“O Renascido” já é um dos maiores sucessos da carreira da Leonardo DiCaprio e é, de longe, o maior sucesso da carreira do realizador Alejandro González Iñarritu. Deixemos de lado as explicações sofisticadas — a qualidade da fotografia, as comparações com Tarkovsky –, as explicações de má-fé — o sadismo dos espetadores, a curiosidade mórbida pela cena do urso — e as explicações sensatas — bom realizador, bom elenco, boa história, bom filme. O que é que sobra? A vingança. Nada como um bom filme de vingança para nos reconciliar com o mundo e fazer acreditar na justiça, mesmo que seja a de Fafe. De acordo com alguns estudos de universidades suspeitas, quem habitualmente vê filmes de vingança vive em média mais duas horas do que as pessoas normais. Tempo suficiente para ver mais um filme de vingança e perceber o mecanismo.

[Releia aqui a crítica de Eurico de Barros a “The Revenant: O Renascido”]

A receita dispensa a criatividade, basta cozinhar o protagonista em lume brando (ou à bruta) e, contra toda a lógica e os mais recentes avanços da neurologia, fazer com que ele sobreviva em condições (de início precárias, mas que gradualmente se avizinham dos super-poderes) para levar a cabo a sua vingança. No princípio, há um tiro. Um esquema pérfido. Uma traição. Um bando de malfeitores a entrar por uma casa e a dar cabo de uma simpática família. Para efeitos narrativos, o herói deve ficar como morto. A morte de familiares próximos é opcional, embora o sofrimento tenha de ser inequívoco. A ideia não é estragar-lhe um fim-de-semana, é dar-lhe cabo da vida para que ele nem sequer pense em contratar um advogado para lhes pôr um processo.

Depois, reserva-se o protagonista durante um quarto de hora. Inoperacional, pode ficar em coma, numa prisão ou até mesmo morrer. Inicia-se a fase de recuperação (entre seis meses e catorze anos até às primeiras corridas no relvado e aos primeiros treinos com bola). Aqui, o vingador é curado pela medicina tradicional chinesa, recebe treino de artes marciais ou vai buscar uma espada ao Japão. Seja o que for, convém que seja oriental para dar aquela ideia de uma transformação não apenas física, mas também espiritual. Isso ou ter um companheiro de cela que lhe diga onde está enterrado um tesouro. Ou então servir de cobaia num projeto científico-capitalista-policial.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Passa-se então à fase cabidela, a vingança propriamente dita. E aqui tanto pode ser na modalidade mais requintada da listinha de compras (um a um) como na mais explosiva “limpo já o sarampo a estes gajos todos” (modalidade que tem o seu antecedente mais célebre na Odisseia, quando Ulisses fecha a porta do palácio e chacina os pretendentes que durante dez anos lhe delapidaram o património). No final, após se ter servido a vingança fria, assim-assim ou a escaldar, o espetador conhece aquela satisfação catártica que só os filmes de retribuição veterotestamentária oferecem.

Duro de Roer

Neste segundo filme da clássica trilogia seagaliana (composta por Nico – À Margem da Lei e Marcado para Matar) o famoso osteopata Steven Seagal acorda, após um coma de sete anos, com uma barba postiça. Quem é que o deixou naquela condição lamentável? Os maus, os mesmos que também lhe mataram a mulher e que, ao saberem que o polícia despertou do estado vegetativo, tentam liquidá-lo de uma vez por todas. Porém, Seagal é duro de roer, como provam as imagens da sua fuga do hospital. Ainda bastante debilitado, consegue fugir numa maca com o auxílio fundamental de duas atrizes muito expressivas: Kelly LeBrock e uma esfregona. Por mera coincidência, a enfermeira boazona está a tomar conta da casa de um médico fascinado pela cultura chinesa, o que desperta em Seagal o desejo incontrolável de cobrir o corpo com agulhas de acupuntura e incenso (Mason Storm – é este o ridículo nome do personagem – fala chinês porque em criança viveu dez anos na China, onde o pai era missionário…mas o que é que isto interessa?). Neste momento a barba desaparece, certamente para não atrapalhar o processo de vingança que se cumpre com o habitual número dos braços partidos e a cena mítica em que Seagal expõe de forma sintética a filosofia do filme: “This is for my wife. Fuck you and die!”

Robocop

Alex Murphy é um polícia à antiga com a mania que é cowboy. Por essa razão, julga-se capaz de enfrentar sozinho um grupo de bandidos liderado por um psicopata de óculinhos: o sinistro Clarence Boddicker. Resultado? Murphy acaba crivado de balas numa fábrica abandonada (ou seria um armazém? Na verdade, todos os filmes de ação dos anos 80 têm uma cena industrial que podia ter sido filmada nas instalações da siderurgia, no Seixal). A morte de Murphy já foi comparada à crucificação de Cristo e o seu renascimento enquanto Robocop é, segundo algumas opiniões extravagantes, uma colagem à ressurreição. Ou seja, há por aí umas pessoas – entre as quais me incluo – que vêem Robocop como a definitiva metáfora pascal. Mas se Cristo ressuscita, vai ter com os discípulos e depressa ascende aos céus, o Robocop tem alguns assuntos terrenos para resolver. E lá regressamos a uma fábrica em ruínas, cenário que felizmente não ocorreu a nenhum dos evangelistas ou hoje teríamos o Sermão da Fábrica Desativada.

A Noiva Estava de Luto

O mais hitchcockiano dos filmes de Truffaut (até tem banda-sonora de Bernard Hermann) é tão hitchcockiano que parece um filme de Brian De Palma. Inspirado num romance de Cornell Woolrich (Janela Indiscreta é baseado num conto dele), é a história de uma mulher que, no dia do casamento, vê o marido ser morto à porta da igreja. Os responsáveis pela morte acidental são cinco amigos. A noiva, que para todos os efeitos fica emocionalmente mais morta que viva (a cena inicial mostra a sua tentativa de suicídio), ressuscita com um único propósito: vingar-se daqueles que lhe tiraram o grande amor da sua vida. A sucessão lenta de homicídios rigorosamente planeados e executados é a marca de água do filme, mas… uma morte no dia do casamento, uma noiva à procura de vingança, uma lista de alvos. Isto faz lembrar alguma coisa? Quentin Tarantino diz que não.

Kill Bill

Aqui está o filme que junta todos os ingredientes do verdadeiro filme de vingança, a ponto de ser quase uma paródia. Beatrix Kiddo – a Noiva –, uma assassina a soldo, está um pouco desiludida com a sua profissão e resolve procurar paz e sossego numa vilória americana. Só que Bill, o seu mentor, patrão e pai da criança que ela carrega no ventre, não concorda com a inesperada opção de carreira. No dia do casamento de Beatrix com aquilo que para todos os efeitos é um figurante, Bill e o resto da companhia matam os convidados e – pensam eles – a Noiva. Mas ela sobrevive e, depois de quatro anos em coma, desperta e põe logo a cabeça do tipo que a tentava violar em diálogo com uma porta. Congemina então um plano de vingança que passa por adquirir uma espada japonesa, aprender artes marciais com um chinês voador e, finalmente, eliminar os antigos comparsas. O último, claro, é Bill. Para mal dos nossos pecados cinéfilos, o clímax é o momento mais soporífero do filme, um encontro final e demasiado palavroso entre Beatrix e Bill. Nem a Five Point Palm Exploding Heart Technique (excelente nome para uma banda de garage rock da Califórnia) nos acorda da letargia.

O Corvo

Aqui também há uma espada japonesa, embora seja usada pelo vilão. O guitarrista Eric Draven (Brandon Lee, nome que deve ser sempre antecedido do adjetivo “malogrado”) e a namorada planeiam casar-se no dia de Halloween. Casamento num filme de vingança? Nunca! Na véspera os noivos são assassinados por um bando de criminosos do piorio, acontecimento que, naturalmente, lhes arruína os planos (como se vê, não há nada que revolte mais um personagem do que uma festa de casamento estragada por um homicídio). Um ano depois, graças à intervenção sobrenatural de um corvo, Eric regressa do mundo dos mortos e não é com intenção de fazer uma tournée, nem de compor uma balada lacrimogénea em homenagem à amada. Como é de esperar, regressa para se vingar dos assassinos. Vai eliminando um a um, até que estes percebem que a invulnerabilidade de Eric depende do bom estado de saúde do corvo. Num claro atentado aos direitos dos animais, o passarinho leva logo uma chumbada, mas a ideia é apenas tornar mais emocionantes os minutos finais. Acaba tudo bem: morrem todos.

https://www.youtube.com/watch?v=rEfMQKaAhfs

O Conde de Monte Cristo

A mãe de todas as histórias de vingança foi escrita no século XIX por Alexandre Dumas e foi adaptada inúmeras vezes quer para cinema, quer para televisão (o papel de Edmond Dantès, o Conde de Monte-Cristo, já foi desempenhado por Louis Jordan, Richard Chamberlain, Guy Pearce ou Gérard Depardieu, por exemplo). Apesar das muitas reviravoltas, do contexto histórico em que a ação decorre e dos enredos paralelos, a espinha dorsal da narrativa é bastante simples e aí reside a sua força e universalidade: três homens (Mondego, Danglars e Villefort) contribuem para a ruína de Edmond Dantès, acusando-o injustamente de um crime pelo qual ele é condenado a prisão perpétua no Chateau d’If. Note-se que a acusação é feita na véspera do casamento de Edmond com Mercédès, uma catalã nada independente. Será um companheiro de cárcere, o Abade Faria, a revelar-lhe a localização de um fabuloso tesouro. Dantès foge da prisão e, depois de encontrar o tesouro, assume uma nova identidade – o Conde de Monte-Cristo – para se vingar dos homens que o traíram. Por muito más que sejam as adaptações – a de 2002, com Guy Pearce no papel principal, é francamente chata – ninguém resiste a ver os momentos em que o Conde, ao concretizar a vingança, revela a sua verdadeira identidade. Podemos ir todos para casa com a sensação do dever cumprido.

Outras vinganças

O Justiceiro da Noite: é preciso fechar os olhos e acreditar com todas as forças do nosso ser para imaginarmos Charles Bronson no papel de um arquiteto liberal (no sentido americano do termo). O que vale é que isso dura menos de metade do filme e no resto do tempo temos o bom e velho Bronson a fazer justiça pelas próprias mãos nas ruas de Nova Iorque.

O Cabo do Medo: este foge à regra. Aqui, é o vilão quem procura vingança. Max Cady sai da prisão decidido a atormentar o advogado que não soube defendê-lo. Tendo entrado analfabeto para a prisão, Cady sai de lá capaz de discutir direito penal com Rogério Alves. O que não significa que não planeie uma vingança violenta.

Vidas Privadas: este não é um “filme de vingança”, mas é um filme sobre vingança. Um grande filme, diga-se. Os pais de Frank veem o assassino do filho escapar a uma condenação em tribunal. O que fazer quando a justiça tarda ou falha? Pois é. Lex talionis. Ou como diz o outro, olho por olho.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor, e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015

[volte ao início aqui]