Entre 1983 e 2009, o Sri Lanka viveu em guerra civil, travada entre as forças do governo e os Tigres Tamil, guerrilheiros nacionalistas e secessionistas que combatiam pela independência de uma parte da ilha. Ambos os lados cometeram atrocidades e o conflito causou mais de 100 mil mortos, e quase um milhão de refugiados entre os tamil, que se espalharam por todo o mundo. O Dheepan do título do filme do cineasta francês Jacques Audiard, vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2015, é um desses refugiados, um guerrilheiro que quer fugir da violência e pedir asilo político em França (a personagem é interpretada por Jesuthasan Anthonythasan, um antigo Tigre Tamil que se instalou em França nos anos 90 e se tornou escritor e activista político).

[Veja o “trailer” de “Dheepan”]

Dheepan não é o seu verdadeiro nome. É uma identidade falsa, tirada a um morto. Tal como falsa é a “família” que o acompanha. A jovem Yalini não é na realidade a sua mulher, nem a pequena Illayall é a filha de ambos, mas sim uma órfã que estava no mesmo campo de refugiados. Estes três estranhos que fingem ser uma família para conseguirem exilar-se em França, são instalados, uma vez lá, num daqueles bairros dos subúrbios de Paris onde o Estado abdicou de ter jurisdição, a polícia passa de raspão e a lei é feita pelos traficantes de droga e de armas.

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Dheepan torna-se zelador de um prédio degradado, Yalini cuida de um frágil ancião árabe cujo apartamento o filho, um dos líderes do tráfico de droga, tornou no seu “escritório”, e Illayall vai para a escola. O trio tenta manter a aparência de uma família, mas é difícil simular intimidade onde ela não existe. Dheepan não larga um retrato da família morta pelos militares no Sri Lanka, Yalini não tem paciência para a “filha” e quer ir para Londres, onde tem parentes, e Illayall é marginalizada na escola. E descobrem que não deixaram para trás a violência, porque no bairro há confrontos constantes entre os bandos rivais. Fugiram de um país em guerra para cair num subúrbio onde se combate a tiro, à facada e com bastões de basebol.

[Veja a entrevista com o realizador Jacques Audiard]

https://youtu.be/vuhsGKmfguI

O trio tenta manter uma impressão de união e normalidade e passar o mais possível despercebido no dia-a-dia, um esforço que a câmara de Jacques Audiard regista com um realismo lacónico e económico, mas preciso, e contando com a plena aplicação dos três intérpretes principais, todos eles sem experiência de representação. O mesmo realismo com que o realizador mostra, num desassombro politicamente incorreto que não deixou de melindrar os bem-pensantes em França, como são e como atuam os “gangs” que formam um poder paralelo ao do Estado nas “cités”. E que acabam por fazer com que Dheepan, que havia virado costas de vez à violência (quando um antigo comandante, também refugiado em Paris, lhe pede para arranjar armas para a guerrilha, ele recusa e deixa-se agredir sem reagir por aquele), tenha que puxar pela sua experiência de combate e vá em socorro dos seus, levado por uma fúria imparável.

[Veja a entrevista com os dois atores principais]

Jacques Audiard disse que a sua primeira ideia para “Dheepan” tinha sido fazer um “remake” de “Cães de Palha”, de Sam Peckinpah. Mas o seu filme tem algo de “western” clássico, ao centrar-se num homem que depôs as armas, abjurou a violência e quer construir uma vida nova e com sentido (ver como Dheepan tenta dar alguma ordem e arrumação ao prédio por que é responsável, até reparando os elevadores parados há muito tempo), mas é forçado a voltar a empunha-las por uma razão maior. Este acto transfigurará o seu destino, e o de Yalini e Illayall, levando-os para longe do perigo e tornando reais os laços simulados que os uniam. Acima de qualquer outra coisa, “Dheepan” é um filme sobre a forma como a reação à adversidade, a comunhão de identidade e o instinto de sobrevivência num meio estranho e hostil, acabam por transformar uma família fingida numa família verdadeira.

Curiosamente o próximo filme de Audiard, “The Sisters Brothers”, será mesmo um “western”, rodado nos EUA e com Joaquin Phoenix e John C. Reilly nos papéis principais: o de dois irmãos pistoleiros que perseguem um prospetor de ouro para o matar.