O Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica (IBET) e a farmacêutica Merck anunciaram esta quinta-feira que vão trabalhar juntos num projeto pioneiro de combate à malária. O objetivo é encontrar medicamentos antimaláricos que atuem na fase hepática da infeção, ou seja, quando o parasita ainda está no fígado e antes do parasita começar a destruir os glóbulos vermelhos do sangue. O projeto contará também com a colaboração do Instituto de Medicina Molecular (IMM) da Universidade de Lisboa.

O parasita da malária é transmitido por um mosquito. Assim que entra na corrente sanguínea, o parasita viaja para o fígado, onde se vai instalar nas células e se multiplica. Ao fim de oito a 15 dias, o parasita é libertado na corrente sanguínea e começam a surgir os primeiros sintomas. No sangue, o parasita vai destruir os glóbulos vermelhos e continua a multiplicar-se. Finalmente, se a pessoa voltar a ser picada por um mosquito, o parasita entra no mosquito e pode voltar a ser transmitido.

Vídeo (em espanhol) sobre como o Plasmodium infeta e afeta os humanos.

Neste momento ainda não são conhecidos medicamentos que atuem nesta fase, porque não existem modelos laboratoriais que permitam o estudo desta fase do ciclo de infeção do parasita. Mas o IBET pode ter a solução para este problema: o instituto tem a capacidade de criar modelos tridimensionais com células de fígado humanas. E um modelo tridimensional deste tipo não é fácil de encontrar, frisou Bruno Wohlschlegel, director-geral da Merck. Assim, a Merck pretende investir 500 mil euros numa fase inicial do projeto. Se os resultados forem promissores a empresa farmacêutica está disponível para aumentar o financiamento em Portugal, acrescentou o responsável.

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Os hepatócitos – células do fígado – são colocadas num tanque agitador (biorreator) para se irem agregando e ajustando com a mesma estrutura que teriam num órgão real. O ambiente físico-químico e molecular que é criado, o oxigénio e nutrientes que são fornecidos, reproduzem o ambiente dentro do organismo e o fluxo sanguíneo. Mas o IBET não tem especialistas em malária, como referiu Paula Alves, diretora executiva do IBET, daí a parceria com uma equipa especializada nesta doença e no parasita que a causa, a do investigador Miguel Prudêncio, do IMM.

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Assim que o modelo de fígado infetado com o parasita da malária estiver preparado e pronto a usar em pequenas unidades idênticas, a Merck começará a testar todos os fármacos que detém neste momento e outros que estão a ser desenvolvidos na Universidade da Cidade do Cabo (África do Sul). De entre os milhares de compostos, a empresa espera encontrar algum que revele ter potencial para o tratamento da doença na fase hepática (quando o parasita ainda está no fígado). Os compostos químicos que mostrarem maior potencial serão testados e melhorados antes de entrarem em ensaios clínicos. Poderão passar ainda muitos anos até que tenhamos um medicamento no mercado, lembrou Bruno Wohlschlegel.

Também na fase posterior, quando se pretender testar a eficácia e a toxicidade do fármaco escolhido, o IBET poderá dar um contributo, porque todos os medicamentos que tomamos são metabolizados e transformados pelo fígado. As principais vantagens dos modelos tridimensionais que mimetizam o fígado são o uso de células humanas – que podem reagir aos fármacos de uma forma diferente do que os fígados dos ratos normalmente usados nas experiências – e a possibilidade de serem mantidos ao longo de vários meses, permitindo a repetição da dose.

“Para nós é importantíssimo que a Merck tenha confiança em nós e nos tenha concedido este projeto”, disse Paula Alves, diretora executiva do IBET.

O diretor-geral aproveitou o momento com os jornalistas para explicar porque estava entusiasmado com esta parceria. Primeiro, a Merck é parceira do IBET há mais de 20 anos e está bastante satisfeita com os resultados que têm alcançado. Depois, para Bruno Wohlschlegel, Portugal tem muito boa capacidade técnica e científica. E mais, o antigo químico preza o modelo encontrado em muitas instituições portuguesas, em que a ciência e tecnologia estão ligadas à academia, com a presença de professores e alunos nos institutos de investigação.

Bruno Wohlschlegel reforçou que a malária só será erradicada graças à colaboração. “Não será vencida por uma empresa, por uma instituição ou por um governo.” A Merck já forneceu milhões de medicamentos de fármacos para tratar doentes com malária em África, referiu o diretor-geral. E o objetivo deste projeto é que, caso venham a descobrir um fármaco eficaz na fase hepática, esse possa ser disponibilizado por um preço que as pessoas ou os governos possam suportar.

“Se 90% das pessoas que precisam do medicamento não conseguem ter acesso a ele é porque estamos a fazer alguma coisa de errado”, disse Bruno Wohlschlegel, director-geral da Merck, reforçando o compromisso da empresa na luta contra a malária.

Numa parceria diferente, em abril de 2015, a empresa biofarmacêutica do grupo Merck – Merck Serono – adquiriu os direitos de investigação do composto DDD107498, desenvolvido para combater a malária. Este fármaco resultou de uma parceria entre a Medicines for Malaria Venture, organização sem fins lucrativos da qual a Merck é parceira desde 2013, e a Universidade de Dundee (Reino Unido). O compromisso da Merck Serono é fornecer medicamentos antimalárico às populações que mais necessitem, estando em linha com os objetivos da empresa de combate às doenças negligenciadas.

A malária matou mais de 400 mil pessoas em 2015

A malária é o resultado de uma infeção com um parasita transmitido pelos mosquitos Anopheles (cerca de 30 espécies podem transmitir o parasita). Existem cinco espécies de parasitas do género Plasmodium que podem infetar humanos, sendo as mais perigosas Plasmodium falciparum – a mais mortífera e predominante em África – e Plasmodium vivax – que predomina em muitos locais fora de África, refere a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Os primeiros sintomas, como febre, dor de cabeça, vómitos ou calafrios, podem aparecer uma ou duas semanas depois da picada do mosquito. Os doentes devem ser tratados no espaço de 24 horas, mas é difícil associar imediatamente estes sintomas à malária. Quando a doença progride, pode provocar a morte.

Em 2015, 3,2 mil milhões de pessoas (metade da população mundial) estava em risco de desenvolver malária, alerta a OMS. No ano passado terão sido registados 214 milhões de casos de malária e 438 mil mortes, segundo os dados de dezembro da mesma organização. As crianças com menos de cinco anos, grávidas e seropositivos estão entre os principais grupos de risco, mas também os viajantes ou migrantes que nunca foram expostos à doença. As pessoas que já foram infetadas podem desenvolver uma imunidade parcial, significando que há menor probabilidade de desenvolverem as formas mais severas da doença.

  • 88% dos casos e 90% das mortes aconteceram na África subsariana.
  • Mais de 70% das mortes são crianças com menos de cinco anos.
  • 57 dos 106 países que tinham malária no ano 2000, conseguiram reduzir o número de novos casos em pelo menos 75% até 2015.

Neste momento, a principal forma de prevenir a malária é evitar a picada dos mosquitos que transmitem o parasita. Os mosquitos picam sobretudo entre o anoitecer e o amanhecer, por isso a OMS recomenda o uso de redes tratadas com inseticida, mas também o uso de repelente no interior das casas. O problema é que em algumas zonas os mosquitos têm apresentado resistência ao único inseticida aprovado para uso nas redes. No caso dos viajantes existem medicamentos que se destinam a prevenir a doença.

A estratégia da OMS para combater a malária entre 2016 e 2030 reúne os seguintes objetivos principais:

  • reduzir o número de casos e de mortes de malária em pelo menos 90% até 2030;
  • eliminar a malária em pelo menos 35 países até 2030;
  • prevenir o aparecimento de malária em todos os países que não tenham a doença.

A possibilidade de o parasita da malária desenvolver resistência aos tratamentos é um dos maiores problemas identificados. A cloroquina, em tempos um medicamento bastante utilizado, perdeu a eficácia nos anos 1970-1980 porque o parasita Plasmodium falciparum ganhou resistência ao tratamento. Neste momento, o melhor tratamento disponível para a doença, também chamada de paludismo, é uma terapia combinada à base de artemisinina.

A descoberta deste medicamento, há mais de 30 anos, valeu o prémio Nobel da Medicina 2015 a Youyou Tu. Ao fim de tanto tempo, continua a ser a melhor opção de tratamento. E por isso é usada em combinação com outros medicamentos, para evitar que os parasitas desenvolvam resistência. Além da eficácia das drogas, o diagnóstico e tratamento precoce são a melhor forma de prevenir as mortes por malária, assim como de diminuir a probabilidade de transmissão.

  • Foi identificada resistência à artemisinina no Cambodja, Laos, Birmânia, Tailândia e Vietnam, refere a Organização Mundial de Saúde.
  • No Cambodja e Tailândia já foi identificada resistência a ambas as drogas presentes no tratamento contra a malária (a artemisinina e o segundo fármaco).

Além das opções de tratamento serem escassas, também não existe nenhuma vacina contra o parasita da malária. Está em desenvolvimento uma vacina que já foi sujeita a ensaios clínicos em sete países africanos e que recebeu um parecer positivo da Agência Europeia do Medicamento em 2015. Caso a vacina se mostre eficaz e segura podem ainda ser precisos cerca de cinco anos para estar disponível.

Última atualização às 12h30