Esta é a história de alguém que sobrevive a um atropelamento.
Abre os braços, olha para o chão, sente o peso do cabisbaixo a atirá-lo para baixo. O português está desanimado, já refilou para o ar umas quantas vezes, o desalento visita-o. Está 0-5 no marcador e João Sousa, melhor que ninguém, sabe que nem luta está a dar. A bola chega-lhe com muita força, está farto de correr, o top spin fere-o muito e esse efeito que faz a bola rolar de baixo para cima fá-lo chegar a muitas (demasiadas) bolas à rasca. Ele sofre a cada ponto que não ganha, a cada um que o lembra que do outro lado do court está um senhor chamado Rafael Nadal. E como o conhece bem, o português.
João Sousa sabe que o ténis com o espanhol é desporto para sofrer. Em dezembro vai a Maiorca e faz uma semana de treinos com o canhoto, durante a pré-época. Leva um estoiro. Ao fim do segundo dia confessa estar de rastos, com mazelas das cinco horas a trabalhar num dia “muito intenso e muito produtivo”. Porque Rafael Nadal é um monstro físico, a correr, a mexer-se e a bater na bola. Além das pancadas que disparam a bola com uma força bruta, o espanhol fá-la cair onde quer e o português sofre muito com isso. Não no treino, mas no court central do Masters 1000 de Madrid, onde o tempo parece passar mais rápido que o costume.
O português perde o primeiro set em 25 minutos, por 0-6. O português defende muito, nem sempre bem, é engolido pela brutalidade que vem do outro lado da rede e erra muito quando tenta atacar. Só ganha 10 pontos em 36 possíveis e acaba com 12 erros não forçados. É pouco, sobretudo para alguém que, no dia anterior, escreve história à raquetada e chega aos quartos-de-final de um Masters e fica quase garantido no top-30 do ranking. João Sousa tem de reagir e reage.
Regressa ao court com outra mentalidade, nota-se. Usa mais a bola para atacar Nadal, quer obrigá-lo a correr mais, faz por tirar partido dos jogos de serviço para mostrar ao espanhol que não é o único a mandar naquele campo. Começam-se a ver pontos bonitos para o português, bolas às quais o espanhol não chega, aplausos a ouvirem-se no estádio central do torneio a favor do tenista que não nasceu nesse país. Joga melhor, joga bem. Não ameaça o serviço de Nadal, mas consegue fazer com que o espanhol deixe de mexer com o seu. O português faz o 3-3 depois de quase meia hora sentado, à espera que a chuva e o juiz de cadeira concordem fechar o teto de cobertura do estádio.
João Sousa consegue mexer-se mais rápido, a fugir à esquerda como fugira contra Jack Sock, no dia anterior. Usa a direita para alargar o ângulo das pancadas, obriga Nadal a esticar-se em vez de chegar às bolas à vontade. Cada jogo de serviço fica em casa, mas o português chateia o espanhol. Dá-lhe luta quando é o canhoto dos tiques a servir (o espanhol toca na orelha, no nariz, na outra orelha, arregaça levemente a manga da t-shirt e faz tudo de novo antes de cada serviço), cada vez mais. Ao 4-4 segue-se o 5-4, porque João Sousa quebra o serviço ao matulão da terra batida que parecia inquebrável — Nadal já venceu 49 torneios no pó de tijolo, um recorde no ténis. É a um recordista que João Sousa, pouco depois, ganha um set: 6-4.
Jogar a negra. O português obriga o número cinco do ranking a jogar um terceiro set no torneio que já venceu por três vezes (2010, 2013 e 2014). E força-lo a suar muito, muito, muito. O jogo de serviço de João Sousa continua implacável e até fecha pontos com ases enquanto obriga Rafael Nadal a dar tudo o que tem para aguentar os seus jogos de serviço. Nota-se pela forma como festeja os pontos, efusivamente, aos gritos, e isto é um elogio para João Sousa. O português não o larga e percebe-se que o terceiro set vai ser igual ao segundo. É-o até o senhor que tem 14 torneios do Grand Slam conquistados lograr um jogo de serviço em branco para fazer o 4-3. Essa supremacia toca à porta da mente de Sousa, que treme no seu jogo de serviço e permite que Nadal o quebre. O 5-3 deixa o espanhol a servir para fechar o encontro.
Depois a sorte, a gravidade, o vento, a concentração, o que seja, nada ajuda João Sousa quando a penúltima bola do encontro toca mesmo no cima da tela da rede e escolhe cair para o lado do português. Nadal fica com um match point e guarda-o para ele. Mas só ao fim de duas horas e pouco, uma maratona de ténis que faz com que Nadal festeje, muito mesmo, a vitória. Pudera — o português faz suar o tenista com quem melhor se dá no circuito e fá-lo também ver que passar-lhe por cima uma vez, não chega.
João Sousa sobreviveu. E sai bem vivo, muito mais do que estava, de Madrid.