O doente mais novo atualmente em tratamentos no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa tem apenas dois meses. E um neuroblastoma. Elisabete Chança não era tão nova quando descobriu que tinha cancro. Foi aos 14 anos e já passaram 13. É uma “sobrevivente”.

“Senti uma dor fortíssima nas costas durante algum tempo e um dia acordei e senti dormência nos membros inferiores. Lembro-me que nesse mesmo dia deixei de conseguir coordenar os movimentos e fui à urgência. No dia seguinte voltei para o hospital, porque já não conseguia andar sozinha”, recorda Elisabete Chança. Era apenas o início de uma maratona. Do Hospital Fernando da Fonseca, na Amadora, para o Garcia de Orta, em Almada, e de lá para o IPO de Lisboa.

Percebi, mal fui parar ao hospital, que alguma coisa grave tinha de ser e quando cheguei ao IPO, mesmo antes de ter sido consultada pelo médico, tive noção que para estar ali só podia ser uma coisa. Cancro. Tinha um sarcoma de Ewing [um tipo de tumor ósseo]”, conta.

Seguiu-se um ano intensivo de tratamentos — quimioterapia e radioterapia –, com internamentos e fisioterapia. Durante oito meses só conseguiu andar com o apoio de terceiros. Os estudos ficaram suspensos.

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“A única coisa que eu não aceitei bem foi o facto de perder a minha mobilidade”, desabafa Elisabete Chança. Sempre que se sentia mais bem-disposta, ia passear com a família e alguns amigos até ao Cascais Shopping, porque lá podia pedir uma cadeira de rodas para se deslocar. E também fazia visitas à escola. “A escola parava sempre que eu lá ia. Parecia um animalzinho no jardim zoológico”, conta, entre risos.

Acabou tudo por correr bem e a única sequela com que ficou foi o desequilíbrio: “Às vezes desequilibro-me. Mas sou uma pessoa normal. Já passou. Foi uma doença e ficou lá atrás.” Elisabete tenta não pensar muito no assunto, nem nos riscos que corre.

Claro que me lembro do que senti, do que vi, do que aprendi, mas não carrego esse peso. A minha vida é normal. Óbvio que gostaria de não voltar a repetir, mas se acontecer vou levar da mesma forma. É uma doença e temos de nos tratar.”

Dois terços das crianças que tiveram cancro continuam vivas cinco anos depois

Casos como o de Elisabete “são raros”, sublinha Ana Teixeira, a médica pediatra que traduz o adjetivo em números: “por cada 200 pessoas com cancro, só uma tem menos de 18 anos”. Mas nem por isso deixam de ser preocupantes, além de que o número tem vindo a aumentar. Em 2015, só o IPO de Lisboa — que é o centro de referência nacional para o cancro pediátrico — recebeu 194 novos casos de cancro em crianças com menos de 16 anos. “O maior número de sempre.” No IPO, o número terá rondado os 100 a 120 novos casos e, em Coimbra, cerca de 50, segundo a especialista.

Por cada 200 pessoas com cancro só uma tem menos de 18 anos”, detalha a médica Ana Teixeira.

E se é verdade que o cancro infanto-juvenil é a primeira causa de morte por doença em crianças e adolescentes, a boa notícia é que os avanços terapêuticos têm permitido aumentar a taxa de sobrevida em oncologia pediátrica. Isto é, a percentagem de crianças que continuam vivas cinco anos depois de terminarem os tratamentos. “Atualmente, cerca de dois terços das crianças com cancro irão sobreviver cinco ou mais anos após o término da terapêutica.”

No caso das leucemias — a neoplasia mais frequente nas crianças (cerca de 30% dos casos) –, a taxa de sobrevida a nível mundial chega mesmo a atingir os 85% a 90%. Já no caso dos tumores do sistema nervoso central, “pela localização e terapêuticas que exigem (radioterapia, quimioterapia, cirurgia), têm taxas de mortalidade e morbilidade muito menos animadoras. A taxa de sobrevida passa pouco dos 50%”, revela ao Observador a pediatra do IPO.

E são estas crianças, as que sobrevivem, que são consideradas os DUROS — Doentes que Ultrapassaram a Realidade Oncológica com Sucesso. Desde 2007 que o IPO de Lisboa tem uma consulta dedicada especificamente a eles, com a exceção dos sobreviventes de tumores do sistema nervoso central e das crianças que fizeram transplante de medula óssea. Neste momento estão em acompanhamento 744 doentes. Idealmente, esta consulta serviria uma população até aos 18 anos, pois é constituída por uma equipa de pediatras, mas a verdade é que vai mais além, até porque “os 18 anos são uma margem muito pequena”. Assim, o mais novo tem seis anos e o mais velho, 56. A maioria tem entre 10 e 30 anos de idade.

Pediatria IPO Lisboa

Em 2015, o IPO de Lisboa recebeu 194 novos casos de crianças com cancro

“A consulta serve para organizar a vigilância da saúde destes sobreviventes, de uma forma adequada aos riscos consequentes da doença que tiveram e das terapêuticas que fizeram. Fazemos a contabilidade da doença e dos fármacos e toda a terapêutica efetuada”, explica ao Observador Ana Teixeira, a médica responsável por esta consulta, que dá um exemplo: uma criança que fez radio sobre o pescoço, tem de ter a tiroide vigiada.

Além desta consulta permitir tranquilizar os sobreviventes, “permite melhorar a sua qualidade de vida, e melhorar também a forma como são tratadas, atualmente, as crianças com cancro, pois o conhecimento da frequência e gravidade dos efeitos secundários tardios leva a uma melhor adequação das terapêuticas, tendo em vista a cura (sempre) mas ao menor custo possível”, defende a pediatra: “Não é só uma vigilância de afetos ou caridade. É uma vigilância científica”.

Em geral, crianças ficam com sequelas que não afetam qualidade de vida

Segundo os dados recolhidos pela consulta dos DUROS, mais de dois terços dos sobreviventes do cancro pediátrico (68%) apresentam, pelo menos, uma sequela da doença ou dos tratamentos, sendo que essa probabilidade varia consoante “a droga, as doses usadas e a idade com que o tratamento foi feito”.

Ainda assim, a maioria “não assinala nenhuma sequela assinalável”, assegura Ana Teixeira, apontando para os problemas dentários, as cicatrizes cutâneas ou os problemas endócrinos de fácil resolução.

No quadro das consequências mais graves encontram-se segundas neoplasias e recidivas tardias (o mesmo cancro voltar a aparecer). Na consulta dos DUROS do IPO registaram-se, nestes nove anos, “32 segundas neoplasias e cinco recidivas tardias da doença oncológica primitiva”, revelam os dados agora compilados e que vão ser apresentados, esta quinta-feira, no 17º encontro da rede europeia para o cuidado dos sobreviventes de cancro infantil (PanCare), na Gulbenkian.

As segundas neoplasias mais observadas foram os carcinomas da tiroide — todos os 10 casos registados tiveram uma leucemia ou um linfoma de Hodgkin, e fizeram radioterapia sobre a região cervical –, os tumores do sistema nervoso central — os 10 casos também são todos de sobreviventes de leucemia que fizeram radioterapia sobre o sistema nervoso central –, além de quatro carcinomas baso celulares cutâneos. Dois destes doentes acabaram por não resistir.

E esta é a verdade mais dolorosa: o risco destes doentes virem a ter cancro novamente aumenta seis vezes, quando comparado com a população em geral, afirma Ana Teixeira.

Apesar disso, e de terem noção dos riscos que correm, diz a médica, os doentes levam uma vida normal, sendo que a maioria tem cuidados acrescidos com o estilo de vida. “Os meus doentes nunca dão a saúde como garantida. Aliás, a saúde torna-se um valor fundamental. Mas isto também tem de ser desmontado senão a vida torna-se muito difícil”, aconselha a pediatra.