Sabe aqueles anúncios de trabalhos de sonho que consistem em ir viver para uma ilha paradisíaca, beber umas águas de coco, avaliar uns hotéis e ser pago por isso, e que nos deixam roídos de inveja do alto da cadeira de escritório onde passamos a vida sentados? Este não é um artigo sobre esses trabalhos com vista para águas cristalinas mas sobre outros, em Portugal, que também o farão pensar que há quem tenha um ganha-pão bem mais abençoado. Infelizmente para estes não houve anúncios espalhados pela Internet — houve recomendações e entrevistas, como nos empregos normais –,mas há uma história que pode ser partilhada.

Sofia Vieira da Silva e Rosário Ramalheira são duas mulheres que comem chocolates e gelados porque a profissão assim o manda. São provadoras de duas das coisas que mais pessoas gostam nesta vida — e possivelmente de duas das coisas que mais pessoas evitam — e remetem os provadores de vinhos para um canto. É que, ao contrário destes, elas não têm de cuspir.

Vamos às apresentações. Sofia Vieira da Silva, 42 anos, trabalha na Imperial, em Vila do Conde, desde 2007, é Diretora do Departamento de Investigação, Desenvolvimento e Qualidade e integra uma equipa treinada para provar todos os produtos da marca, desde as matérias-primas ao produto acabado – leia-se o chocolate propriamente dito –, tudo para garantir “um resultado fiável”.

Rosário Ramalheira, 32, está na Gelados Santini, em Carcavelos, há sete anos. Entrou como consultora externa e atualmente desempenha a função de Diretora do Departamento de Qualidade e Segurança Alimentar, e também integra uma equipa que diariamente prova gelados “para garantir que estão dentro dos padrões expectáveis”.

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Rosário Ramalheira. Foto: Michael M. Matias/Observador

Se acha que esta é uma profissão para qualquer pessoa, desengane-se. O processo da prova é rigoroso, metódico e exige que a provadora esteja atenta aos vários sentidos. Como a prova do chocolate é diferente da do gelado decidimos separá-las.

Como se prova um chocolate

A prova do chocolate começa bem antes de ele ter a forma daquela tablete irresistível. É necessário avaliar tanto a pasta como a manteiga de cacau, provenientes do Gana e da Costa do Marfim, ou seja, da melhor qualidade que há, segundo Sofia Vieira da Silva.

O chocolate é provado em três fases: na refinação, na moldação e no embalamento. Posto isso, Sofia entra em ação. “A prova de um chocolate envolve toda uma sinergia de sensações e abrange os cinco sentidos”, diz a engenheira alimentar ao Observador. A visão é o primeiro sentido, até porque, é sabido, os olhos também comem. O aspeto do chocolate em si — se é brilhante, por exemplo –, é por isso a primeira coisa a ter em conta.

Sofia Vieira da Silva

Sofia Vieira da Silva num dia de trabalho. Foto: Imperial.

Segue-se a audição. Ao partir, um chocolate terá de fazer um barulho específico, aquele “creck” que é sinónimo de que está bem solidificado. O olfato permite detetar a mistura de aromas, aquilo que se chama o “flavour do chocolate”, a base do cacau e toda a envolvente. E até aqui ainda ninguém meteu nada à boca.

O tato é o próximo sentido. Diz Sofia que, ao tocar num chocolate, é necessário sentir uma sensação de dureza e macieza ao mesmo tempo. Só depois vem o paladar. Assim que o chocolate entra em contacto com as papilas gustativas da provadora, é tempo de apreciar a “envolvência do produto e o after taste, ou seja, a sensação que perdura na boca”, sendo este um aspeto extremamente importante.

Sofia explica que aquilo que distingue um bom de um mau chocolate é o tipo de produtos usados na sua confeção, uma vez que “em termos legais, está bem definida [a quantidade de cada um] e, cumprindo as normas [Decreto-Lei nº229/2003], haverá um equilíbrio entre todos os ingredientes”. A provadora faz, no entanto, uma ressalva: “Um chocolate mais barato não significa que seja de pior qualidade.”

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Do tato à audição, todos os sentidos estão envolvidos. Foto: AFP/Getty Images

Como se prova um gelado

Porque a prova não se reduz ao ato de levar gelado à boca, comecemos pelos ingredientes. Quem já provou os gelados Santini sabe que eles se pautam por serem artesanais e sem aditivos alimentares, o que faz com que todos os acertos tenham de ser feitos ao nível da quantidade dos ingredientes.

Em conversa com o Observador, Rosário Ramalheira explica que na confeção dos gelados é usado apenas “leite do dia”, o que acaba por dar o dobro do trabalho. Senão vejamos: o ano tem quatro estações e a alimentação dos animais varia consoante as estações (pasto ou ração), o que faz com que “a qualidade do leite e da nata variem consequentemente ao longo do ano”, com repercussões no sabor final que pode ser “mais ou menos intenso, com mais ou menos quantidade de gordura”, e alterando, inclusive, a cor.

Depois vem a fruta. A escolhida é a chamada “fruta de mesa”, ou seja, aquela que compramos para comer em casa. “Às vezes temos de esperar que amadureça um pouco mais, às vezes não tem tanto aroma ou o mesmo nível de doçura e acidez”, explica a provadora. E aqui cabe a Eduardo Santini fazer os acertos normais à receita.

O facto de os ingredientes não serem sempre iguais torna o gelado diferente todos os dias e, por isso mesmo, obriga todos os colaboradores a provarem diariamente cada sabor à saída das produtoras. “Às vezes ocorrem esquecimentos de adição de um ingrediente ou até ‘misturas acidentais’ entre sabores”, justifica a microbióloga. Essas misturas acidentais também podem correr bem – foi assim que nasceu, por exemplo, o sabor “natas ácidas”, quando se juntou limão às natas, por engano.

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Ossos, ou melhor, gelados do ofício. Foto: Michael M. Matias/Observador

Mas passemos à prova. Esta consiste em colocar uma pequena porção de gelado na boca, do tamanho de uma colher de café – sim, só isso – e começar por saboreá-lo. O primeiro impacto é a textura, ou seja, o mouth-feel, o qual consiste em “procurar a cremosidade, a frescura e a ausência de cristais de gelo”. “O gelado não pode derreter rapidamente, nem dar a sensação de ‘excesso de frio’”, explica Rosário Ramalheira, e paralelamente a isto é preciso sentir o almejado sabor — doce, amargo, ácido –, assim como o aroma.

A visão também é para aqui chamada, já que a aparência do produto, como a cor, é bastante importante. Já o cheiro não desempenha um papel preponderante, uma vez que “normalmente nem se consegue ter perceção”.

O que os doces lhes ensinaram

Ao contrário dos comuns mortais que comem chocolate ou gelado por desejo, para afogar as mágoas ou porque simplesmente não lhes conseguem resistir, tanto Sofia como Rosário aprenderam com aquilo que provam.

Os 15 a 20 quilos de chocolate que Sofia ingere por ano – atente-se que o consumo de chocolate em Portugal anda nos 1,5 kg/ano per capita – permitem-lhe ter “alguma perceção da aceitação do chocolate por parte do consumidor”, embora o gosto dos ditos consumidores possa ser traiçoeiro. “Todos temos um gosto próprio e o facto de gostarmos de determinado chocolate pode depender da idade, do ambiente ou de termos ingerido algo antes [que altere o sabor do chocolate], por exemplo”, diz a engenheira alimentar.

Rosário Ramalheira já adquiriu as mesmas valências. Não sabe quantos gelados já provou na vida — só sabe que o faz quase diariamente há sete anos –, mas sabe se determinado gelado será ou não bem aceite no mercado e considera-o “muito intuitivo”.

Ambas consideram que têm uma profissão de sonho, mas não é por provarem gelados ou chocolates. É por trabalharem arduamente naquilo que gostam e por terem o privilégio de trabalharem com quem trabalham. É legítimo que quem leia isto continue a defender que é uma profissão de sonho porque pode comer-se chocolates e gelados à Lagardère.

A verdade é que não é proibido ingerir nenhum destes alimentos diariamente, à semelhança do que ambas fazem, desde que seja com moderação. Sofia Vieira da Silva diz que se deve ingerir “entre 40 a 50 gramas de chocolate por dia” e enaltece os benefícios para a saúde do chocolate, como as suas propriedades antioxidantes, o facto de ser uma fonte de nutrientes e vitaminas, além de ter a capacidade de alegrar o nosso dia e nos dar prazer. “Continuem a comer”, foi o conselho que ouvimos. Como se fosse preciso.