Até agora, os melhores filmes sobre a crise ou os seus antecedentes, encarados dos mais diversos pontos de vista e nos mais variados registos, têm vindo dos EUA: “Homens de Negócios”, de John Wells, “O Lobo de Wall Street”, de Martin Scorsese, “O Dia Antes do Fim”, de J.C. Chandor, “99 Casas”, de Rahmin Barhani, “A Queda de Wall Street”, de Adam McKay, o documentário “Inside Job – A Verdade da Crise”, de Charles Ferguson. A Europa, e tirando “Dois Dias, Uma Noite”, dos irmãos Dardenne, e, vá lá, “O Capital”, de Costa-Gavras, não tem respondido à altura. Até que no Festival de Cannes passou “A Lei do Mercado”, de Stéphane Brizé, que deu a Vincent Lindon o Prémio de Melhor Ator (também ganharia o César mais tarde). E deu também origem em França a um debate sobre se o filme seria anti ou pró-capitalismo. A imprensa mais à esquerda, moderada, como o “Le Monde”, ou radical-chique, como o “Libération” ou “Les Inrockuptibles”, essa não teve dúvidas, elegendo “A Lei do Mercado” como “o” grande filme sobre os efeitos desumanos do “capitalismo neo-liberal” sobre os cidadãos anónimos. Em Portugal, a fita teve uma antestreia na Voz do Operário, com a presença do inevitável Carvalho da Silva.

[Veja o “trailer” de “A Lei do Mercado”]

https://youtu.be/FqkfBiQjw2w

“A Lei do Mercado” são 93 minutos da mais profunda frustração laboral, personificada por Thierry (Vincent Lindon, um dos poucos atores profissionais do elenco, já que quase todos os outros interpretam-se nas suas próprias funções), um operário especializado cinquentão e taciturno, casado e com um filho deficiente, que é despedido e volta ao mercado de trabalho. Na primeira metade do filme, Thierry frequenta formações profissionais que não lhe servem para nada, vai a entrevistas de emprego com gestores de recursos humanos desagradáveis, tem conversas inúteis com funcionários do Desemprego, vai ao banco pedir um empréstimo e sugerem-lhe que venda a casa e o carro. E passa por todas estas humilhações e indignidades quase sem levantar a voz, ter um acesso de fúria, um gesto de revolta que seja. Esta via sacra é registada pela câmara de Brisé com um laconismo distanciado, quase clínico, a tombar para a simulação de documentário televisivo.

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[Veja a entrevista com o realizador e o actor]

Até que Thierry arranja trabalho, embora não tenha nem remotamente a ver com as suas qualificações profissionais. É um emprego de vigilante numa grande superfície, onde tem que estar atento aos clientes que roubam e aos colegas que defraudam a empresa, percebendo que estas são úteis aos patrões, porque assim podem justificar despedimentos. É claro que estamos do lado de Thierry, que sofre estoicamente para continuar a dar casa e comida aos seus, que empatizamos com a sua condição e nos indignamos com o sistema que o deixou sem trabalho e faz dele gato-sapato. Mas sucede que “A Lei do Mercado” não só trai a sua personagem principal, como fica moralmente desarmado para apontar o dedo e passar juízos de valor.

[Veja Vincent Lindon no Festival de Cannes]

https://youtu.be/Wdv3Yfu3qH0

Primeiro, a fita é claramente condescendente para com os clientes e empregados que roubam. Como apontou o meu colega Jordan Hoffman, do insuspeito “The Guardian”, baluarte jornalístico dos valores de esquerda em Inglaterra, “o filme quer que consideremos tais transgressões como crimes sem vítima (…) e que é totalmente aceitável roubar no emprego”. Todos aqueles que furtam em “A Lei do Mercado” têm uma desculpa: um gandulo ameaçou-os de pancada se não o fizessem, nunca o tinham feito antes, têm um filho drogado, estão na casa há 20 anos. E, dando milho aos pardais do “anti” em jato contínuo, Brizé deixa implícito que a culpa disto também é do “capitalismo neo-liberal”.

[Veja uma cena de “A Lei do Mercado”]

Depois, e tal como Thierry foi vítima de uma redução radical de pessoal na empresa onde trabalhava, também “A Lei do Mercado”, ao fazer uma redução radical de emotividade por via da aproximação secamente naturalista do realizador, é esvaziado de dramatismo, ficando-se por um realismo quase entomológico, de microscópio. Talvez Stéphane Brizé pudesse aprender qualquer coisa com o veterano “leftie” inglês Ken Loach, que vai estrear no Festival de Cannes, o seu “filme da crise”, “I, Daniel Blake”. Concordemos com ele ou não, Loach sabe como fazer passar a devida e veemente mensagem socio-política, sem nunca abdicar do sobressalto dramático.