O Bloco de Esquerda diz que foi “humor”, as redes sociais não acharam piada, a Igreja Católica diz que foi uma “afronta” e as entidades que mais têm feito pela defesa dos direitos LGBTI não se pronunciaram oficialmente. Esta sexta-feira, o rosa fuschia do cartaz do Bloco que invadiu a Internet tinha um objetivo que podia ter sido simples: comemorar a aprovação da lei dedicada à adoção por casais do mesmo sexo — era, aliás, uma batalha antiga do partido.

Até aqui, nada de muito novo. Não fosse um pequeno ou grande (dependendo do lado em que está na discussão) pormenor: o rosa servir de fundo à figura de Jesus Cristo e o slogan da campanha ser “Jesus também tinha dois pais”. E quando a crença religiosa entra na discussão a história mostra que esta tende a ser perigosa. E não é de agora. Nem exclusivo da política — à esquerda ou à direita. Que o diga António, o ilustrador que em 1992 desenhou o polémico papa João Paulo com um preservativo no nariz. Recorda?

Preservativo Papal

A polémica acendeu-se, com a Igreja Católica a manifestar-se na comunicação social a propósito do desenho. Dezassete anos depois, a direção do Expresso decidiu escrever uma nota antes de publicar outro cartoon potencialmente polémico de António — com novo Papa e novo preservativo. Dizia o Expresso que, “em nome do direito à opinião, fazemos questão de respeitar a liberdade dos nossos cronistas e colaboradores”. E voltou a agitar a opinião pública.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Este não é o único exemplo. Ainda vê nas suas redes sociais a hashtag #jesuischarlie? Serviu para unir o mundo contra o atentado de 7 de janeiro de 2015 contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo, no qual os irmãos Saïd e Chérif Kouachi mataram 12 pessoas e feriram outras cinco. No centro desta ação terrorista estavam os desenhos satíricos que os cartoonistas fizeram do profeta Maomé. Nos dias que se seguiram, foram mortas mais cinco pessoas num assalto a um supermercado judaico.

O que faz com que se escreva Charlie Hebdo, Bloco de Esquerda e cartoons numa só peça? A religião. Melhor: o poder que a religião tem. E se o poder atrai poder, o que acontece quando a política utiliza a religião? “Recorre-se à velha técnica da publicidade, que passa por criar um inimigo comum”, afirma ao Observador Vasco Ribeiro, professor de Comunicação Política da Universidade do Porto.

Estes temas tocam muito nas estatísticas do eleitorado. Tentam captar a atenção através da velha técnica de recorrer ao medo, ao confronto. Aqui, acho que o termo correto é agressão. É um cartaz de agressão que utilizam para capitalizar uma medida que nem foi só deles, mas da esquerda no geral”.

O académico explica que esta técnica da publicidade funciona igualmente como estratégia de propaganda política — é aquela que permite criar medo num grupo ou adversário, com a expectativa de ser o emissor da mensagem o depositário da segurança. “Esta técnica, curiosamente, até é mais utilizada pelos partidos de direita”, diz, apesar de não estar particularmente surpreendido pela opção do Bloco de Esquerda.

“O Bloco sempre foi um partido de temas fraturantes e, estando agora muito colado ao poder, parece-me que sentiu uma necessidade de se diferenciar e mostrar à sociedade que ainda tem alguma irreverência e que continua a defender as causas fraturantes da sociedade”, referiu Vasco Ribeiro, sem deixar de sublinhar que a luta pela adoção de crianças por casais do mesmo sexo não foi uma iniciativa isolada do partido liderada por Catarina Martins.

Quem define os limites?

Diogo Anahory, da agência de publicidade BAR, diz ao Observador que, em publicidade, os únicos limites que não devem ser ultrapassados são os do bom gosto”, e não deixou a declaração sem um toque de provocação. “Tendo em conta este cartaz, estou certo que os ‘criativos’ do Bloco de Esquerda pensam de maneira diferente”.

Mas quem traça os limites? E, na história da política portuguesa, é o Bloco de Esquerda o primeiro partido a optar por cartazes polémicos? Não, como pode ver nesta fotogaleria:

9 fotos

A utilização da frase “Jesus também tinha dois pais” não é, contudo, nova. O Bloco de Esquerda explicou, em comunicado, que “é um velho slogan ​do movimento internacional pela igualdade de direitos”. Foi utilizada em 2013, no Canadá, por uma igreja anglicana para demonstrar tolerância para com casais do mesmo sexo. E mais tarde noutras cidades dos Estados Unidos.

Vasco Ribeiro acredita que a estratégia não foi inocente, mas que mediram o impacto que a iniciativa podia ter mais por “intuição”, porque conhecem o seu eleitorado. “O eleitorado do Bloco não é o tradicional católico, que jamais se revê na linha do partido. Com esta iniciativa, o Bloco vem capitalizar ainda mais eleitores descontentes com o PS”, afirma.

Recuperando as diferenças entre os partidos de esquerda e os de direita, no que diz respeito à valorização da família ou do indivíduo (se os partidos de direita tendem a sobrepor o coletivo, como a família, à liberdade individual, nos mais à esquerda acontece o contrário), Vasco Ribeiro conclui que o Bloco de Esquerda consegue, com esta campanha, quebrar ou colidir com as linhas orientadoras do próprio partido.

Esta não é, aliás, a primeira vez que o Bloco de Esquerda vê os cartazes que produz envolvidos em polémica, como pode verificar nesta fotogaleria.

“Trazem as convicções religiosas, que são da esfera privada, para a discussão pública. São valores da esfera privada que acabam por quebrar com aquilo que deve ser a neutralidade de um Estado, na separação que deve existir entre a Igreja e o Estado. E acho que isto é um péssimo serviço à luta que as entidades que defendem os direitos LGBTI têm vindo a desencadear nos últimos tempos. Criou rutura num tema que deveria unir”.