O último grande papel de Gérard Depardieu foi como antagonista de si mesmo no filme da sua vida. E o que se conclui após o visionamento do primeiro episódio de “Marseille” é que essa trama em que o ator francês se tem enredado e emaranhado nos últimos anos é bem mais interessante do que esta que acaba de estrear no Netflix.

Para quem não tem acompanhado — a vida, não a série — aqui fica o resumo: em 2011, urinou no meio de um avião; em 2012, bateu num taxista e foi preso por conduzir bêbado. No ano seguinte, para evitar os impostos cobrados aos milionários em França, obteve cidadania russa das mãos de Vladimir Putin, de quem se tornou amigo, e tomou posições políticas que lhe valeram ser banido da televisão e dos cinemas ucranianos.

Não seria para aqui chamado o que Depardieu anda a fazer nos arrabaldes da ficção, não fosse este resumo muito mais divertido do que a primeira produção francesa do Netflix.

https://www.youtube.com/watch?v=8WvqgV7-kSc

Há quem chame “Marseille” de “House of Cards” à francesa, mas essa será talvez uma das poucas pretensões de que não podemos acusar o criador Dan Franck. É uma produção Netflix, pois; é um drama político, sim senhor; lida com os meandros da corrupção -. como não? –, mas as semelhanças ficam-se por aí. Além de a premissa ser muito diferente — a história de uma guerra política entre um Presidente da Câmara de Marselha prestes a retirar-se e o seu discípulo dissidente –, a especificidade geográfica é determinante para impedir comparações. Só que, depois disto, mais nada. Como diz o Tony Carreira, que por acaso já é mais francês que Gérard Depardieu.

“Marseille” é um embrulho de coisa nenhuma, tecnicamente ambicioso mas tão impressionante como o truque da moeda atrás da orelha. Por exemplo, se não perceber que há um momento de tensão, atente à câmara lenta. Mas este é o mais subtil dos clichés. Se não perceber logo quem vai ser o vilão, repare como Benoît Magimel tem relações sexuais à campeão com uma mulher jeitosa, enquanto lhe prende o pescoço com a gravata e ouve na sua cabeça palavras que acicatam a sede de poder. Muahahah. Ou será que não percebeu a intenção daqueles dois mânfios que interrompem o jogging matinal de uma das personagens? Para que nada lhe escape, ela vai fazer o favor de se sentar numa falésia enquanto conversa com os seus novos amigos porque assim não há duvidas de que alguém vai acabar lá em baixo e não vai ser o Wile E. Coyote. A este conjunto de péssimos artifícios, acresce ainda um leque de canastrões a que apenas escapa Depardieu que continua a ser muito bom ator – ainda que, como pessoa, fraquinho.

Ana Markl é guionista, apresentadora no Canal Q e animadora de rádio na Antena 3

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