A moção de António Costa ao Congresso do PS é um texto à esquerda, com muitas críticas à Europa, elogios ao Bloco e ao PCP — para os quais abre perspetivas de coligações autárquicas — e um mea culpa. O PS do chamado “novo tempo” faz uma auto-crítica pelos desvios recentes dos partidos socialistas, ao terem alinhado excessivamente com o capitalismo financeiro, assumindo que o PS chegou a estar contaminado pelo “vírus da fé excessiva na autorregulação dos mercados”.

O documento, que foi divulgado ontem e será debatido no congresso que se realiza na FIL, em Lisboa, de 3 a 5 de junho, sublinha a solidez dos acordos à esquerda e até ironiza que a coligação não teve “crises existenciais irrevogáveis”. O grupo responsável pela moção de estratégia global de António Costa foi coordenado por Ana Catarina Mendes e integrou, entre outros, o ex-ministro e eurodeputado Pedro Silva Pereira e o antigo ministro do Trabalho Paulo Pedroso.

O elogio da “geringonça” e a capacidade de antecipação

António Costa considera que vai entrar para a História, por ter sido o seu PS a derrubar “o velho anátema do arco da governação”, que estava confinado ao PS-PSD-CDS: “Quando se fizer a história desta experiência governativa haverá também que fazer justiça à capacidade que o PS teve, no seu último congresso, de antecipar a necessidade dessa mudança”. O aviso foi feito um ano antes das legislativas por Costa, também ao discursar no congresso do PS na FIL. Nesse momento, porém, não se deu demasiada importância à proclamação. Ainda parecia uma miragem inviável.

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Passados seis meses da existência da “geringonça”, o líder do PS não se limita ao auto-elogio por o PS ter protagonizado a “liderança da esquerda”, mas alarga os encómios aos parceiros: “O PS teve à sua esquerda três partidos que manifestaram, no rescaldo das eleições de outubro de 2015, um enorme sentido de responsabilidade e uma grande capacidade de separar o essencial do acessório”. O líder socialista enfatiza ainda terem sido “os pontos de convergência e não os de divergência” que os partidos “optaram por valorizar”, ao contrário do que acontecia no passado. Os acordos escritos, continua o texto, conferem à solução governativa “uma solidez e um horizonte de estabilidade bem superior à de qualquer dos governos minoritários que anteriormente existiram na democracia portuguesa – e foram vários”. E a seguir até ironiza, comparando a chamada “geringonça” com a anterior coligação de direita entre o PSD de Pedro Passos Coelho e o CDS de Paulo Portas. “Porventura, essa solidez será até maior do que a de alguns governos de coligação com maioria absoluta, que nem por isso lograram concluir os seus mandatos ou deixaram de enfrentar sérias crises existenciais, irrevogáveis ou não”.

Esquerda, sim, mas não demais, transparece também o documento. Segundo o secretário-geral do PS, os receios sobre a solução à esquerda não se fizeram sentir. Não há “uma subversão radical do sistema de governo” e o PS não está “refém” dos partidos à sua esquerda”, nem sequer “manietado” ou “paralisado”. Os piores “presságios não se confirmaram”, como os de um “sistema de governo de assembleia”, tenta clarificar a liderança socialista.

Mesmo sem afrontar Marcelo Rebelo de Sousa de forma direta e depois de criticar Cavaco Silva, António Costa também faz questão de demonstrar que o sistema político português é parlamentarista e que não se revê na designação “que alguns dizem equívoca”, de um sistema de tipo “semipresidencialista”. O líder do PS explicita que o Executivo responde “politicamente, e em exclusivo, perante a Assembleia da República, a cuja fiscalização política naturalmente se submete”.

Porta aberta ao Bloco e ao PCP nas eleições autárquicas

O principal objetivo político do partido em 2017 é “renovar a maioria nos municípios e nas juntas de freguesia” para manter a presidência da ANMP e da ANFRE. “O que esperamos é que as eleições locais permitam consolidar uma maioria autárquica em sintonia com o novo tempo político liderado pelo Partido Socialista desde o final de 2015″, lê-se na moção.

As candidaturas devem estar preparadas “até ao final do primeiro trimestre de 2017”, seguindo o “princípio geral” da recandidatura dos atuais presidentes de câmara e de junta. Para replicar nas autarquias o modelo de apoio ao Governo, o PS também está aberto ao estabelecimento de “plataformas de diálogo com outras forças políticas, cidadãos independentes e movimentos de cidadãos visando a procura das soluções de governação local que melhor sirvam as populações.” Um detalhe: a abertura aos cidadãos independentes pode abrir caminho ao regresso do PS ao poder em Matosinhos, um bastião socialista governado por Guilherme Pinto, que saiu do partido para se candidatar através de um movimento de cidadãos.

Ainda no que se refere ao Poder Local, o PS quer concretizar, já depois das eleições de 2017, “os novos procedimentos eleitorais para a liderança das CCDR e das novas autarquias metropolitanas de Lisboa e do Porto”. Os dirigentes da CCDR são neste momento selecionados através da CRESAP, a entidade independente que avalia os altos quadros do Estado e que sugere três nomes para cada cargo (depois um é escolhido pela tutela). As eleições para as CCDR, votadas pelos autarcas das câmaras e das assembleias municipais, “também vão requerer uma forte mobilização e preparação atempada” por parte do PS. O mesmo para a “a eleição direta da liderança das novas autarquias metropolitanas”.

A herança do passado e as dificuldades no futuro

No seu documento estratégico, o líder socialista regista as tradicionais heranças do passado, com críticas ao Governo anterior, para justificar os condicionalismos do presente. Mas também toma cautelas para dizer que as perspetivas económicas no futuro não são brilhantes. A crítica incide sobretudo no caso Banif: “A tão propalada ‘saída limpa’, que ajudou a sustentar a ilusão eleitoralista promovida pelo Governo da direita, escamoteou, e de facto escondeu, os gravíssimos problemas do nosso sistema financeiro”.

As nuvens cinzentas que afetam o otimismo do primeiro projeto económico dos socialistas têm a ver com o abrandamento da economia internacional: “[São] dificuldades decorrentes do abrandamento da economia mundial, sobretudo das economias emergentes”. São, sobretudo, “problemas políticos ou económicos com que se debatem algumas das economias mais importantes para Portugal, como Angola, o Brasil, a Venezuela e a nossa vizinha Espanha”.

As críticas à Europa para combater o “império da austeridade”

Este será o principal eixo da moção. Sem mudanças na Europa, dificilmente haverá a possibilidade de se alterarem as políticas decisivas em Portugal. Se o PS era historicamente o mais europeísta do espetro partidário, com esta moção de António Costa os socialistas adotam um tom crítico das instituições europeias que nunca tinha sido tão vincado no partido. Primeiro, Costa insiste que o Executivo “rompeu com a atitude subserviente do Governo anterior e tem-se batido, por vezes em condições muito difíceis, pela defesa dos interesses de Portugal em Bruxelas”. Não é uma “atitude de confronto com as instituições europeias” — para se distinguir dos gregos –, mas sim uma escolha entre a “obediência e a subserviência”. O texto dá como exemplo as negociações do Orçamento do Estado, mas sem assumir que o documento foi descaracterizado pelas exigências europeias — como tem sido muitas vezes apontado pelo primeiro-ministro. Ou que teve de haver cedências significativas à Comissão Europeia.

O secretário-geral do PS defende um Novo Impulso para a Convergência — assim, com letras maiúsculas — para dar “sentido” ao projeto europeu. Na opinião de António Costa, o “diálogo europeu entre iguais” foi substituído por uma “constante negociação conflitual entre credores e devedores. O espírito de solidariedade parece substituído pela ditadura do ‘risco moral'” e o “esforço de coesão suplantado pelo império da austeridade”.

Os passos no sentido de haver maior flexibilidade na política económica e orçamental na Europa são “insuficientes”, considera António Costa: “O Plano Juncker, tal como está concebido e financiado, fica aquém do necessário para impulsionar de forma suficientemente expressiva o investimento público e privado na União Europeia, apesar da sua ambição de mobilizar 315 mil milhões de euros adicionais de investimento em três anos.”

O chefe do Governo, que lida diretamente com os outros líderes europeus, classifica ainda como uma “intolerável incerteza” o real significado “de conceitos decisivos como os de ‘crescimento potencial’ e ‘défice estrutural’”, que condicionam os orçamentos nacionais. “São apenas exemplos de matérias que exigem revisão”. O debate sobre este tema está em curso entre os países do Eurogrupo, mas o PS não apresenta aqui alternativas.

O único aspeto em que coincide com uma proposta já antiga de Pedro Passos Coelho é este: a criação de um FMI para a Europa: “O Mecanismo Europeu de Estabilidade, uma solução improvisada no pico da crise, deve evoluir para um autêntico Fundo Monetário Europeu, com o músculo financeiro necessário para auxiliar os Estados-membros em períodos de instabilidade financeira e dificuldades no acesso ao crédito internacional.”

O vírus da fé excessiva nos mercados

A moção de estratégia do secretário-geral do PS posiciona-se à esquerda do que costuma ser normal quando o PS está no Governo. Neste documento, a liderança socialista expia os pecados do passado sobre a excessiva crença do partido nos mercados. Não está lá explícito, mas sugere-se uma crítica implícita ao guterrismo. O caminho do PS no sentido de um maior liberalismo económico começou nos anos 90, com a identificação de António Guterres com a Terceira Via britânica de Tony Blair, mas manteve-se com José Sócrates. E António Costa foi ministro de ambos. O texto da moção coloca a questão em termos do movimento socialista internacional e da crise sentida pelos partidos socialistas e sociais-democratas na Europa: “Porque sofreu, então, a nossa família política alguma erosão? Não podemos descartar as nossas próprias responsabilidades. Nem sempre acertámos o passo com as reais preocupações dos cidadãos e, de certo modo, fomos também contaminados, em diversos momentos históricos, pelo vírus da fé excessiva na autorregulação dos mercados, não sendo capazes de resistir às tendências de financeirização do capitalismo mundial, nem de impor uma regulação suficiente do processo de globalização”. A auto-crítica está feita.