O escritor norte-americano Michael Cunningham foi o orador principal desta terça-feira, do 37.º Congresso da Associação Portuguesa de Estudos Anglo-Americanos na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Falou sobre tradução e, em declarações ao Observador, revelou mais sobre o seu processo “muito convencional” de escrever.

Publicou o primeiro livro, Golden State, em 1984 e desde então tem assinado obras de ficção, não-ficção, contos, argumentos e artigos para jornais e revistas. Continua a escrever por razões “um pouco misteriosas” e por “pensar constantemente em seres humanos e nas suas histórias”. Em 1999, o romance As Horas foi distinguido com vários prémios, entre eles o Pulitzer e o prémio PEN/Faulkner de Ficção.

Para o autor, ganhar um prémio “não significa que somos o melhor escritor”. O seu livro favorito é o próximo, que já começou a escrever e do qual desvendou um pouco. Mas antes do futuro foi impossível fugir da atualidade, sobretudo das recentes tragédias ocorridas na Europa.

Tem estado atento aos acontecimentos em Bruxelas?

Ainda estou em choque. Acho que estamos todos. Estou consternado e sinto-me um pouco atordoado. Está a tornar cada vez mais assustador. Honestamente… Estou em choque, não sei o que dizer. Estava em Nova Iorque no 11 de Setembro e foi um enorme choque também. Foi terrível. Felizmente Portugal continua a estar afastado disto.

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Já esteve por cá noutras ocasiões. Alguma vez pensou em passar uma temporada em Lisboa e escrever um livro, por exemplo?

É a quarta vez que estou em Portugal. Adoro Portugal, poderia viver em Lisboa. É uma cidade fantástica. Escrever um livro aqui… não é uma coisa que esteja fora de questão. Gostava muito, mas não sei se será possível. Dou aulas e seria difícil, mas gostava de vir e poder ficar algum tempo.

É professor de escrita criativa na Universidade de Yale [EUA]. A matéria das suas aulas e os seus alunos servem-lhe de inspiração, de alguma forma?

Sim, sou inspirado pelas conversas que tenho com os meus alunos. Até porque a maior parte dos meus amigos não são escritores. Só dou aulas no segundo semestre [spring semester], de janeiro a abril. Durante esse período sento-me duas vezes por semana numa sala com jovens inteligentes e brilhantes e falo sobre o que é “escrever”. Porque é que o fazemos? Como funciona? É muito bom para mim.

De tanto discutir o tema com os seus alunos, já conseguiu perceber afinal, porque escreve?

Sinto-me acometido a escrever, não consigo parar. Penso em escrever a toda hora, a todo o momento. A minha vontade de escrever é um pouco misteriosa. Mas sempre tive essa vontade, desde miúdo. Há algo na linguagem, na tinta, no papel que é muito excitante para mim.

Mas apesar dessa excitação, tem um método, uma regra?

Na verdade, é um processo muito aborrecido, muito convencional. Levanto-me de manhã e vou até um estúdio que tenho, a cerca de um quarto de hora a pé da minha casa, em Nova Iorque. Trabalho entre 4 a 7 horas por dia, logo pela manhã. Depois respondo a emails e faço o que toda a gente faz. É muito semelhante à maioria dos empregos. Sou muito regular a escrever. Preciso de o ser. Em ficção, é difícil crer no mundo imaginário que criamos. E penso que se sair desse mundo durante muito tempo deixo de acreditar nele. Tenho que o manter vivo durante todo o período da escrita. Por isso escrevo cinco, seis dias por semana. Só não escrevo aos domingos, aconteça o que acontecer. Se não é de mais, preciso um dia de folga.

Ou seja, está quase sempre a ler e a escrever.

Sim, é o meu trabalho. Passo grande parte do meu tempo a ler e a escrever. Mas também vou ao cinema, vejo televisão, estou com os amigos. Faço o que toda a gente faz.

E também dá palestras, como esta que deu em Lisboa. Veio falar sobre tradução, Found in Translation [literalmente, “encontrado na tradução”]. Porquê esse tema?

Vim falar enquanto escritor que escreve em inglês e é traduzido para outras línguas. Desde que comecei a ser traduzido que venho percebendo que a tradução é uma forma de arte. Não é nada semelhante a reescrever um livro noutra língua. Um tradutor re-imagina o livro noutra língua, re-imagina a linguagem. O vocabulário, os sons, as palavras, são diferentes. E encorajo os meus tradutores a sentirem-se livres para fazerem com que as frases soem melhor em português. Mesmo que não seja a tradução literal da versão inglesa. O som é muito importante para mim [estala os dedos]. A linguagem deve ter música, deve ser musical.

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Michael Cunningham nasceu em 1952 em Cincinnati, no Ohio (EUA) e estudou Literatura Inglesa na Universidade de Stanford, na Califórnia.

Lê outras línguas, além do inglês?

Leio alemão. As traduções alemãs dos meus livros são muito boas, muito boas. Mas talvez pense assim porque são as únicas nas quais eu posso verificar o que escrevi. Não costumo reler o que escrevi: quando o trabalho está feito, está feito. Leio apenas passagens minhas das traduções em alemão, para lhe tomar o sentido. E são muito boas.

Não se relê, mas que outros autores lê?

Leio coisas muito diferentes. Existem grandes obras da literaturas que ainda não compreendi completamente, mas neste momento estou a ler um romance recente. Um livro muito longo, A Little Life, de Hanya Yanagihara [720 páginas]. E leio as notícias todos os dias, sou viciado em notícias. Algumas pessoas não são viciadas em notícias, mas eu sou.

No meio de tudo isso, ainda considera as obras Ulisses, de James Joyce, e Rumo ao Farol, de Virgina Woolf, como “o pai” e “a mãe” da literatura anglo-saxónica moderna. E que livros considera “os filhos”?

Acho que somos todos filhos deles. Alguns são filhos melhor comportados que outros. Mas sim, acho que esses dois livros exemplificam a forma como a escrita inglesa e americana mudaram. Essa revolução ainda está em curso. Ainda escrevemos recorrendo a fórmulas que James Joyce e Virgina Woolf inventaram. Destes autores em diante, ainda não existiu outra revolução com o mesmo impacto.

Ganhou vários prémios, entre eles o Pulitzer, com o livro As Horas (1998). A sua escrita mudou depois de ter sido premiado?

Espero que não. O que espero é que cada livro seja melhor que o anterior. Sei o suficiente para saber que existem escritores extraordinários que nunca ganharam prémios. E sei também que ganhar um prémio envolve alguma sorte. Não significa que somos o melhor escritor, significa que, por sorte, tivemos o júri certo. Depois de o recebermos, devemos pôr o prémio de lado. Devemos sentir gratidão pelo reconhecimento e avançar rapidamente para o livro seguinte.

A personagem Laura Brown, do livro As Horas [interpretada no filme por Julianne Moore], é inspirada na sua mãe. Porque se baseou numa pessoa tão próxima?

A personagem não é literalmente “a” minha mãe. A minha mãe, como muitas mulheres da sua geração, dos anos 50, era doméstica e mãe. E isso não era suficiente para ela: era muito frustrada e guiada pelo objetivo de atingir a perfeição. A casa estava sempre imaculada, com tudo perfeito, o tempo todo. Ela devia ter tido um trabalho mais interessante. E quando andava a pensar em Mrs. Dalloway e Virginia Woolf, pensei em como ela era muito ambiciosa. Virginia Woolf queria ser uma grande artista e a minha mãe queria manter uma casa perfeita. Se colocarmos os resultados de lado e olharmos apenas para a ambição, o desejo de atingir a perfeição, seja através de um bolo ou de um livro, é feito do mesmo corpo de emoções. A minha mãe tinha o mesmo tipo de motivação que a Virginia Woolf e tal como ela também merecia estar no livro.

É habitual inspirar-se noutras pessoas que conhece para criar personagens?

Não necessariamente. Apenas escrevo sobre o que conheço e o que vejo. Não acho que saiba mais acerca da natureza humana que a maior parte das pessoas. Eu apenas escrevo sobre isso. Todos sabemos o mesmo acerca dos seres humanos, a única diferença é que os escritores passam a maior parte do seu tempo a escrever sobre isso. Tem apenas a ver com o meu foco no assunto. É assim que os leitores reconhecem uma personagem verosímil, porque sabem como as pessoas são. Não sou mais perspicaz que as outras pessoas, apenas penso constantemente sobre os seres humanos, as motivações de cada um, o que leva as pessoas a fazer certas coisas. Além disso, nem sempre o resultado final é o que imagino.

E como se ultrapassa essa frustração?

As nossas expectativas devem ser sempre superiores ao que conseguimos realizar. Isso significa que estamos a trabalhar arduamente, que estamos a dar o nosso melhor, que estamos a tentar fazer mais do que o que conseguimos. É o nosso trabalho mais duro.

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O mais recente livro de Cunningham, publicado no ano passado

Nos seus dois últimos livros [A Rainha da Neve, de 2014, e Um Cisne Selvagem e Outros Contos, de 2015, ambos publicados em Portugal pela Gradiva] — partiu dos contos de fadas de Hans Christian Andersen e transformou-os. Não acredita em finais felizes?

Algumas das histórias têm finais felizes. Sim, acredito em finais felizes, acredito que existem finais de todos os tipos. Nada nunca acaba realmente, a história apenas termina num determinado ponto. Cerca de metade dessas histórias têm finais trágicos e a outra metade tem finais felizes.

É assim que vê o mundo, dividido em duas partes iguais de coisas boas e más?

Acho que o mundo é demasiado vasto para ser dividido em percentagens.

Já disse que o seu livro favorito é sempre o que está a escrever no momento. Quer revelar um pouco sobre o que está a escrever agora?

Já escrevi umas cem páginas. É um livro abrangente, com muitas personagens em diferentes épocas. É um livro grande, fisicamente grande. Se o deixar cair em cima do pé, vai magoar-se.