É suposto sentir algo, o que seja. Não é só a alegria ou a tristeza de ver uma bola a entrar na baliza, o êxtase de vibrar com uma finta que sai bem, a frustração por alguém não acertar um passe. Qualquer um com dois dedos de testa sabe que o futebol é um jogo que gera emoções. Unai Emery é um senhor com muita testa, sabe que isto da bola “alimentar expetativas”, diz este senhor que tem mais testa do que cabelo. Não está careca, mas podia estar só de pensar em maneiras de ganhar. Se o futebol fosse uma questão de escolhas entre jogar e competir, este espanhol optaria pela segunda opção. E isto é um problema para nós.

Quem diz nós diz você, que está a ler isto e que vê ou queria ver a coisa sobre a qual se escreve. Que foi um jogo — e não uma competição — de futebol. Os espanhóis cerram os dentes, enrijecem como o treinador que têm no banco, querem competir com o Liverpool e não jogar contra ele. O Sevilha chuta toda e qualquer bola para a frente, lê sinais de “proibido ter a bola no chão” em todo o lado, parece só a querer no ar. Sempre que tem um livre, seja atrás ou à frente da linha do meio campo, a bola pontapeia-se para a área. As emoções que daqui vêm são poucas, ou apenas uma, o tédio.

Não é a bola que queima, é a relva. Os espanhóis fogem dela, levantam todos os passes no ar, tentem chegar à área contrária rápido, é obrigatório. Querem que as coisas aconteçam pelo alto e não pelo baixo, onde sabem que os ingleses pressionam, aceleram, trocam muitos passes — e jogam, lá está. A bola está muito tempo a viajar pelo ar, Coutinho, Lallana e Firmino não lhe tocam na bola, tão pouco o faz Ever Banega. O argentino é o único no Sevilha que a mantém agarrada ao pé, que arrisca, finta e tenta coisas com ela, é o artista que se o futebol fosse ele contra um ou até dois, ganhava quase sempre.

Só que entre chutões, bolas no ar, ressaltos e coisas feias, o Liverpool aproxima os jogadores, percebe que o truque está nas segundas bolas. Começa a ganhá-las, a amansá-las na relva, a ser rápido como um relâmpago cujo ruído corta de repente o sono a meio da noite. As bolas que o Sevilha espera ver longe começam a chegar perto da sua área, muitas vezes. Uma toca no braço de Daniel Carriço, mas não se ouve apito, nem uns minutos depois, quando o português impede um remate de cabeça de Sturridge de entrar na baliza. O inglês falha um remate antes de acertar outro com a trivela, corrigindo na prática o que Mariano fez por seguir a teoria: o brasileiro tapa-lhe a perna canhota na área, quer obrigá-lo a jogar com a direita, o avançado responde com uma trivela. Um golaço (35′) é sinónimo de espanto e admiração.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Festa, alegria, êxtase, finalmente emoções. O Liverpool joga para marcar e fica a vencer e quase que é por dois golos, não fosse Sturridge meter-se entre David Soria e Kolo Touré. O guarda-redes não vê a bola que o defesa cabeceia e o inglês está em fora-de-jogo mesmo sem querer. Ao intervalo o Sevilha apenas se contenta com um pontapé de bicicleta com que Gameiro pedala, na área, após uns ressaltos que não tiram a bola da área inglesa, após um canto. É pouco para quem compete, é um motivo para começar a jogar.

BASEL, SWITZERLAND - MAY 18: (THE SUN OUT, THE SUN ON SUNDAY OUT) Daniel Sturridge of Liverpool dejected during the UEFA Europa League Final match between Liverpool and Sevilla at St. Jakob-Park on May 18, 2016 in Basel, Switzerland. (Photo by Andrew Powell/Liverpool FC via Getty Images)

Foto: Andrew Powell/Liverpool FC via Getty Images

A bola vai ao meio do campo, o árbitro apita e o Sevilha parte. Faz três passes rasteiros na esquerda e cai na tentação de fazer um longo, para a direita. A cabeça de Alberto Moreno toca-lhe, mas mal, porque a deixa nos pés de Mariano. O brasileiro não é tentado pelo cruzamento rápido, antes opta por castigar o espanhol que já foi do Sevilha. Veste-lhe uma cueca, fica sozinho na área, aparece o espaço para um cruzamento rasteiro. E surge Kevin Gameiro, a desviar e a provar que sim (46′), vale a pena jogar onde os ingleses jogam em vez de tentar competir onde eles não gostam. A partida continua rasteira, com a bola na relva, com um Liverpool apático e um Sevilha a aproveitar para continuar a jogar.

Deixa-me de bola pelo ar. Querem-na sobre a relva, à procura de tabelas e passes bem curtos, com os jogadores próximos, a progredirem juntos em direção à baliza de Mignolet. Os espanhóis percebem que, mesmo bons de bola, Coutinho e Firmino não gostam de correr para a roubar. Não ajudam Emre Can e James Milner, os que têm essa função na lista das prioridades, e é isso que Vitolo aproveita quando recebe uma bola na esquerda. Finge que arranca, trava, vai para o centro por saber que Can não vai ter um jogador a apoiá-lo por dentro. Pede uma tabela a Coke, recebe-a, exige outra a Gameiro, tem-na, e quando embeleza tudo com um túnel a um adversário lá aparece o capitão do Sevilha a cruzar-se com a bola. Peito do pé, um toque, remate e Coke a festejar (64’).

O golo é bom, bonito, com toque e vai e direito a repetição. Quem não sente os clubes que jogam fica contente por ver, só pode. É assim que se joga quando se pode, segundo Unai Emery, que não terá palavras para a forma como a bola chega a Coke, uns minutos depois. O passe de Gameiro não chega a sê-lo, porque a bola toca em dois homens do Liverpool e apenas assim chega ao espanhol, que está na área sozinho, em suposto fora-de-jogo, e só tem tempo para rematar em frente e com força. Mignolet não defende nem ampara os ingleses, que caem estatelados (70’) nesta final. Infelicidade para quem é do Liverpool.

Os ingleses não têm espaço neste texto por estarem encurralados em campo. Nada criam, fazem ou rematam na segunda parte, o jogo encolhe-os ao tamanho de espetadores, não arranjam maneira de competir ou jogar contra a intensidade que o Sevilha traz do balneário. Ou que sempre leva até à Liga Europa. Os espanhóis competiram para perder a prova e depois jogaram para a ganharem pela quinta vez nos últimos onze anos, a terceira consecutiva com Daniel Carriço e Diogo Figueiras — Beto não joga um minuto na edição deste ano, mas lá estava no relvado, a festejar. Aí há emoções há bruta, há alegria, felicidade, regozijo, alívio, reis na barriga e todas e mais algumas coisas que são sinónimos umas das outras. Isto é que é gerar emoções.

Porque competir não é o mesmo que jogar e apenas jogando se consegue ir competindo. Se ainda restavam lições para o Sevilha aprender na Liga Europa (que volta a qualificar uma equipa que acaba o campeonato em 8.º para a fase de grupos da Liga dos Campeões), esta era uma delas. Mas vá lá, o treinador dos andaluzes já desconfiava: “Cresci com uma ideia: o futebol é um jogo. Tens que alimentar expetativas de desfrute, fazer com que quem joga e quem vê o teu futebol sinta emoções. Mas é um jogo muito sério, em que se joga para ganhar. Mas, se tivesse que escolher, escolho ser competitivo. Mas isso não quer dizer que exclua o jogo. Só quando unes as duas é que estás satisfeito“. Ah bom, Unai.

P.S. Este ano as duas provas da UEFA vão para clubes espanhóis, porque a 28 de maio a Liga dos Campeões joga-se entre o Real e o Atlético de Madrid. Há 15 anos que uma equipa espanhola não perde uma final europeia contra um adversário de outro país. Isto é que é obra.

BASEL, SWITZERLAND - MAY 18: Unai Emery manager of Sevilla celebrates the Europa League champions after the award ceremoy of the UEFA Europa League Final match between Liverpool and Sevilla at St. Jakob-Park on May 18, 2016 in Basel, Switzerland. (Photo by David Ramos/Getty Images)

Foto: David Ramos/Getty Images