“Está a seguir o pai”. Bachir Maravilhas é moçambicano, lembra-se de ver Baltazar Rebelo de Sousa ser transportado em braços numa visita à Ilha de Moçambique quando era governador-geral de Maputo. Hoje é fotojornalista e estava no mercado municipal a fotografar Marcelo, entre as vendedoras, que embalavam ao som da música um enorme peixe, atrás de uma banca. A comparação saiu-lhe depois dos disparos a imortalizar o momento. A visita ao mercado foi inevitavelmente uma injeção de memórias, ainda que Marcelo evitasse fazer desta visita a Moçambique um passar em revista desse álbum. Mas esta sexta-feira, último dia da visita de Estado, não houve volta a dar. Marcelo até foi apanhado na cadeira usada noutros tempos pelo pai. Caiu no saudosismo, mas também já revelou algumas saudades da política nacional.

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Começando pelo princípio. “Foi neste mesmo espaço, cujas paredes projetam anos de história comum entre Portugal e Moçambique que, no dia 23 de Julho de 1968, vosso pai, Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, recebeu a Chave da Cidade”, recordou David Simango, presidente do Conselho Municipal na cerimónia na Câmara de Maputo. Era ali a sede do Governo-geral de Moçambique. E Baltazar ocupou, quase dois anos, a cadeira mais alta. Literalmente, como se pôde testemunhar. A assessoria da câmara garante que o mobiliário se mantém e que aquele móvel imenso, com uma mesa e três cadeiras de espaldar alto, muito trabalhadas em madeira escura, era o mesmo do período em que Baltazar foi governador. O pai sentava-se na cadeira do meio, a mesma em que se senta agora Marcelo, como Presidente português.

Marcelo lembrava-se do episódio e de estar “na última fila deste mesmo salão”, onde hoje é ele que recebe as chaves da cidade. “Não podia imaginar que aqui voltaria quase 60 anos depois para receber o mesmo galardão”. A visita tem o seu quê de circular. O filho do ex-governador agora é Presidente da República e fala “nessa relação inesperada” para ele e “incompreensível para quem vê de fora e não entende a amizade fraterna”. A comunicação social do país não tem deixado de fazer a ligação entre a visita do Presidente português e o momento em que ela acontece: aquele em que o grupo internacional de doadores ao país — presidido por Portugal — suspendeu a ajuda a Moçambique. Mas Marcelo tem fintado a coincidência do timing e o incómodo diplomático que daí possa vir. Os apelos à paz também não têm dado mais frutos do que reuniões isoladas com as partes. Sem algo que dê resultados visíveis e imediatos, o Presidente português entrega-se aos afetos que são a sua marca de água desde campanha.

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Na cadeira que foi do Governador de Moçambique, onde se sentava o seu pai Baltazar Rebelo de Sousa

Na cidade o pai Rebelo de Sousa ainda é recordado. Por Angelina, por exemplo, que aos 64 anos está ali no mercado de Maputo para estar perto do presidente português, que no dia anterior vira na televisão. “Rebelo de Sousa. Quando falaram o nome na televisão logo recordei que era como o que eu conheci”, diz ao Observador. De lenço enrolado na cabeça, vê passar aquele turbilhão, entre as bancas do mercado. “Estou muito satisfeita”. Quem tinha pouco menos de 20 anos quando Moçambique se tornou independente era Domingos, outro popular presente no mercado. Recorda-se de Baltazar, que “mudou Moçambique para positivo”. “Lembro-me bem do pai dele”, afirma. “Dele”, ou seja de Marcelo, que estava a segundos de entrar no mercado: pouco depois, recorda-lhe a importância na luta “contra a discriminação” e quase jura que foi dele a decisão de acabar com a caderneta do indígena, um cartão de identidade para quem não tinha cidadania portuguesa e que ficava sujeito a uma série de obrigações e restrições de acesso a locais na cidade em determinadas horas do dia.

Na verdade, abolição do estatuto foi anterior a Baltazar (foi da responsabilidade de Adriano Moreira uns bons anos antes, como ministro do Ultramar), mas as restrições mantiveram-se. É Issuf Mahomed que acaba por explicar ao Observador que o que o pai de Marcelo fez foi integrar a comunidade, diluindo essas divisões que continuavam a ser praticadas, apesar de abolido o estatuto. “Eu tinha 15 anos e lembro-me que ele era um homem muito pró-povo”.

PRESIDENTE DA REPUBLICA, Mo?ambique, MARCELO REBELO DE SOUSA,

Presidente entre as bancas do mercado, quase parecia estar em campanha. JOÃO RELVAS/LUSA

O mercado é uma explosão de cores. Marcelo circula entre a memória do chá “que a mãe comprava”, a castanha de caju de chocolate que se “fazia nos tempos da outra senhora”, e que Issuf fez no dia anterior de propósito para o recordar dos tempos da juventude. Compra ainda grelos, especiarias e caju. “Não dou nada ao senhor presidente [da câmara] se não ele ainda fica com isto”, diz, com o saco do fruto seco na mão. Ainda deita o olho aos abacaxis. “Eu bem queria… isto das malas vai ser um sarilho”.

Pelo meio surgem os recados políticos internos, quando lhe oferecem uma bengala, sinal de autoridade. A seguir ao mercado, visita uma escola profissional (São Francisco Assis) no distrito de Marracuene, bairro de Chamanculo. A missão recebeu, desde 2001, cinco milhões de euros da cooperação portuguesa. Marcelo circula entre os formandos, ocupados com tarefas como aplainar madeira, compactar tijolos, amassar pão, para se inteirar das coisas. E experimenta tudo.

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Os recados para Portugal ou “compactar afetos” à pazada

“Vêm como é possível compactar afetos?”, atira Marcelo de pá em riste a bater na forma que encheu de massa para fazer um tijolo. O gesto é que não era muito afetuoso, a intenção também não. “Força, que eu sou um homem de afetos, não presidencialista”. A moção que o Bloco de Esquerda apresentou esta semana voltava às entrelinhas. “Estava a brincar”, havia de dizer o Presidente mais tarde, aos jornalistas, já à entrada de um encontro com a comunidade portuguesa em Moçambique. Mas a imagem já tinha passado.

Outra imagem: enquanto amassava pão, o Presidente atirava indiretas políticas. “Em tempo de crise, o pão tem de esticar”. “Tem de esticar para a esquerda e para a direita, que é o que eu tenho estado a tentar fazer. E a conseguir esticar para que se entendam… a esquerda e a direita. Nem sempre é fácil. Por exemplo, a esquerda aqui está mais renitente do que a direita, que já está mais suave”. E ainda mais uma, para rematar. Enquanto via um formando empenhado com a sua lixa sobre a madeira, Marcelo aproveita a deixa: “O que é que estás a fazer? Ah, estás a lixar. Essa parte eu também gosto”.

PRESIDENTE DA REPUBLICA, Mo?ambique, MARCELO REBELO DE SOUSA,

Na missão em Marracuene, vestido com um traje tradicional, Marcelo quis ver tudo

Na missão do bairro de Chamanculo, Portugal participa no objetivo do Governo moçambicano de ter uma escola profissional por cada distrito. Depois de uma aposta no ensino superior, a formação intermédia ficou desguarnecida e a aposta de Nyusi tem sido neste nível de ensino, com Portugal a ser um parceiro central. Por exemplo, no ensino profissional de nível básico só entra a cooperação portuguesa. Há também 50 bolseiros em Portugal a receber formação para depois serem eles mesmo formadores em Moçambique. Marcelo quis saudar esta aposta e até comprou um grelhador. “Toma lá 80 euros”, disse enquanto tirava o dinheiro da carteira. Depois puxou a secretária de Estado da Cooperação (que não há quase dia em que tenha passado sem um beijo presidencial na testa) e a irmã Susana para a fotografia, num abraço apertado. “Já não vai para o céu”, gracejou.

Foi por lá que Marcelo planou por estes dias. A visita, disse, “excedeu as expectativas”. “Excedeu as minhas expectativas no que diz respeito ao passado e ao futuro”. Amanhã apanha o voo de regresso para sair da sua “segunda pátria”, que “acompanha como acompanha a família”, e da cidade de que conhece “ruas”, onde lembra os “estudos no tribunal e de ir ao mercado, sentir o pulsar das gentes”. Foi quase uma bolha, com a cidade a não paralisar — como chegou a estar previsto –, depois de dois dias na semana passada terem estado blindados nas ruas a prevenir desacatos. O povo correspondeu a cada esquina, à passagem do “filho devoto” que é também o filho de um dos últimos símbolos do período colonial em Moçambique.

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