São mais de 500 páginas de cartas, e-mails e mensagens de pessoas em sofrimento “com dificuldades em lidarem com a sua orientação sexual”. Tudo recebido e guardado por Ana Zanatti. Pelo meio, a autora revisita os seus diários de adolescente, com as mesmas dúvidas e questões que os jovens de hoje lhe colocam. Mudaram as leis, mas as mentalidades não mudaram assim tanto, sublinha a autora.

A travessia percorrida pelas pessoas LGBT é a linha condutora do livro “O Sexo Inútil” (Sextante Editora), que chega esta terça-feira às livrarias. Em entrevista ao Observador, a autora de 66 anos reflete sobre o preconceito, assume discriminação no meio do espetáculo, revela que houve quem recusasse participar neste livro com medo de prejudicar a carreira e diz que nunca andou escondida.

Este livro resulta de uma série de cartas e de e-mails que lhe enviaram. Em particular, de uma rapariga: a Joana.
Sim, uma jovem que me pediu auxílio e com a qual me correspondi ao longo de um ano, na tentativa de a esclarecer. Trazia na ideia um novo projeto de escrita onde gostaria de refletir sobre a dignidade e o preconceito. Estava a ter acesso a uma história muito recente de alguém que lutava com o preconceito e sentia a sua dignidade posta em causa. Achei que podia ser interessante usar parte dessa correspondência, perguntei à jovem se ela me autorizava, a resposta foi positiva. A partir daí comecei a colher outros testemunhos e o livro foi crescendo.

Mas ela começa por lhe escrever com uma dúvida sobre o percurso profissional, porque quer seguir teatro e não sabe se o deve fazer.
Sim, ela também tinha essas dúvidas. Isso não é mentira. Mas por detrás disso havia outras questões.

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É esse o padrão das cartas que lhe enviam? Começam sempre por outros caminhos?
Geralmente, sim. As pessoas raramente são diretas. Encontram formas indiretas de abordar o que as preocupa, arranjam subterfúgios. Esta jovem referia muito algumas situações e personagens dos meus livros. Percebi que essa insistência talvez escondesse outra questão que ela temia revelar. Dei-lhe tempo, deixei que a revelasse quando achasse o momento certo.

A Ana diz que “muitos homossexuais temem ser homossexuais”. Porquê?
Repare: se as pessoas sabem que à sua volta há olhares que condenam, muitas vezes dentro da própria casa, na família, atemorizam-se. Ninguém gosta de ser mal visto pelos outros, com reprovação, ou troçado. E a maior parte das pessoas sabe, e sente, que o preconceito existe. No seio das famílias, nas escolas, nos empregos. Uma grande parte dos homossexuais ainda teme o olhar e o juízo da sociedade em que se move. E não quer conviver com essa rejeição.

Ou seja, uma pessoa homossexual pode até desejar não ser homossexual.
E porque é que isso pode acontecer? Porque sabe que quem apresenta certas diferenças é olhado de forma diferente e nem sempre abonatória. Esta jovem dizia às vezes: “quem me dera ser igual a todos os outros. Assim ninguém reparava em mim”. E não se trata de reparar no bom sentido, mas antes de apontar o dedo, rejeitar, recriminar, recusar direitos, atentar contra a dignidade. Mas nós próprios, se nos sentimos alvo de discriminação também temos ferramentas para lutar e devemos usá-las. Podemos fortalecer a nossa estrutura interna aumentar a nossa auto estima, não temer o julgamento alheio, não nos atemorizarmos, não precisarmos de constante aprovação dos outros, estarmos em paz com a pessoa que somos. E no momento em que estamos em paz com quem somos, nada nem ninguém nos perturba e temos mais força para lutar pelo que nos é devido.

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Ana Zanatti tem 66 anos. É atriz, apresentadora, autora de programas e canções e tem já vários contos, poemas e livros publicados.

Numa entrevista, a Ana disse que se “contam pelos dedos” as figuras públicas que assumem a sua homossexualidade.
É verdade. Houve algumas pessoas que eu quis incluir aqui neste livro com o nome delas e elas disseram-me “não”. Ou porque as famílias não sabem, ou porque isso ia ser um choque para as famílias se eles falassem publicamente dessa questão, ou porque temem represálias em questões profissionais. Temem que a imagem deles ou delas possa sofrer com o facto de revelarem a sua homossexualidade.

Mesmo tendo já uma carreira consolidada?
Às vezes, quanto mais consolidada, pior. Porque têm mais medo que aquilo que já conquistaram se possa desmoronar. As pessoas temem que esse edifício possa ruir ou que possa ficar mais vulnerável. Tenho pena que isso aconteça, por elas, mas respeito.

Mas também sou absolutamente contra que haja grupos ativistas LGBT a denunciar pessoas que têm cargos públicos e carreiras públicas. Que venham dizer que este ou aquele é homossexual. Acho isso terrível. Devem ser as pessoas a dizê-lo.

Alguma vez perdeu algum trabalho por ser quem é?
Sim.

Qual foi a justificação que lhe deram?
Nenhuma.

Como é que a Ana sabe que foi por isso?
Sabia. Não vou entrar em detalhes sobre as histórias. Mas a resposta é sim.

Como é que se lida com isso?
Obviamente que são situações que não agradam a ninguém. São revoltantes. Geralmente também difíceis de provar, como certos casos de assédio. Mas foram situações que, ao contrário de me deitarem abaixo, estimularam-me. Estimularam-me para me esconder ainda menos, para negar ainda menos a pessoa que sou. O filme “Carol” é um grande exemplo de uma pessoa que não deixa que a sua dignidade seja abalada perante circunstâncias muito adversas.

Quando a Ana assumiu em 2009…
Eu não assumi nada em 2009. Toda a minha vida convivi com a pessoa que sou.

Em 2009 a Ana participou no Movimento pela Igualdade no acesso ao Casamento Civil e, na apresentação, leu um texto em que disse: “Estou a reclamar os meus direitos como cidadã” e afirmou que não aceitava “perder direitos por ser uma minoria”.
Eu nunca andei escondida. Nunca escondi nada de mim em toda a minha vida. Não ando a fingir que sou de uma maneira e na verdade sou de outra. Não me apresento com determinadas pessoas para tapar alguma coisa. Não tenho nada a esconder, mas também não tenho nada para exibir. Sou uma pessoa como todas as outras.

Fui dar a minha voz quando essa questão se levantou para tentar contribuir para que essa lei fosse aprovada. O texto que li no cinema São Jorge foi o mesmo texto que li quando lancei o meu livro “Os Sinais do Medo”. Se isso serviu para alguma coisa, ótimo.

Desde que eu comecei a ter uma profissão pública, sempre ligaram esse assunto a mim. Não é desde 2009. Fui tentando salvaguardar o meu espaço — aquele onde eu não quero que as pessoas entrem.

Logo a seguir levou com uma chuva de telefonemas e de pedidos de entrevista…
Exatamente. Ao longo de 40 anos fui assediada por diversos jornais e revistas que apenas procuravam sensacionalismos e sempre me recusei a contribuir para especulações que acho muito discriminatórias. Só nessa altura é que surgiram alguns jornais e revistas mais credíveis a pedirem-me uma entrevista para tratar seriamente o assunto. Até à data nunca ninguém me tinha pedido uma entrevista que tratasse dignamente esta questão.

Porque as pessoas que a tinham questionado antes queriam saber os pormenores mais “mórbidos”, como a Ana diz.
Exatamente. E isso a mim não me interessa. Não gostaria muito de centrar estas entrevistas na minha história pessoal porque este livro não é sobre mim. Embora isso possa vender menos. Só entro aqui como testemunho porque, a determinada altura, senti necessidade de ir ver os meus diários. “Esta miúda agora, em 2012, está a viver isto. Como é que eu atravessei isto? O que é que eu disse? O que é que eu escrevi?”, pensei. Porque sabia que tinha guardado os meus diários. E quando os fui ler, comecei a partilhar alguns excertos dos meus diários com ela. Depois achei interessante incluir no livro a ideia de que, apesar de a Lei ter avançado, as mentalidades não vão à mesma velocidade. A forma de pensar de muita gente ainda está igual ou parecida àquela que havia há 40 anos.

A Ana diz que “entre o tempo dos seus avós e o de hoje não há assim tantas diferenças” em termos de mentalidades.
Ainda há muitas mentes por abrir e por esclarecer. Há muita falta de esclarecimento. As pessoas, no geral, sabem pouco sobre o miolo destas questões, como são vividas por dentro dos próprios, das famílias. Um jovem LGBT no seio de uma família homofóbica, que questões é que levanta? É bom que todos pensem seriamente nisso, que não achem que como as telenovelas, as revistas etc já falam do assunto, e por vezes até o exploram demais porque rende, é coisa para já ter sido ultrapassada. Não foi.

Qualquer pessoa pode vir a ter um filho homossexual, deparar-se com um irmão transexual, aqueles que já são pais podem deparar-se com essa questão, um casal pode separar-se porque um resolve assumir a sua verdadeira sexualidade não aguentar mais viver escondido ao longo de anos — e há muitos casos desses. No livro relato alguns. Esta é uma questão que atravessa toda a sociedade. E o meu livro, é para todas as pessoas porque todas as pessoas, mais tarde ou mais cedo, se podem deparar com uma situação para a qual não estão preparadas. E convém que saibam lidar com ela.

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O livro chega esta terça-feira às bancas. O prefácio é de Viriato Soromenho-Marques.

Tenho aqui alguns excertos do livro que gostava que comentasse. Diz a Ana: “Também eu, na adolescência, não percebia bem o que se passava comigo. As amigas a falarem de rapazes e eu, sem entusiasmo, lá participava nas conversas.”
Eu refiro isso no livro porque a jovem me diz várias vezes que se sente muito desenquadrada, como muitos jovens. Quando um jovem sente ou sabe que é homossexual, e no seu grupo de amigos a maior parte está a falar sobre as namoradas, ele não sabe muito bem o que é que há de dizer. Teme ser vítima de troça e de algum olhar de soslaio e cala-se. Acaba por ficar mais inibido e sente-se mais solitário.

Depois de lhe contar que tem uma namorada, a Joana diz-lhe: “Nos sítios públicos, a Sara e eu agimos como se fossemos só amigas. Mas um beijo rápido demora tão pouco que ninguém tem tempo para reparar e ativar os ‘mecanismos do preconceito’, pois não, Ana?”
É o o medo que ela tem, e que muitas pessoas têm, de ter manifestações públicas que podem chamar a atenção.

Hoje ainda não é bem visto duas mulheres ou dois homens terem manifestações públicas de carinho?
Depende dos olhares. Há quem passe e não ligue nenhuma. Assim como um casal de homem e mulher se podem beijar e ir de mão dada, é natural que dois rapazes ou duas raparigas vão de mão dada ou se beijem. Mas nem toda a gente tem esse entendimento.

Nós temos um povo que até é bastante pacífico. Não se manifesta muito. No fundo, as pessoas até podem ter um olhar crítico sobre o que viram, mas não o manifestam. Depois comentam em casa; se forem na rua acompanhados com alguém podem fazer assim com o braço [faz o gesto de bater com o cotovelo na pessoa ao lado], mas tudo disfarçadamente.

Outro excerto. “A Sara disse-me que, no fundo, o que queria mesmo era estar apaixonada por um rapaz, para deixar de ouvir os pais, especialmente a mãe, que umas vezes faz de conta que não sabe, outras massacra-a”.
Pois, porque isso evitava-lhe ter problemas com a família e ser confrontada com olhares reprovadores de outras pessoas. Aparentemente para ela era mais fácil que não fosse nada assim. “Pronto, passamos aqui uma esponja por cima disto tudo, eu afinal não sou nada disto e ninguém vai implicar comigo”. Mas isso é estarmos a fugir de nós mesmos. Não temos que fugir de nós, temos é de saber viver connosco. Há muita gente que vive a vida toda com a orientação sexual escondida e que tem vidas duplas. Eu sei de muitos casos desses.

A Ana diz que “aceitar” não é admissível porque aceitar pressupõe “tolerar” e “tolerar não é incluir”.
Pois. Eu não me lembro de ouvir dizer que alguém aceita determinada pessoa porque ela é heterossexual. Falar em “aceitação” é discriminatório e dá uma ideia de superioridade em relação ao objecto da nossa aceitação. As pessoas ouvem falar nos media dos temas LGBT, sabem que há leis, debates, e que não é politicamente correto ser preconceituoso. “Tudo muito bem, eu sou muito moderna e entendo tudo e todos”. Mas quando cai uma revelação lá em casa, poucos têm ainda capacidade de entender e de lidar com a situação. De incluir e abraçar os filhos. Claro que há também muitas excepções, felizmente cada vez mais. Mas há pessoas que aparentemente têm uma forma de estar muito aberta, mas confrontados com um filho homossexual, cai-lhes o mundo em cima.

Uma pergunta da Joana para si: “Se a Ana estivesse no meu lugar, frustrada e desesperada, com uns pais que só falam em namorados, o que fazia?”
Eu nunca respondia às perguntas dela quando ela me pergunta o que eu fazia no lugar dela. É ela que tem de tomar as suas decisões e fazer o que entender, responsabilizando-se por aquilo que faz. Eu disse-lhe muitas vezes: “Quando o teu pai e a tua mãe se escolheram um ao outro, foram eles que escolheram. Já lá vai o tempo em que os pais é que escolhiam os noivos e as noivas e em que os casamentos eram arranjados”. Isso tudo já acabou. Naquela idade estamos muito na dependência dos pais e queremos muito agradar-lhes. Não queremos dececioná-los. Temos dificuldade em confrontá-los com determinadas coisas.

Há algum Sexo Inútil?
Aos olhos de quem culpabiliza o ato sexual que não tem como fim a procriação, sim. É um ato não legitimado porque não se pode esconder atrás da ideia de “utilidade” que é dar continuação à espécie humana. As práticas eróticas ainda que legitimadas pelo amor, são aos olhos de muitos, condenáveis, associadas à ideia de pecado. Uma herança civilizacional, um estigma que ainda nos persegue. Mas não nos podemos esquecer que o amor, seja ele de que género for, é sempre fértil.

Ana Zanatti está nas Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, esta sexta feira às 15h para participar na mesa redonda “Quando escolhemos mudamos o livro”, juntamente com Andrés Barba, Filipa Leal, João Ricardo, Valter Hugo Mãe e a moderação de Francisco José Viegas