Altas, baixas, com cabelo vermelho e sem cabelo, silicone nas mamas e peito quase liso, com e sem deficiências, bissexuais e transgénero. Assim são algumas das mais de 100 mulheres de Carol Rossetti. A ilustradora brasileira conversou com o Observador já em dezembro, por Skype, no programa ADN, quando o livro “Mulheres” entrou para a ribalta. Agora, Carol está em Portugal a apresentar a obra e sentou-se connosco, frente a frente, a dissecá-la. No Dia da Mulher, que se celebra esta terça-feira, a artista de Belo Horizonte explica como é que desconstrói os preconceitos numa mulher que sofre por ser muito magra e outra por ter celulite, ou uma que foi violada e outra que escolheu não batizar os filhos.
O “Mulheres” nasceu em 2014 mas a sua preocupação com a discriminação em relação às mulheres é mais antiga.
Sim, já pensava sobre estas coisas. Comecei a ler sobre feminismo quando entrei para a faculdade. Como o meu trabalho é mexer com imagem e com representação, tomei como responsabilidade pessoal mostrar mulheres no meu trabalho, fosse qual fosse, que não fossem apenas brancas, magras e jovens. Tentar mostrar mais diversidade.
O projeto nasceu com a Marina. A mulher que tem muito peso e gosta de usar um vestido com riscas horizontais, apesar de lhe dizerem que fica mal.
A Marina surgiu a partir de um comentário que uma amiga fez no Facebook ou no Instagram. Estava uma foto de uma mulher gorda que ela não conhecia e a mulher usava uma calça muito justa. E a minha amiga fez um comentário negativo, por ela ser muito gorda e usar aquela roupa. Essa minha amiga era uma pessoa muito legal, já me tinha defendido muitas vezes, já tinha defendido outras pessoas. Naquela altura eu me perguntei porque é que ela estava fazendo aquele comentário tão cruel, tão agressivo. Então eu quis fazer uma ilustração sobre uma menina gorda que usava um vestido de riscas, colocando-me no local daquela mulher das calças.
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Essa sua amiga agiu assim não porque fosse má, mas porque o preconceito já está quase integrado.
Sim, porque a gente faz isso. Fazemos esse tipo de crítica porque já estamos um pouco acostumados e habituados a criticar as outras pessoas. Mas temos que pensar que estamos a criticar uma pessoa como nós.
Que sugestões de mulheres é que lhe mandam?
Mandam-me muitos relatos de situações que aconteceram com elas. Por exemplo, uma garota que tinha uma doença, não era câncer, mas por causa dessa condição ela teve de rapar o cabelo. Ela dizia que, tudo o que era referente à beleza da mulher, estava de alguma forma centrado no cabelo. Quando ela se viu sem aquilo, sentiu-se sem base de auto estima. Eu pesquisei sobre isso na hora, encontrei muitas histórias e fiz uma ilustração.
Como é que criava cada ilustração?
Depois da ideia do tema, faço primeiro a ilustração. A minha preocupação era fazer uma mulher fisicamente muito diferente do desenho anterior. Para que ficasse sempre bem diversificado.
Há aqui um exemplo que é sobre uma mulher que amamenta em público. E em vez de fazer uma mulher branca a amamentar, faz uma mulher negra a amamentar. É isso?
Sim, sim. Ou seja, desenhar pessoas negras não apenas quando estou a falar sobre racismo, representar pessoas com deficiência física não apenas quando estamos a falar sobre deficiência. Tentava fazer primeiro um desenho que fosse bem diferente do anterior.
As reações são muito diferentes consoante o país ou a cultura.
Sim, tem diferenças marcantes. Um exemplo é a Amanda, que é uma mulher que não se depila. No Brasil, algumas pessoas ficaram muito revoltadas. Algumas falaram “OK, podes falar sobre aborto, mas sobre depilação, não. Isso é um absurdo. A mulher tem de se depilar.” E houve o oposto: essa imagem circulou na Suécia e uma moça disse que não entendeu porque é que ainda estávamos a falar naquilo, que era óbvio que ninguém se importava. Mas no Brasil ainda é uma questão muito grave.
E há outro exemplo sobre o aborto.
Sim, fiz uma ilustração sobre aborto, porque acho que é importante que seja legalizado. No Brasil só se pode abortar em três situações, como o estupro (violação) e o perigo de vida da mãe e, ainda assim, é muito desencorajado. Muitas mulheres não conseguem fazer um aborto, não tem a informação correta. Mas eu sei que isto já não é uma questão em muitos sítios.
Recebeu comentários agressivos?
Sim, sim (acena e sorri). Recebi vários comentários muito agressivos, mas mais de 95% são comentários muito positivos e afetuosos. Eu tento não apontar o dedo na cara de quem pensa diferente. Não digo “isso é uma forma errada de pensar”. Eu dou uma sugestão de aceitação e de tolerância.
Estas mulheres têm duas liberdades: é a liberdade de viver bem com o que nasce com elas, como um sinal grande no corpo, como a liberdade de escolha, como querer tatuar o corpo todo.
Sim, e existem em muitas dificuldades nas duas formas de liberdade. Quando pensamos em mulheres transexuais, por exemplo, essa primeira questão é muito grave. Não é uma escolha. A pessoa não falou ‘vou escolher identificar-me com um género diferente e sofrer o preconceito da sociedade’. E com a segunda liberdade é igual. Escolher uma profissão muito dominada por homens pode ser muito difícil para uma mulher.
Ou escolher ser stripper.
Sim. Eu tenho uma amiga que é professora de pole dance e não há nada de mais nisso. Ainda assim, ela enfrenta um grande preconceito. É um conjunto de valores que está ligado a uma profissão, a uma dança que, em algum aspeto, já vem carregada de preconceito. Ela não é stripper, mas e se fosse? Isso seria um problema?
Quase todos os nomes das personagens são fictícios, mas alguns são reais.
Há cinco personagens com nome, história e rosto real. Temos por exemplo a Nadia, que escolheu não batizar o filho dela porque ela não era religiosa. Achei este caso muito interessante porque, no Brasil, há uma pressão muito grande para batizar os filhos. “Se você não é religiosa tudo bem, mas batize a criança.” É incrível. Outra é a Whitney. Ela era dançarina e teve um problema de ovários policísticos que a fez ganhar muito peso, por isso parou de dançar. Dez anos depois de tentar perder peso, ela falou “não vou parar mais por causa disto”. Então ela voltou a dançar e reencontrou o amor-próprio dela, mesmo com muito peso. E começou a falar sobre isso. Foi muito bom. Ela foi a quarta ou quinta ilustração que eu fiz.
Quais são as maiores barreiras que as mulheres no Brasil enfrentam?
Há um grande preconceito relativo ao género e à raça. O Brasil discrimina muito as mulheres transexuais. Acredito que grande parte tem a ver com a ignorância. As pessoas não sabem do que se trata, não sabem o que é isso da identidade de género. A discriminação no Brasil assumiu um tom muito perigoso. Não é explícita. É muito comum as pessoas usarem expressões racistas mas até sem perceberem que estão a fazer isso. Por exemplo, o próprio termo “mulata”. Essa palavra vem de “mula”, uma mulher que era considerada boa para o sexo mas não para a procriação porque a mula é infértil. Era mulher para casos extraconjugais, mas nunca para formar uma família. A palavra continuou a ser usada, mas milhares de pessoas não sabem qual é a origem e não sabem como ela machuca as mulheres negras. E a palavra ‘mulata’ é usada também como uma tentativa de suavizar, como se ser negra fosse uma coisa ruim. Falam “ela não é negra, ela é mulata, é quase branca”. São muitas expressões desse tipo que reforçam um contexto de racismo no Brasil. No machismo é igual. São usadas expressões que as pessoas nem se apercebem, como “fazes isso ou aquilo como uma mulher”, como se fosse de uma forma ruim.
Como é que consegue ter aqui tanta variedade de mulheres?
São coisas que eu vivi, personagens que eu conheci, coisas que parentes meus viveram e as pessoas começaram a mandar sugestões. Mulheres do mundo inteiro começaram a construir esse projeto comigo. Quando eu não tinha ideias, a ideia chegava-me de alguma forma. Tem mulheres de todo o tipo. Com e sem deficiências físicas, altas e baixas, diversos tons de pele, e alguns tons de pele intermediários. Eu própria tenho um tom de pele intermediário.
Lembro-me de ver as comédias românticas de Hollywood e via muitas pessoas brancas e talvez uma pessoa negra. Mas não via nenhuma morena a meio do caminho, e eu achava que elas não existiam nos Estados Unidos [risos]. Eu quis pôr aqui pessoas de várias raças misturadas.
E um livro “Homens”?
O que é que distingue a mulher do homem?
Em grande parte, a cultura. É a cultura que diz o que podemos ou não fazer. Mulheres podem chorar, homens não podem chorar. Mulheres podem ser sensíveis, homens não podem ser sensíveis. Homens podem ser presidentes e mulheres ainda não. Agora talvez sim, mas ainda não muito. Existem grandes diferenças biológicas, mas poucas ditam o que eles podem ou não fazer. Podes dizer-me: “Mas só mulheres podem engravidar.” Mas um homem trans pode engravidar. Há homens trans grávidos hoje. Eles nasceram com corpo de mulher. Mas se identificam como homens, são homens. Então, é sobretudo a cultura que distingue os géneros.
Já recebeu ideias para ilustrações sobre episódios de discriminação com homens?
Eestou fazendo um projeto para mostrar questões que afetam os homens, mas não é uma versão do “Mulheres” em “Homens”. Isso seria uma caricatura. Não é para ser a mesma coisa porque, de facto, não é. As mulheres morrem mais por conta do machismo. Não quer dizer que eles não sejam afetados, mas são afetados de forma diferente.
E que formas de discriminação no masculino é que vai apontar?
Os homens têm mais dificuldade em lidar com sentimentos. É uma coisa que eu percebo por muitas amigas que falam disso em relação aos namorados. E não é porque eles não têm capacidade de se expressar, é porque são ensinados de que tudo o que tem a ver com sensibilidade vai para um lado feminino. E quando os garotos manifestam vontade de chorar ou de abraçar o colega, são um pouco reprimidos. E eles vão aprendendo a não desenvolver essa parte.
Mas já houve homens a pedirem para fazer coisas sobre homens?
Sim, já [sorri]. Por exemplo, houve um homem que se identificou com a ilustração da mulher que tem o cabelo colorido. Ele falou que a ideia era muito curiosa porque, quando um homem pinta o cabelo de uma cor, também é discriminado. Questionam logo a sexualidade, como se a cor do cabelo estivesse claramente ligada a uma orientação sexual.
“A igualdade assusta muita gente”
Ainda faltam aqui muitas mulheres?
Com certeza. Eu terminei o projeto porque queria fazer outras coisas. Mas eu sempre disse que este projeto tem potencial para durar para sempre. Este livro mostra várias mulheres e acho que é impossível que uma mulher não se identifique com nenhuma. São diversas situações que tento tratar sempre de uma forma natural, não agressiva, de uma forma carinhosa. E o meu carinho vai para todas as mulheres que estiverem lendo. Da mesma forma que eu tento abraçar as minhas personagens, tento abraçar cada leitor ou leitora.
Acha que a igualdade pode assustar?
Acho que assusta muita gente [risos]. Quando existe uma desigualdade, há alguém acima. Quando o que está em baixo vem para cima, a pessoa acima pode sentir que não é o outro que está subindo, é ela que esta baixando. Mas não é bem assim. Então a igualdade assusta, sim.
O que é que define uma mulher?
Ela mesma. Ela se define. O que ela é, o que ela acha que é, o que ela pensa que pode ser, o que ela quer e o que ela escolhe para ela mesma.