Miguel Macedo tinha sido acusado no dia 13 de novembro de 2015 pelo Ministério Público (MP) da prática de três crimes de prevaricação e um crime de tráfico de influências no exercício das funções de ministro da Administração Interna. Esta quinta-feira foi pronunciado para julgamento pelo juiz Carlos Alexandre juntamente com os restantes 16 arguidos do processo que ficou conhecido com o caso dos ‘vistos gold’.

O magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal aderiu totalmente às imputações que a procuradora Susana Figueiredo fez no despacho de acusação. O melhor exemplo disso mesmo é o facto de ter transcrito uma frase do despacho de acusação, assumindo também como sua a seguinte posição:

O muito grave e acentuado desrespeito pelos deveres funcionais e pelos ético-profissionais de conduta, evidenciando total falta de competência e honorabilidade profissionais, a natureza e a extrema gravidade dos crimes imputados, a personalidade do arguido manifestada nos factos praticados e o elevado grau e culpa colidem com os fins institucionais do cargo público de que Miguel Macedo era titular, cujas atribuições assumem elevadíssima importância para o Estado português, donde resulta a incompatibilidade absoluta entre a ação praticada e a manutenção de qualquer outro cargo público exercido pressuponha a observância de especiais deveres de prossecução do interesse público, de isenção, de imparcialidade, de zelo e lealdade”, lê-se na decisão instrutória de Carlos Alexandre a que o Observador teve acesso.

Os crimes imputados a Macedo traduzem-se, segundo a decisão instrutória, em quatro situações:

Our man in Beijing

Todos os crimes imputados a Miguel Macedo, que terão de ser provados em julgamento, têm em comum uma pessoa: Jaime Gomes. Este empresário, que também será julgado por um crime de corrupção passiva para ato ilícito, um crime de prevaricação e dois crimes de tráfico de influência, é um dos melhores amigos de Macedo e está na origem de todos crimes imputados ao ex-ministro da Administração Interna. O MP diz mesmo que se conhecem desde a adolescência e que se tratam por “irmãos”.

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Miguel Macedo e Jaime Gomes tinham também negócios antigos que, segundo o MP, o próprio Macedo nunca terá declarado ao Tribunal Constitucional enquanto deputado e ministro do PSD na X e XI Legislatura. Como “facilitadores de contactos com entidades públicas e privadas”, os dois terão tido contrato com o grupo Often (2008), assim como terão sido estabelecidos contactos entre ambos com José Santa Clara (Grupo Bragaparques) com o propósito de explorar (sem sucesso) hipóteses de negócio na área de Parcerias Público-Privadas no Brasil.

Macedo e Gomes terão sido igualmente sócios de uma empresa brasileira chamada Tecnobras. Terá sido mesmo constituída em julho de 2011, já depois de Macedo ter tomado posse como ministro da Administração Interna do Governo de Passos Coelho, tendo como sócios, segundo o MP, António Figueiredo, Jaime Gomes, Miguel Macedo e o luso-brasileiro Paulo Elísio de Souza, presidente da Câmara do Comércio e Indústria do Rio de Janeiro.

Regressando ao caso ‘vistos gold’. Jaime Gomes, juntamente com António Figueiredo (ex-presidente do Instituto de Registos e Notariado) e o empresário chinês Zhu Xhiadong, serão a base da rede dos ‘vistos gold’.

A ideia da rede era simples: realizar negócios imobiliários lucrativos com os empresários estrangeiros que manifestavam interesse em obter uma Autorização de Residência para Investimento (ARI) – nome técnico do ‘visto gold’. Segundo o MP, a ideia original pertencerá a António Figueiredo e a Zhu Xhiadong, juntando-se-lhe Jaime Gomes a partir de agosto de 2013.

Gomes e Xhiadong terão concebido no final de 2013 o plano de abrirem na China uma empresa comercial, designada como “Agência de Imigração/Vistos Gold”, para oferecerem aos empresários interessados o serviço completo: um portfólio de investimentos imobiliários em Portugal e um acesso rápido, eficaz e com sucesso garantido ao processo burocrático do ‘visto gold’. Para isso era fulcral a criação de um posto diplomático de Oficial de Ligação (OLI) e a nomeação de uma pessoa de confiança para tal cargo.

É precisamente aqui que entra Miguel Macedo, pois a criação de tal posto depende sempre da indicação do ministro da Administração Interna. Assim, Jaime Gomes terá solicitado a Miguel Macedo, que tutelava do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a criação do posto de Oficial de Ligação na embaixada portuguesa em Pequim e a respectiva nomeação de um funcionário de confiança daquele organismo. Macedo terá ordenado verbalmente a Manuel Palos, então diretor do SEF e igualmente arguido neste processo, que lhe propusesse a criação de tal posto em março de 2013. Palos obedeceu mas Miguel Macedo não chegou a assinar o documento final. Segundo a procuradora Susana Figueiredo, verificou-se uma fuga de informação sobre a existência da investigação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) que fez os arguidos congelarem os seus planos.

Um dos indícios mais fortes que o MP entende ter contra Miguel Macedo diz respeito a um sms enviado pelo então ministro para António Figueiredo no dia 5 de novembro de 2013: “Sempre a facturar… já dei a volta ao assunto da China. Abraço”. Para os procuradores responsáveis pela acusação, Macedo está a referir-se à criação do cargo OLI na embaixada em Pequim

José Cesário, então secretário de Estado das Comunidades, chegou a estar envolvido neste processo administrativo, tendo Miguel Macedo admitido mesmo publicamente (mais concretamente na Assembleia da República a 17 de dezembro de 2013) que o posto OLI em Pequim seria mesmo criado.

O MP entende que a prática do crime de prevaricação por parte de Macedo foi alegadamente consumada com a ordem verbal que deu a Manuel Palos para propor a criação de um posto diplomático que não existia na embaixada em Pequim. O crime imputado: prevaricação de titular de cargo político em regime de co-autoria com António Figueiredo, Manuel Palos e Jaime Gomes

No ex-paraíso de Khadafi

A Líbia é centro do segundo alegado crime de prevaricação que é imputado a Miguel Macedo. Mais uma vez, Jaime Gomes representa o papel de intermediário. Neste caso, está em causa um negócio de Gomes com a Intelligent Life Solutions (ILS), de Paulo Lallanda Castro — também patrão de José Sócrates no mesmo período.

A ILS estabeleceu um contrato a 24 de Julho de 2013 com o Ministério da Saúde da Líbia para providenciar tratamentos médicos a 342 cidadãos líbios feridos na guerra civil que precedeu a queda do regime de Muammar al-Khadafi. A troco de um total de cerca de 18 milhões de euros, os doentes líbios seriam tratados em diferentes hospitais portugueses.

Contudo, eram necessários os respetivos vistos de entrada em Portugal. Para agilizar o processo burocrático junto das autoridades portuguesas, e tratar de toda a logística da estadia em território nacional, a ILS contratou a JAG – Consultoria e Gestão, sociedade de Jaime Gomes, por cerca de 961 mil euros brutos — dos quais só terá recebido cerca de 101 mil euros entre novembro de 2013 e maio de 2014.

Miguel Macedo aparece nesta história porque, segundo a acusação do MP, terá solicitado a Manuel Palos, diretor do SEF, que desse um tratamento de favor à ILS. Na sequência dessa alegada indicação, Palos terá elaborado um “pacote de medidas de natureza excepcional” para facilitar a entradas dos líbios em Portugal — medidas essas que terão tido parecer negativo e a oposição de diversos funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Embaixada de Portugal em Tripoli.

O MP evidencia mesmo nas provas que apresentou ao juiz Carlos Alexandre que a sociedade AMI – Hospital Privado de Guimarães, que foi pioneira em acordos idênticos com as autoridades da Líbia, teve de cumprir condições mais gravosas para conseguir os vistos para os seus pacientes.

Há mesmo uma situação em que Miguel Macedo, segundo o MP, terá falado com o seu colega ministro Rui Machete, de forma a que os pacientes da ILS continuassem a ter um tratamento excecional por parte dos serviços consulares da embaixada portuguesa da Tunísia — país para onde foram transferidos os funcionários da embaixada na Líbia depois desta ter sido encerrada em 2014 devido à guerra civil. Mais uma vez, diversas empresas portuguesas não tiveram direito ao mesmo tratamento que foi concedido à ILS.

Rui Machete manteve sempre um estatuto de testemunha ao longo do processo.

O IVA da empresa de Lalanda de Castro

A ILS de Paulo Lalanda de Castro, juntamente com Jaime Gomes, é também protagonista do crime de tráfico de influências imputado a Miguel Macedo.

Lalanda de Castro tinha um problema fiscal: não tinha cobrado IVA nas faturas de mais de 2,9 milhões de euros que emitiu por conta do contrato estabelecido com o Ministério da Saúde da Líbia, por entender que estava isento. A Autoridade Tributária (AT) não concordou e ordenou o pagamento de 677 mil euros do IVA em falta relativo ao ano fiscal de 2013.

O dono da ILS virou-se para Jaime Gomes que, por seu lado, solicitou ajuda a Miguel Macedo. O então ministro da Administração Interna falou com Paulo Núncio, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, para que recebesse Paulo Lalanda Castro e ouvisse os seus argumentos.

Refira-se que Núncio sempre foi testemunha, nunca tendo sido encarado pelo MP como suspeito de qualquer ilícito.

Emitidos diversos pareceres da AT, certo é que não só a ILS levou a sua avante, como, segundo o MP, poupou igualmente mais 1,1 milhões de euros de IVA para o ano fiscal de 2014. Total do imposto que a AT entendeu que não era devido: cerca de 1,8 mihões de euros.

Segundo o MP, foi esse o valor que o “Estado português deixou de arrecadar na íntegra”, segundo a procuradora Susana Figueiredo escreveu no despacho de acusação e que teve agora a concordância do juiz Carlos Alexandre.

Os helicópteros e a Bragaparques

O terceiro crime de prevaricação imputado a Miguel Macedo está relacionado com o concurso público internacional da gestão e manutenção dos meios aéreos de combate aos fogos florestais — assegurados pelos helicópteros Khamov.

A história é simples. O então ministro da Administração Interna terá enviado do seu endereço eletrónico oficial uma cópia do caderno de encargos para o seu amigo Jaime Gomes — alegadamente antes de tais documentos estarem disponíveis para os restantes concorrentes.

O problema é que a documentação acabou nas mãos dos responsáveis da empresa Everjets, adquirida pouco antes pelo grupo Bragaparques. Foi a empresa de Domingos Névoa que viria a ganhar o concurso, não tendo sequer levantado o caderno de encargos quando manifestou a sua intenção de participar na competição pela gestão dos meios aéreos do Estado.

O juiz Carlos Alexandre acompanhou a posição da procuradora Susana Figueiredo de que o acesso prévio ao caderno de encargos do concurso configura um tratamento de privilégio que colocou a Everjets numa situação de vantagem face aos restantes concorrentes.

Os outros arguidos

António Figueiredo já tinha conhecido a acusação mais pesada por parte do MP — estando mesmo preso preventivamente durante um ano — e foi esta quinta-feira pronunciado na mesma medida.

O ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado, dado pelo MP como o líder da rede dos ‘vistos gold’, vai responder em julgamento por:

  • 4 crimes de corrupção passiva para ato ilícito
  • 2 crimes de recebimento indevido de vantagem
  • 1 crime de peculato de uso
  • 3 crimes de tráfico de influência
  • 1 crime de branqueamento de capitais
  • 1 crime de peculato de uso
  • 1 crime de prevaricação (em co-autoria com Miguel Macedo, Manuel Palos e Jaime Gomes)
    Manuel Palos, ex-director do SEF)

Manuel Palos, ex-diretor do SEF, responderá por:

  • 1 crime de corrupção passiva para ato ilícito (em co-autoria com António Figueiredo)
  • 2 crimes de prevaricação (um crime co-autoria com Miguel Macedo e o segundo crime em co-autoria com Miguel Macedo, António Figueiredo e Jaime Gomes)

Maria Antónia Anes, ex-secretária-geral do Ministério da Justiça, conheceu a seguinte pronúncia:

  • 1 crime corrupção ativa para a prática de ato ilícito
  • 1 crime corrupção passiva para a prática de ato ilícito
  • 2 crimes de tráfico de influência

O grupo de três empresários chineses que tinham sido detidos a 16 de novembro de 2014 e constituído arguidos, foram pronunciados pelos seguintes crimes em regime de co-autoria:

  • Zhu Xiadong: 1 crime de corrupção ativa e 1 crime de tráfico de influência
  • Zhu Baoe: 1 crime de corrupção ativa e 1 crime de tráfico de influência
  • Xia Baoling: 1 crime de corrupção ativa e 1 crime de tráfico de influência

Eliseu Bumba, empresário angolano sócio de António Figueiredo, foi pronunciado por um crime de corrupção ativa por ter alegadamente acordado com Figueiredo o pagamento de cerca de um milhão de euros para elaborar um conjunto de leis para a República de Angola.

Paulo Lalanda Castro foi pronunciado por dois crimes de tráfico de influência, enquanto que Jaime Gomes vai ser julgado pelos seguintes crimes:

  • 1 crime de corrupção passiva para ato ilícito (como cúmplice de António Figueiredo)
  • 1 crime de prevaricação (em co-autoria com Miguel Macedo, António Figueiredo e Manuel Palos)
  • 2 crimes de tráfico de influência (um deles em co-autoria com Miguel Macedo)