Não havia cá espaço para patrocinadores e nomes longuíssimos. Ainda se chamava Campeonato Nacional da I Divisão. Só. Estávamos na temporada de 1969/1970. Mais concretamente a 8 de fevereiro de 1970. Nessa tarde, o Sporting treinado por Fernando Vaz, com Damas (ainda catraio, apenas na sua segunda época como titular) na baliza, o capitão Hilário na lateral canhota e o ponta-de-lança Lourenço a pairar na área adversária, foi vencer ao velhinho estádio das Antas por 1-0. O golo foi precisamente de Lourenço — o tal que fez um “póquer” na Luz em 1965. Esse foi o derradeiro ano em que o Sporting, sendo campeão no final, venceu o FC Porto como visitante.

Está época poderá ser ou não. Não é líder, mas não dá o título por entregue ao Benfica. E podia, se perdesse ou empatasse na deslocação ao estádio do Dragão. Não perdeu. E na frente, continua tudo na mesma: o Benfica é líder com dois pontos de vantagem sobre o rival da Segunda Circular, vai à Madeira na próxima ronda defrontar o Marítimo, e recebe os também madeirenses do Nacional na derradeira jornada. O Sporting, por sua vez, recebe o V. Setúbal no próximo fim de semana e termina o campeonato na “Pedreira”, em Braga. Vai ser até à última, isso é certo.

Mas vamos ao jogo. Esta noite não houve Lourenço, mas houve Slimani. Muito Slimani. Slimani em todo o lado e não somente a marcar. Curiosamente, foi João Mário, outro que encheu o relvado do Dragão, a criar perigo primeiro. E cedo: aos 5′. Tudo começou em Adrien, que cruzou da direita do ataque para a área, um cruzamento que Casillas tirou de lá a punhos. A bola acabou à entrada da área nos pés de William, este chutou de primeira, um remate torto, mas que ainda desviou (quase sem querer, diga-se) no calcanhar de Ruiz, desmarcando João Mário na área. O médio do Sporting rematou à ninja, de pé direito e todo no ar, mas a bola saiu por cima do poste. Artur Soares Dias anulou a jogada pouco depois. O camisola 17 estava em fora-de-jogo.

No começo, e como é hábito, contam-se espingardas, ninguém se superioriza a ninguém. Mas o FC Porto, no seu primeiro ataque com pés e cabeça, acertou no poste. Com o pé. O de Herrera. O cruzamento é de José Ángel desde a esquerda do ataque (Schelotto não o pressionou e o espanhol teve tempo para tudo), Aboubakar falhou o desviou ao primeiro poste, Rúben Semedo também falhou o corte, e surgiu atrás dos dois (e à frente de Coates) Herrera, a rematar em desequilíbrio. Patrício estava batido, mas a bola foi caprichosamente para o poste esquerdo do guarda-redes do Sporting, agarrando-a Patrício depois e evitou males maiores — Aboubakar estava lá para o desvio.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Bola cá, bola lá. Ora contra-atacas tu, ora eu. Os ataques superiorizavam-se às defesas. E viam-se fífias nas zonas mais recuadas num e noutro lado. A do Sporting meteu água aos 17′. E meteu água logo a dobrar. Primeiro é William a não cortar para fora da área uma bola bombeada pela FC Porto lá para dentro. E nem tinha oposição de ninguém com camisola listada de azul-e-branco, William. Depois, no seguimento da jogada, é Marvin a cortar, sim, mas para dentro da própria área. O holandês, diga-se, tinha Corona (que até é meia-leca e Marvin um matulão) nas costas. O “corte” de Marvin Zeegellar foi ter com Aboubakar, que ainda desviou nas barbas de Patrício para o golo. Desviou a bola, errou o alvo, mas tocou também nas luvas do guarda-redes do Sporting com a pontinha da bota. Artur Soares Dias marcou falta de pronto.

O Sporting não tem Aboubakar, tem Slimani. O que não é bem, bem a mesma coisa. E quando a defesa do FC Porto compromete, ele aproveita. Aos 23′ o goleador de Alvalade fez o 1-0 no Dragão. Mas o trabalho de João Mário é um primor de técnica e força. William, nos terrenos que são seus, bem no centro do meio-campo, viu João Mário sozinho na direita, e assim o viu, assim lá pôs a bola. João Mário recebeu-a, uma receção orientada que deixou José Ángel nas covas, avançou para a área, e mal lá meteu o pezinho (e os de João Mário são de “lã”), cruzou. Slimani, na pequena área, viu a bola chegar-lhe no espaço entre Martins Indi e Casillas, e desviou com calma para o 1-0. É o 4.º jogo seguido de Slimani a marcar. O seu 25.º golo no campeonato, o terceiro ao FC Porto esta época.

Aos 32′, quase, quase que Slimani voltava a molhar a sopa. E do mesmo sítio. Adrien abriu em Schelotto na direita, o ítalo-argentino cruzou rasteiro para a área, encontrou Slimani ao primeiro poste, mas o desvio foi defendido por Casillas. No minuto seguinte, penálti. Mas do lado contrário. Brahimi é derrubado por Coates na área do Sporting. O toque não é ostensivo, mas aconteceu. No um-contra-um, o argelino trocou as voltas ao central do Sporting com uma finta, ganhou-lhe a frente e caiu. É Herrera, de penálti, a empatar o jogo no Dragão. E este é daqueles sem espinhas: Patrício caiu para a esquerda, o mexicano rematou rasteiro para o lado contrário. O mexicano volta a marcar num Clássico depois de ter marcado na Luz, frente ao Benfica.

Continuavam as defesas a ter má-pinta. Sabendo nós como Jesus é, Semedo e William ainda devem estar por esta altura com as orelhas a arder. Nem um nem outro acompanharam a desmarcação de Herrera pelas suas respetivas zonas de marcação, o mexicano foi desmarcado por Brahimi (que vinha a ziguezaguear desde a esquerda e a arrastar com ele Schelotto e Adrien) aos 36′, recebeu a bola, avançou para a área e rematou. Errou o alvo, mas sentia-se o nervosismo, a tremedeira na defesa do Sporting. Afinal de contas, era proibido perder — ou sequer empatar.

A história repetiu-se. A defesa do Sporting deu uma abébia, o FC Porto não quis nada com ela. Mas quando a sua também deu, Slimani aproveitou e recolocou o Sporting na frente. Foi mesmo em cima do intervalo, aos 44′. Martins Indi fica muito mal na fotografia. Mas não foi só ele. Marvin tinha a bola nas mãos, rodopiava-a, lançou-a num ápice para Bryan Ruiz, e com isso deixou Corona e Maxi de candeias às avessas. Ruiz esgueirou-se pela esquerda, ergueu a cabeça, e só tinha Slimani na área, lado a lado com Martins Indi. Cruzou para lá, e nos segundos entre a bola sair da sua canhota e chegar à área, Slimani deu um passou atrás (Indi não), e cabeceou para o 2-1. O priii, priiiii de Artur Soares Dias soou logo a seguir.

O jogo recomeçou num corrupio. E que minuto louco foi o primeiro. O primeiro remate do jogo foi de Slimani, de fora da área e à figura de Casillas. No contra-ataque do FC Porto, Corona ganha a frente a Marvin, entra na área, e cai. Penálti não há, mas a verdade é que o mundo parou por segundos. Marvin, com Corona por terra, não cortou a bola; William também não. Maxi andava por lá, e com ele não há paragens enquanto houver jogo: rematou de canhota. Patrício defendeu para a frente, por reflexo. Ufaaaaa!

51′. O livre era frontal, ligeiramente descaído sobre a esquerda, e só Sérgio Oliveira lá estava para marcar. Não tomou muito balanço, aguardou de mão na anca pelo apito de Soares Dias, e rematou quando se fez ouvir. Um remate em arco, forte, ao qual Patrício (mesmo voando como voou) dificilmente chegaria. A trave ainda estremece por esta hora. O FC Porto entrou melhor do que na primeira parte. Disso não há dúvida. Ainda assim, o Sporting também estava perto do 3-1. Cinco minutos depois do remate de Sérgio Oliveira, o lance não deu em golo, mas podia. Ah, de podia. Que combinação foi a dos avançados-centro do Sporting. Schelotto, num dos seus vai-e-vem pela direita, encontrou Slimani à entrada da área, o argelino, como é matulão, aguentou a marcação, e isso deu tempo para que Teo se desmarcasse. Depois, Slimani “picou” a bola sobre a defesa do FC Porto, Teo recebeu-a na área, e cruzou. Mas cruzou para a frente. Se isso é um problema. É. E é-o quando Ruiz acha que o cruzamento será dois passos para trás e faz o movimento contrário.

José Peseiro tinha que mexer no jogo. Se queria vencer, tinha que mexer. E mexeu. Aos 61′ tirou Sérgio Oliveira e fez entrar André André. Depois, aos 68′, entrou Varela para o lugar de Corona. E isso mudou tudo. O FC Porto tornou-se mais perigoso pela direita, uma vez que Varela é veloz e André André também cai nesse flanco. Marvin e Ruiz não estavam a dar conta deles. Mas isso era na defesa. No ataque o Sporting dizia sempre presente. Ruiz cruzou da esquerda para a área aos 69′, Slimani saltou nas costas de Danilo e Chidozie ao segundo poste, falharam os dois o corte, e Slimani cabeceou só. E cabeceou com a potência que muitos avançados não têm nas botas, quanto mais na cabeça. Casillas, todo no ar, defendeu só com a luva esquerda, para longe. Cheirou a 3-1 e a hat-trick de Slimani. Voltando às mexidas do FC Porto. Jesus anulou-as. E bastou-lhe para isso chamar Bruno César, colocá-lo na vez de Teo, e ganhou aquela lateral.

A lateral e o jogo. Aos 85′, Casillas entrega a vitória ao Sporting num lance onde é mal batido. Mas o mérito é todo de João Mário, que vindo da direita se pôs na esquerda num ápice, avança pelo meio-campo fora, e ainda teve força para desmarcar Bruno César nas costas de Chidozie. O brasileiro, acabadinho de entrar, deu razão a quem o apelidou de “chuta-chuta”, e chutou mesmo. O remate foi forte e rasteiro, Casillas fez-se ao lance, mas a bola passou-lhe entre o peito e o braço direito, num lance em que se pedia mais. Depois foi ver o espanhol a correr atrás da bola, mas não foi a tempo de a tirar de dentro da baliza. Os adeptos saíram aos magotes do estádio depois do 3-1. O jogo acabaria logo a seguir.

Não sabemos se o Sporting voltará a ser campeão como foi em 1969/1970, ano em que também venceu na Invicta. Mas Jesus já matou um “borrego”: o treinador dos leões só venceu um dos 15 jogos no Dragão — e já perdeu 18 vezes diante do FC Porto. Quanto aos verde-e-brancos, não ganham lá desde 2007.