No dia a seguir à cerimónia dos Óscares de 2015, o nome de Gonçalo Jordão foi mais falado em Portugal do que o de Wes Anderson, o realizador do filme “The Grand Budapest Hotel”, que arrecadou quatro estatuetas douradas. Nessa madrugada, Gonçalo estava em Viana do Castelo. “Foi engraçado porque eu estava a ver a cerimónia em direto no Skype com amigos”, recorda ao Observador. Logo às 05h30 da manhã, recebeu a primeira chamada de uma jornalista. E o telefone não mais parou até à noite. É que o filme venceu na categoria de Melhor Direção de Arte e o artista português fez parte da equipa. Gonçalo Jordão tinha acabado de ganhar um Óscar.

Nos mais de 365 dias que já se passaram sobre aquela madrugada, o especialista em pintura decorativa já teve de pôr mãos à obra em muitos projetos, entre os quais as séries de televisão “Segurança Nacional”, cuja quinta temporada já terminou, e “Berlin Station”, que deverá estrear no outono. No que Gonçalo Jordão ainda não pôs as mãos foi na dita estatueta. “Nunca. Só peguei na estátua gigante aqui do estúdio”, brinca. “Como membros da equipa premiada podemos pedir um certificado ou uma estatueta, que temos de pagar. Ter o meu nome nos créditos finais como muralista é o meu Óscar“, remata.

Ter feito parte de uma equipa cujo trabalho foi reconhecido com a distinção máxima da Academia de Ciências e Artes Cinematográficas dos EUA abre portas. “Acho que funciona como uma garantia: ‘você foi premiado internacionalmente’. Mas para as pessoas que já conheciam o meu trabalho não muda nada. Há quase 25 anos que trabalho nisto”. Aproveita para lembrar que no cinema não há individual. “Estamos sempre presentes como parte de uma grande engrenagem.”

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Para onde quer que viaje, a sua “cartucheira” de pincéis também vai. © Hugo Amaral / Observador

Gonçalo Jordão estudou pintura na Escola Superior de Artes Decorativas, na Fundação Ricardo Espírito Santo. “O que há a ressalvar é que a escola de artes decorativas em Portugal é muito completa”, sublinha. “É isso que eu sinto em todos os momentos de trabalho fora.”

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E têm sido muitos. Um dos mais sonantes será o da série “Segurança Nacional”, para a qual o artista português só entrou no final do ano passado. Não será abusado dizer que a direção teria preferido nunca o ter tido de chamar. É que três dos grafitters contratados para dar uma maior autenticidade ao cenário de um campo de refugiados aproveitaram para criticar a série e escreveram frases como “Homeland é racista”. Como ninguém da direção sabia árabe, o episódio acabou por ser emitido assim nos Estados Unidos. “Chamaram uma nova equipa”, explica Gonçalo, que se viu novamente em Berlim, desta vez ao serviço de Carrie Mathison (Claire Danes) e da CIA.

Depois, transitou para “Berlin Station”, o novo projeto da Epix, protagonizado por Richard Armitage. “Fiz um trabalho interessante com imitações de materiais no set principal”, explica. Como a televisão tem muito menos dinheiro para filmar, os trabalhos passam sobretudo por pintar imitações de materiais e envelhecimento de superfícies. Entretanto, também pintou para o novo filme (“Vier gegen die Bank”) do realizador Wolfgang Petersen, que está a filmar na Alemanha, e para o quinto filme da saga “Bourne”, com Matt Damon como estrela principal. E mais não conta, porque o contrato de confidencialidade que cada profissional tem de assinar é maçudo e assusta. Na dúvida, Gonçalo prefere sempre não arriscar possíveis sanções.

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Projetos que estavam em produção nos super estúdios Babelsberg. Foto cedida por Gonçalo Jordão

Todos estes projetos de visibilidade internacional são enumerados de forma humilde, mas sem deslumbramento. O que o faz falar realmente com entusiasmo é a construção da nova Berlin Street, um dos cenários que está neste momento a ser construído nos estúdios Babelsberg. “É a obra da década na Europa em termos de cinema. Um projeto de 12 milhões de euros financiado pelo Estado alemão que vai atrair ainda mais produções internacionais“, adianta.

Gonçalo está a fazer a reprodução de fachadas de várias ruas de Berlim que permitam filmagens representando qualquer cidade no mundo, através de pintura decorativa sobre estuque e gesso. Esta aposta, somada ao financiamento público dado a todas as produções que escolham Berlim para trabalhar, tornam a cidade quase imbatível na captação de investimento cinematográfico. Ali fica até maio, embora os convites para que fica para sempre se sucedam. Não aceita porque, para além de gostar muito da sua vila natal, Mourão, em Évora, também gosta de fazer outro tipo de trabalhos artísticos.

Fumar um cigarro com Ralph Fiennes? Normal

Trabalhar naquele filme — qualquer filme — de Wes Anderson foi “um sonho tornado realidade”. Para não variar, as filmagens foram na Alemanha e Gonçalo viajou com um projeto em mente, após o seu nome ter sido sugerido pela qualidade das suas pinturas. Ao chegar aos estúdios Babelsberg, percebeu que o realizador americano e o diretor artístico tinham decidido trocar tudo por painéis com paisagens inspiradas no ambiente bucólico do pintor alemão Caspar David Friedrich.

“Foi muito difícil”, recorda, sobre os prazos apertados, a fotocópia pouco definida da pintura original que lhe deram para servir de modelo e a necessidade de manter sempre a criatividade em alta, apesar da constante azáfama. Com a ajuda de outro muralista, os dois conseguiram completar o trabalho com distinção. Antes de se ir embora, ainda lhe pediram para ornamentar um cofre de plástico para que se assemelhasse a um cofre de ferro de época, que aparece em grande plano.

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Gonçalo Jordão trabalhou nos painéis do átrio da entrada, que rodeiam a escada. Os painéis inspirados na pintura de Caspar David Friedrich, como o da cena da esquerda, marcaram o ambiente decorativo do hotel

Por ter sido um trabalho tão difícil, o Óscar teve um sabor ainda mais especial. ” Foi ótimo ver o Adam [Stockhausen, diretor artístico de “Grand Budapest Hotel”] a recebê-lo, ao lado dos outros todos”, recorda.

A pergunta que não cala é, claro, se conseguiu conviver com as estrelas de Hollywood. Cruzam-se o tempo todo, mas “o ambiente de trabalho num set daquele tipo é de muito profissionalismo. Não se pedem autógrafos nem fotografias”, esclarece logo. “Mas nada como aquele cigarro que fumei com Ralph Fiennes”, lá admite. “Estava muito frio em Goerlitz. Quando queria fumar era na neve, na rua, e um dia estava a fumar um cigarro, olhei para o lado e ali estava o Ralph. Disse assim: ‘it’s too bloody cold out here, let’s go in’”. Disse quem? Gonçalo? “Claro que não, ele é que disse. Eu era incapaz de ter dito alguma coisa, fiquei parvo a olhar para ele quando vi quem era”, recorda. Aquele ‘olá, passou bem?’ com Jude Law também ficou na memória. Mas não passa muito daí. “No trabalho não há vedetismo. Não há separações. Estamos todos a remar para o mesmo lado.”

Este domingo, podia receber o segundo Óscar da carreira

Gonçalo Jordão já realizou o sonho de trabalhar com Wes Anderson. Faltam concretizar pelo menos mais dois. “Adorava trabalhar com o Clint Eastwood. Acho que é um génio do cinema. E com o Spielberg, claro”. Este último sonho já podia estar realizado e o muralista podia estar neste momento nomeado para o seu segundo Óscar. É que Gonçalo foi convidado para integrar a equipa artística do filme “A Ponte dos Espiões”, realizado por Steven Spielberg. A equipa foi liderada por Adam Stockhausen. Mas o português estava a meio de um trabalho de marmoreados e douramentos a folha de ouro na nova Assembleia Nacional de Angola e não pôde aceitar. O filme protagonizado por Tom Hanks está nomeado a seis estatuetas, entre as quais… Melhor Direção de Arte, pois claro. Contudo, valeu o sacrifício da ausência. “Foi o maior trabalho que já fiz.”

A partir de maio tem projetos em Lisboa e Porto e resta um projeto no sul de França que ainda aguarda aprovação (sobre o qual ainda não pode adiantar nada). “Dizem que o Spielberg vai voltar aos estúdios Babelsberg”, conta. “Espero que sim, que possa acontecer. Acho que a Europa está mais competitiva em termos de preços e de talentos. É por isso que vêm fazer cada vez mais cinema na Europa.” A confirmar-se, Gonçalo terá a mala e os pincéis prontos para mais uma viagem ao melhor da arte de fazer cinema e televisão.