuir para a “campanha difamatória” contra a URSS.

Svetlana Alexievich vivia em Minsk, na Bielorrússia, quando aconteceu a tragédia de Chernobyl. A jornalista nasceu em Stanislaviv em 1948. No ano passado foi distinguida com o Prémio Nobel da Literatura

Era preciso explicar aos soviéticos como é que se tornou possível uma avaria de tão grandes dimensões e, como a culpa não podia ser da desordem e irresponsabilidade criada pelo regime comunista, uma das principais pistas apresentadas era a de um “ato subversivo” de serviços secretos ocidentais. Svetlana Alexievitch descreve no capítulo “Entrevista da autora consigo mesma…” : “Na Zona e em redor da Zona… Surpreendia uma quantidade incontável de veículos militares. Marchavam soldados com espingardas automáticas novinhas em folha. Inteiramente apetrechados. Do que me lembro mais, não sei porquê, não são tanto os helicópteros e os veículos blindados, mas aquelas espingardas… Armas… Um homem com espingarda na Zona… Lá, a quem poderia ele atirar e de quem proteger? Da física… Das partículas invisíveis… Fuzilar o solo ou a árvore contaminados? Na própria central trabalhava o KGB. Procurava espiões e sabotadores, circulavam rumores de que o acidente era uma ação planeada dos serviços secretos ocidentais para minarem o campo socialista. «Havia que estar vigilante.» Este cenário de guerra… Esta cultura de guerra desabou aos meus olhos. Acabávamos de entrar num mundo opaco onde o mal não dava nenhuma explicação, não se revelava e não conhecia leis.”

Os “liquidadores”, nome que foi dado aos homens que combateram as consequências da catástrofe, estão entre as personagens centrais deste livro. A URSS atirou 800 mil soldados, com uma idade média de 33 anos, para as goelas do Moloch nuclear. E a jornalista coloca uma questão vital: “Ouvi a opinião de que o comportamento dos bombeiros que na primeira noite apagavam o incêndio na central nuclear e o dos liquidadores lembrava suicídio. Um suicídio coletivo. Os liquidadores trabalhavam muitas vezes sem equipamento especial de proteção, iam inquestionavelmente para os sítios onde até os robôs «morriam», ocultava‑se‑lhes a verdade sobre as altas doses recebidas, e eles conformavam ‑se com isso, e depois ainda ficavam felizes por receber do governo diplomas e medalhas que lhes eram entregues antes da morte… E no caso de muitos deles, não houve tempo sequer para lhes entregar… Então, quem são eles, heróis ou suicidas? Vítimas das ideias e da educação soviéticas? De alguma forma, com o passar do tempo, esquece‑se que salvaram o seu país. Salvaram a Europa. Imaginem o cenário só por um segundo se tivessem explodido os outros três reatores…”.

As testemunhas

Os depoimentos dos entrevistados ajudam a encontrar resposta a essas e a outras perguntas, permitem-nos compreender uma coisa que antes de Chernobyl ninguém parecia suspeitar: “que o átomo militar e o civil são gémeos”, que não é preciso desencadear uma guerra, como aconteceu com os bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui, para que sejam exterminadas milhares ou milhões de pessoas, basta o erro humano, a demasiada confiança no poder do homem e da ciência para que o mundo assista a matanças nunca vistas: “Uma vez vi soldados entrarem numa aldeia abandonada pelas pessoas e começarem a atirar… Gritos impotentes de animais… Eles gritavam em todas as suas diferentes línguas… Já se escreveu sobre isso no Novo Testamento. Jesus Cristo entrou no Templo de Jerusalém e viu animais preparados para o sacrifício ritual: degolados, a esvaírem‑se em sangue. Jesus gritou: «Vós tendes transformado a casa de oração em covil de salteadores.» Bem podia ter acrescentado: em matadouro… Para mim, centenas de biodepósitos deixados na Zona significam o mesmo que santuários antigos. Mas de qual dos deuses? Do Deus da ciência e do conhecimento, ou do Deus do Fogo? Neste sentido, Chernobyl ultrapassou Auschwitz e Kolymá. Ultrapassou o Holocausto. Chernobyl sugere finitude. Vai de encontro ao nada.”

E mesmo no meio desse inferno, alguns conseguem manter o sentido de humor, embora próximo já do desespero. Um dos militares, alegando a impotência sexual provocada pela radioatividade, revela a existência de uma “reza do liquidador”: «Senhor, já que fizeste de modo que eu não possa, faz então de modo que eu não queira.» E remata: “Vão todos pró…!”

Foram muitos os habitantes da Zona, palavra que designa a região mais afetada pela radioatividade, que não quiseram abandonar os seus lares, principalmente idosos, condenando-se assim a uma solidão quase absoluta Mikháilovna Kuzmenkova, professora da Escola de Educação Cultural de Moguilev, realizadora, recorda uma história que lhe foi trazida dessa região:

Ficaram na aldeia dois velhos, marido e mulher. No inverno o velho morreu. A velha enterra‑o sozinha. Levou uma semana a cavar uma covinha no cemitério. Agasalhou‑o com um casaco quente de pele de ovelha para ele não ter frio, pô‑lo num trenó infantil e levou‑o ao cemitério. Enquanto ia, lembrava ‑se da sua vida com ele… Cozinhou a última galinha para o almoço fúnebre. Atraído pelo cheiro, veio um cachorro faminto. E a velha teve com quem conversar e chorar…”

Durante esta catástrofe vieram também ao de cima as qualidades humanas mais negativas. Liudmila precisa de subornar o pessoal do hospital para poder visitar o seu marido; não obstante os altos índices de radioatividade, os saqueadores, como verdadeiros abutres, entraram pelas casas abandonadas e roubaram tudo o que se podia vender, mesmo que isso fosse um verdadeiro perigo para a saúde pública.

A explosão no quarto reator da Central Nuclear de Chernobyl abalou irremediavelmente o sistema comunista na URSS, constituindo um dos momentos de transição da “glasnost” (transparência, informação mais aberta, mas ainda coada) para a liberdade de expressão no país. O reformador Mikhail Gorbatchov só no dia 14 de Maio se apresentou perante as câmaras de televisão para falar aos soviéticos sobre a tragédia, mas com uma meia verdade: “… Fomos atingidos por uma desgraça. Pela primeira vez enfrentamos uma força tão terrível como a energia nuclear descontrolada”, sublinhando que “o pior já passou”. Não, o pior estava para vir…

No dia 29 de Maio, o dirigente soviético é mais preciso numa reunião do Bureau Político do PCUS sobre o mesmo tema, apontando algumas das causas da explosão: “Esbarrámos com o efeito do hábito e de uma irresponsabilidade impressionante. Devemos olhar para isto com toda a seriedade. Estamos sob o controlo do seu povo e sob o controlo de todo mundo. O que aconteceu diz respeito a todos… Diremos sinceramente a todo o mundo o que aconteceu. Agora é preciso, antes de tudo, pôr em ordem a segurança nas Centrais Nucleares em funcionamento…”

Visita guiada

Em abril de 2011, visitei Chernobil por altura do 25 aniversário da tragédia, ia integrado num grupo de jornalistas estrangeiros. Tratou-se de uma experiência inesquecível. Diria mesmo que parece que entrei num mundo que se encontrava noutra dimensão, uma espécie de paraíso terrestre.

Densas florestas de pinheiros e bétulas dominavam uma paisagem bucólica e só um check-point na estrada que liga Kiev à Central de Chernobil e o ruído dos dosímetros nos obrigaram a voltar à tragédia de 26 de abril de 1986.

Os dosímetros, aparelhos que detetam o nível das radiações, assinalavam em Kiev 12-13 miliroentgen/hora — um valor normal. Mas no check-point Ditiatkin, a cerca de 30 quilómetros da central, os ponteiros subiram para 30.

Depois de um rigoroso controlo de passaportes, tal como numa fronteira entre dois países, entrava-se na chamada “zona restrita” de Chernobil, dominada por casas e edifícios abandonados, alguns deles já em ruínas.

A central de Chernobyl em Abril de 1986, pouco depois da explosão

O sol brilhava, fazia calor e o céu estava limpo. A primeira paragem foi no estádio de futebol de Chernobil para ver os primeiros carros blindados que combateram, após a explosão, o incêndio, a fuga de radioatividade. Os funcionários da central recomendaram aos jornalistas que não se aproximassem das máquinas devido ao nível de radioatividade, mas foram muitos, principalmente operadores de câmara e fotógrafos, que não acataram as ordens.

Ao lado do estádio, estendia-se uma alameda ladeada de lápides com nomes de heróis soviéticos que combateram nessa região durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ao fundo, as cúpulas douradas de um templo ortodoxo e casas abandonadas da Rua Soviética.

As ruas estavam completamente desertas e limpas (são lavadas todos os dias para não permitir a concentração de radioatividade). Apenas se viam no asfalto pequenos insetos vermelhos. No meio de tanto silêncio, o canto dos pássaros parecia música num lugar encantado. Ficava-se com um sentimento de paz interior. Como chegámos cedo a Chernobil, poderia parecer que, dentro de algum tempo, as pessoas iriam sair das suas casas para passear na alameda, fazer compras nas lojas ou ir para o emprego. Mas não, estávamos mesmo numa cidade fantasma. Apenas no chão se via numerosos pequenos escaravelhos vermelhos.

Chegámos a um novo check-point: “Kopatchi”, a dez quilómetros de distância da central. Depois veio a “floresta ruiva”, assim chamada porque os cones das árvores adquiriram essa cor devido ao elevado nível de radioatividade.

Na cidade de Pripiati, ou melhor, daquilo que resta do lugar onde residiam milhares de funcionários da central de Chernobil e suas famílias, vê-se à entrada, na parede de um dos prédios, algumas das letras enormes de uma quadra do hino soviético: “O Partido de Lenine, força do povo, conduz-nos para a vitória do comunismo”.

“Era uma cidade de habitantes maioritariamente jovens, muitos engenheiros, intelectuais, com um nível de vida mais alto do que noutras regiões da Ucrânia”, recordou Alexandre, um dos motoristas que participou na retirada dos habitantes após a explosão na central.

Neste momento, o nível de radioatividade aqui é cem vezes superior à norma. Não toquem nas plantas, nem pisem a relva, andem pelo asfalto”, previne Iúri, funcionário do Ministério para Situações de Emergência da Ucrânia que acompanhou quase uma centena de jornalistas.

“Restaurante”, “Casa da Cultura Energuetik”, “Hotel Polessia”, edifícios em ruínas, com aspeto de terem sido frequentemente pilhados. “A rede que isola a zona não parou os saqueadores. Eles faziam e fazem buracos, entram na zona e levam dos edifícios tudo o que podem: móveis, aquecedores, tudo o que é feito de metal, para vender, não obstante, tratar-se de materiais radioativos”, disse-nos Andrei, um dos guardas da zona.

Numa das entradas do “Hotel Polessia” via-se no chão a fotografia de um ator de Hollywood, cuja carreira cresceu depois de Chernobil, o que significava que alguém continuava a entrar ilegalmente na cidade. Em Kiev vim a saber que há várias agências de turismo que organizam excursões radicais ao território afetado pela radioatividade, onde vivem milhares de pessoas que se recusaram a abandonar os seus lares logo após a tragédia ou voltaram para eles algum tempo depois.

A próxima paragem foi o quarto reator da central nuclear. Coberto por uma pesada couraça de betão e metal, edificada à pressa pouco depois da explosão em 1986 para travar a fuga da radioatividade, necessitava de uma nova cobertura. Por enquanto, apenas estão lançados os alicerces do novo sarcófago.

Depois de conversarmos com o Ministro para Situações de Emergência da Ucrânia e com o diretor da central, fomos almoçar no edifício principal. Foi-nos garantido que os alimentos eram ecologicamente puros. Pelo menos no gosto, não senti nada de especial.

Após o almoço, chegou a hora de sair da “zona restrita”. Novamente os check-points, onde as máquinas de controlo mostraram que os níveis de radioatividade eram mais baixos e que nós estávamos “limpos”. Era o regresso à “zona da normalidade”.

Esta foi uma das mais memoráveis viagens da minha vida. É muito difícil explicar o que se sente em situações dessas, mas acho possível imaginar se lermos o livro “Vozes de Chernobyl” e, depois, vermos, por exemplo, o filme “Stalker”, do famoso realizador russo Andrei Tarkovski.

[veja o trailer de “Stalker”]

Esta obra é um grito, um aviso ao Homem, que pensa ser o senhor do mundo. Se o é, então gere mal a casa onde ele próprio habita. E por ignorância ou desleixo, deixa o mundo cada vez mais inseguro às gerações futuras. Um dos personagens deste livro, um militar liquidador, lançou fora toda a sua roupa depois da missão em Chernobyl e levou para casa um bivaque para oferecer ao filho. Dois anos depois, a criança morreu vítima de um tumor no cérebro.