“Prometi que vinha e aqui estou eu.” Marcelo Rebelo de Sousa sai do carro e diz logo ao que vem. “Onde é que está a garrafa? Ah! Está aqui, vamos a isso.”

É uma garrafa de bagaço, porque as promessas feitas em campanha eleitoral são para cumprir. Na outra mão, uma caixa de chá de camomila. Os presentes são todos para uma convidada muito especial do lar de idosos da Santa Casa da Misericórdia do Barreiro, a quem o Presidente eleito tinha prometido uma visita. Marcelo saiu do Palácio de Queluz, e antes que seja tarde e vá de vez para Belém, volta mais uma vez ao seu habitat natural: a rua e as conversas demoradas com as idosas. “Está quase, quase”, diz. Até já tem o discurso da tomada de posse preparado.

Maria da Glória Mendonça, com 90 anos prestes a fazer no próximo dia 20 de abril, já o esperava lá dentro, sentada numa cadeira e apoiada na bengala. Foi ela a velhinha que em plena campanha eleitoral vaticinou a vitória do professor à primeira volta. Tinha a “certeza da velha”, dizia, enquanto confessava ao então candidato conhecido por ser hipocondríaco qual era o segredo da longevidade: um bagaço todas as noites antes de dormir, com açúcar.

“Se acertar na sua previsão venho cá tomar um chá e um bagaço consigo.” Ou Marcelo tomava o chá e a senhora o bagaço, ou ao contrário. Bem, a promessa ficou de que ambos bebiam dos dois. Bem dito bem feito.

Não estava nervosa, não, isso não é coisa que lhe corra nas veias. Impaciente talvez. Maria da Glória adora ser a estrela da companhia e sabia que o show estava prestes a começar. “Já começa mal, o Presidente já está atrasado”, comenta com o Observador. Não estava, faltava precisamente um minuto para a hora marcada. Mas quando se esteve o dia todo à espera parece que os minutos custam mais a passar.

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A verdade é que Maria da Glória hoje não está muito bem disposta, alguma coisa que comeu tê-la-á deixado indisposta do estômago e era para isso que o filho e a nora a alertavam antes da chegada do convidado de honra. “Se ele trouxer mesmo o bagaço a mãe hoje não devia beber”. Acha que não? Ao contrário de Marcelo, Maria da Glória não quer saber do que faz mal ou bem à saúde. Mais a mais, o bagaço nunca lhe fez mal — antes pelo contrário.

“Só um bocadinho no café, pronto”. Fechado.

E eis que chega o professor. “Aqui está ela, sempre bonita!”. Marcelo irrompe pelo hall de entrada do lar e dá logo de caras com a sua velha conhecida. E estava mesmo bonita: cabelo arranjado a preceito — “fui no sábado ao cabeleireiro, não foi?” — e o seu melhor “casaco de peles”, como diz. “Gente fina é outra coisa”, atira a velhota sempre pronta para entrar no jogo. Na altura da primeira visita, Maria da Glória estava com roupas de casa e um “barrete” na cabeça, disso Marcelo lembra-se bem. “Pois, nesse dia tinham-me enfiado o barrete”, brinca a nonagenária. Hoje não, nada de barretes. É dia de cabelo armado e maquilhagem perfeita.

“Vamos a isso? Dê-me lá o braço para não cair”. E não mais se largaram durante toda a visita à instituição, ora de mão dada, ora de braço dado, ora com a mãozinha no joelho. “Está tão quentinho!”, comenta a velhota. “Olhe que não é costume, deve ser de estar ao pé de si. Geralmente tenho a temperatura corporal sempre muito baixa, nos 35,3, ou nos 35,5, mas hoje por acaso sinto-me bem”, responde o novo Presidente enquanto se encaminham para a sala maior do lar, onde lhes esperava uma mesa recheada de doces e tudo quanto Marcelo gosta de comer.

Maria da Glória vai a comentar que ontem caiu e Marcelo Rebelo de Sousa assusta-se. “Caiu e está aqui assim? Não foi ao médico? Nesta idade o colo do fémur é um perigo”. Mas se um gosta de dar à língua, o outro também não lhe fica atrás e tem a resposta sempre preparada. “Não, eu cá sou rija”, atira a “Glorinha”, como é carinhosamente conhecida no lar.

Um copo de bagaço, um buda da sorte e uma coleção de fotos com políticos. Todos, menos Cavaco

Se está fresca vamos ao bagaço, então. Sentados à mesa farta, optam pelo arroz-doce e vão diretos ao assunto. Marcelo abre a garrafa que trouxe especialmente para a D. Glória (“Mas o senhor Presidente vai levá-la de volta? Não, não, fica cá para si. Estava a ver que não”) e serve dois copos. Menos para ela, que reclama uma dose maior. “Não estou muito bem do estômago mas isso assim também muito poucochinho”.

“Ui, isto é fortíssimo”, comenta o Presidente eleito, pouco habituado a este tipo de remédios. Para Maria da Glória, que lhe conhece bem o gosto, está “muita bom”, assim mesmo, com um “a”. Mas admite que é mais forte do que o que costuma beber. Ainda assim, vai todo.

Cumprida a promessa, não era só Marcelo quem tinha uma prenda para a velhinha que lhe tinha vaticinado a sorte. Maria da Glória também levava “uma prenda” no bolso. Um pequeno buda da sorte, que costuma trazer sempre na algibeira. Não é que seja budista, nem Marcelo é, mas isto da sorte tem muito que se lhe diga e o recém-eleito Presidente da República há de precisar dela. Por isso, o buda muda de bolso e entra diretamente na algibeira presidencial.

Tanto um como outro gostam de conversar e por isso ali ficaram largos minutos à volta da mesa. Maria da Glória confessa que tem o hábito de colecionar fotografias com políticos que visitam a instituição. Já tem do “Coelho”, de “Paulo Portas”, de “Sócrates”, de quem confessa que “gosta muito, não desfazendo dos presentes”, falta-lhe quem?

– “Falha-lhe… o Jerónimo de Sousa”, arrisca Marcelo.

– “Ah não, desse não gosto.”

– “Falta-me o Santana Lopes e também gosto muito da Paula…” “Teixeira da Cruz?” “Essa mesmo, também é boa praça”.

– “E com Cavaco Silva não tem?”

Ups, agora é que não correu bem. O filho de Maria da Glória recomenda logo ao Presidente eleito que “não puxe por ela”. “Não, não, desse não gosto nada”. Pois Marcelo ouve o sábio conselho do filho, e muda de assunto.

A coisa mais divertida que Marcelo fez desde que foi eleito

Foi a “coisa mais divertida” que já fez “desde o dia 24 de janeiro”, confessou Rebelo de Sousa, evidenciando que os tempos eram mais divertidos quando se andava na estrada a caçar votos do que propriamente quando já se carrega o peso da responsabilidade de ser o Presidente eleito. Marcelo foi até convidado a deitar-se num sofá de uma sala nova do lar, recém-inaugurada, de estimulação sensorial e cognitiva. Ficou tentado mas lembrando-se da pele que agora veste lá recusou. “Se fosse há um mês de certeza que me deitava”, admite.

A visita decorria normalmente, com a provedora da Santa Casa do Barreiro a explicar em detalhe as novas funcionalidades daquele espaço sensorial feito a pensar na estimulação dos idosos com demência. Mas Maria da Glória não estava muito convencida. “É uma seca”, segreda ao ouvido do novo Presidente, que se ri do comentário.

Escolheu a sua melhor roupa desde que, na última sexta-feira, foi informada da visita que ia ter, e agora que o momento está prestes a acabar, sorri de satisfação. Maria da Glória confessa ao Observador que não tinha “esperança nenhuma” de que o Presidente eleito fosse mesmo voltar ao lar para cumprir a promessa verbal que lhe tinha feito em janeiro. “Nunca pensei, quem sou eu para o Presidente da República me vir pagar o café?” “É uma pessoa que me impressionou muito”, responderia depois Marcelo Rebelo de Sousa aos jornalistas, explicando que, mais do que a sua genica e boa disposição, o que o marcou mais foi o comentário que a senhora fez na altura: “Oh, depois de ser eleito esquece-se e não volta cá.”

Precisamente. A ideia da visita, admite depois Marcelo, é mostrar que “quando se promete é para cumprir”. Certo é que o novo Presidente quer dar início a um novo tipo de Presidência, mais aberta e com maior proximidade à população. “O Presidente tem de estar mais nos sítios, não tem a mesma obrigação que o poder executivo, tem obrigação de estar mais perto das pessoas”, afirma. O que, diga-se de passagem, não é coisa difícil para ele. Falar de coisas sérias, para já, Marcelo não fala. Não comenta as declarações que o governador do Banco de Portugal fez em entrevista ao Expresso, não comenta as declarações da bastonária dos Enfermeiros sobre a alegada prática de eutanásia, nada. “Só depois do dia 9 de março.”

Por esta altura a conversa já era outra, mais complicada, e já Maria da Glória tinha voltado para dentro, de braço dado com Marcelo, que fez questão de a levar ao seu lugar pela mão, “para não cair”. Está entregue. Adeus, beijinhos, fotografias, muito obrigada. “Agora deixe-me lá ir mas é buscar a minha garrafa antes que me fiquem com ela!”. E lá foi ela.