Para se perceber a transformação que Leonel Pereira tem vindo a operar no São Gabriel desde a sua chegada ao restaurante, há três anos, nada como pôr as coisas em termos bíblicos: há um São Gabriel antes de Leonel Pereira (A.L) e outro depois (D.L).

O primeiro era um restaurante que estava nos arredores da Quinta do Lago, no Algarve, mas que podia estar noutro ponto qualquer da Europa. Isto porque estabeleceu, desde cedo, uma cozinha de matriz internacional, do eixo franco-suiço-alemão, para agradar à sua esmagadora maioria (também ela internacional) de clientes. Assim, pela cozinha passaram quase sempre chefs alemães — a exceção foi o coimbrão Albano Lourenço — como Wilhelm Wurger (que sairia para abrir o Willie’s, em Almancil), Jens Rittemeyer, Torsten Schulz ou Michael Grünbacher. Uma fórmula que lhe garantiu, desde 1995, presença constante no Guia Michelin, sempre com uma estrela.

Mas em 2013 o paradigma mudou. O restaurante foi comprado por um empresário português que contratou Leonel Pereira. O chef, natural de Martim Longo (concelho de Alcoutim, no nordeste algarvio), fora responsável, uns anos antes, por dar ao Panorama, do Sheraton Lisboa, uma cozinha verdadeiramente à sua altura. Tarefa nada fácil — até porque o restaurante fica no 26º piso do hotel –, mas amplamente conseguida. Além disso, já não era propriamente novato nestas lides: antes de chegar ao Sheraton fizera carreira em diversos outros grupos hoteleiros, com destaque para o Pestana, no Brasil.

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Leonel Pereira, o chef do São Gabriel. (foto: © Divulgação)

Leonel Pereira não quis mudar logo tudo de uma assentada. “O primeiro ano foi para voltar à terra e perceber o cliente São Gabriel”, recorda hoje. Nos primeiros tempos, procurou, sobretudo, melhorar o que havia para melhorar e introduzir alguns elementos novos de sua autoria (o foie gras com gel de vinho do Porto, por exemplo, ou a hóstia de camarão do rio). Quando encerrou essa primeira temporada à frente do São Gabriel — que como a maioria dos restaurantes algarvios do seu género, fecha entre novembro e fevereiro — fê-lo de consciência tranquila, mas sabendo que não tinha tido a visita de inspetores do Guia Michelin e que, por isso, era mais que provável que o restaurante perdesse a estrela. Assim foi. “Para a Michelin foi como se o restaurante tivesse começado do zero, por causa da mudança de gerência e de chef”, explica.

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A desilusão temporária não o afastou do seu percurso. Continuou a moldar o São Gabriel à sua imagem, com uma aposta nos menus de degustação criativos, que, conta, não eram o forte do restaurante. E comprova-o com números. “Tem sido sempre a aumentar: no primeiro ano vendemos 400 menus, no segundo 600 e no terceiro 1000.” Estima que terá renovado a clientela em cerca de 30%, com um aumento significativo de portugueses. E no final de 2014 recuperou a estrela perdida.

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A sala de refeições do São Gabriel foi totalmente renovada.
(foto: VASCO CÉLIO / STILLS)

No ano passado, Leonel Pereira assumiu também a gestão do restaurante e deu início a um processo de renovação do espaço que, espera, ficará concluído em 2017. Primeiro, tratou de arranjar o espaço exterior. “Costuma fazer-se de dentro para fora, mas nós fizemos ao contrário”, brinca. Este ano, renovou completamente as salas de refeições e o bar. Melhor, modernizou-as. “Isto era muito clássico, estilo igreja.” Do passado, em tons de azul, só ficou a porta, para, como diz, “manter alguma identidade”. A renovação estendeu-se também ao chamado winter garden, que antes, conta, “parecia a tribuna do estádio do F.C. Porto”. Percebe-se, por isso, o desabafo que atira a meio da conversa com o Observador: “Agora é que me sinto bem no meu restaurante.”

Mas o espaço não foi a única coisa a mudar. O nome do restaurante também mudou subtilmente, para melhor se entender o rumo da respetiva cozinha. E como? Acrescentando o sufixo “Creative Cuisine” a São Gabriel. E quão creative é esta cuisine? Muito creative. Tão creative, aliás, que Leonel se orgulha de fazer dois menus de degustação por ano e de não repetir pratos nem ficar com uns de anos para os outros. “Eu não tenho receitas, não guardo nada, quando acaba sigo para o próximo”, explica. Os clientes são sempre informados da data de mudança do menu e já houve quem tenha agradecido a gentileza. “Tenho uns clientes holandeses que no ano passado apanharam um voo de propósito para vir cá no último dia do restaurante repetir o menu.”, conta o chef.

Este ano, o menu de degustação principal (há outro a cargo do sub-chefe João Viegas, que ganhou o concurso Chefe Cozinheiro do Ano) dá pelo nome de Momentos Improváveis (95€/pessoa). É composto por cerca de uma dezena de pratos ligados, ao mesmo tempo, ao passado — nos sabores –, e ao futuro — nas técnicas e na apresentação. Porque é assim a cozinha de Leonel: “estou cada vez mais ligado à tradição para chegar ao futuro”, confessa. Uma tradição que remonta, por exemplo, ao tempo em que a sua família fazia enchidos de produção de caseira. “Há quem diga que nasceu a fazer bolos. Eu não nasci a fazer bolos, nasci a fazer enchidos. Por isso, tenho que me agarrar a essas memórias.”

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As chouriças de peixe criadas por Leonel Pereira, na cozinha do São Gabriel.
(foto: © Tiago Pais / Observador)

Dessas memórias nasceu um projeto que lhe ocupou boa parte do último ano: os enchidos de peixe. Algo que já queria fazer em Lisboa mas a que só agora se pôde dedicar.

Não foi fácil lá chegar. “Tirávamos um dia por semana, chamávamos-lhe o dia da chouriça, para fazer brainstorming ou experimentar receitas”, explica. A primeira a sair foi a de lírio e pescada. E o sabor é tão semelhante ao de um chouriço de carne que os próprios cozinheiros não deram pela diferença. “Dei-lhes a provar, um dizia-me que era de porco bísaro, outro que era de porco preto.”

Apesar da aparência divertida da criação, elas vêm com uma carga emocional associada. “Quando estou a fazer os enchidos lembro-me dos meus avós e de pessoas que me eram queridas que via fazer aquilo quando era criança.” Por isso preza muito o processo. Mais que isso: respeita-o. “Podia ter aqui uma mesa de enchidos, mas não podemos criar só por criar.” Por isso, além do tal chouriço de lírio e pescada, criou apenas, para já, uma morcela de choco fresco condimentado, em que a cor típica desse enchido é dada pela tinta do choco. Há outros na calha, mas vão ter de esperar. “Tenho uma lista de salsichas prevista, entre elas uma salsicha de plâncton, que ainda está em estudo”, revela.

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A morcela de chocos numa relação próxima com a dobrada de vitela. É a dobrada de chocos, o prato favorito do chef Leonel Pereira de todos os que criou para o menu Momentos Improváveis. (foto: © Tiago Pais)

Todas estas criações servem apenas um propósito: permitir que os pratos do menu Momentos Improváveis façam jus ao respetivo nome. Por exemplo, o chamado chouriço do mar é apresentado com as papas de milho típicas do Algarve interior. Já a morcela surge num prato que o chef apelida de “difícil” mas que, ao mesmo tempo, confessa ser o seu favorito: a dobrada de chocos. Dito com pronúncia algarvia soa a “dobrada de choques”. Bem que podia ser. É um prato onde a morcela e a dobrada (de vitela) se misturam, num jogo de texturas e cartilagens que resume e ilustra bem o tipo de desafios que este menu propõe a quem o escolhe. Isto sem falar nos pastéis de crista de galo com cabidela, em que a crista não só dá a forma como parte do recheio, ou noutros momentos igualmente improváveis, como aquele logo a abrir em que o mar e a terra do Algarve são postos à mesa em três elementos: o frango piripíri, a salada montanheira e o fitoplâncton. E muito mais haveria para escrever e revelar mas corria-se o risco de estragar uma experiência baseada não só na qualidade do produto mas também na improbabilidade e na surpresa. Assim, fiquemos por aqui.

Nome: São Gabriel
Morada: Estrada Vale do Lobo, Quinta do Lago (Almancil)
Telefone: 289 394 521
Horário: De terça a domingo, das 19h às 23h30. Periodicamente, também servem almoços ao domingo.
Preço Médio: 80 a 120€ por pessoa
Reservas: Aceitam
Site: www.sao-gabriel.com