Título: Cândido ou o otimismo
Autor: Voltaire
Editora: Relógio d’Água
Páginas: 160

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Cândido é nome que Voltaire pode ter dado, mas que nunca poderia receber. A sabedoria mundana do filósofo foi suficiente para ganhar várias vezes a lotaria, ser íntimo de princesas e imperadores, conhecer os cantos a vários palácios e decantar o seu próprio castelo a dois passos da Sabóia.

Voltaire não é Cândido, nem inocente para não perceber a quem fere e a quem agrada, o que faz rir o povo e chorar a Nobreza. Voltaire sabe ofender e deleitar, e sabe deleitar a ofender. Tem uma inteligência sarcástica, de salão, que se manifesta melhor na crítica do que no elogio. Um espírito refém dos olhos, já que os olhos não vêem para dentro — os seus trabalhos nunca são sobre o Homem, são sempre sobre os outros Homens. Em literatura e filosofia fica-se sempre, por mais estranho que isso seja, com um retrato melhor da Humanidade ao analisar um único Homem – o próprio – do que a analisar muitos. Voltaire, como bom materialista, pouco liga ao indivíduo; daí que as suas obras, mais do que sobre os Homens, sejam sobre os tolos.

Não é por acaso que Antero de Quental, numa carta a Eça de Queirós, descreve Voltaire como alguém que escreve com uma espécie de ódio às suas personagens; as suas obras, de facto, são um longo catálogo de misérias Humanas, desvendadas com uma malícia misantrópica que não deixa escapar nada; Voltaire prefere revelar absurdos metafísicos a descobrir neles a subtileza do pensamento Humano; nunca olha para a filosofia como um magnífico edifício construído sobre o raciocínio, expõe-na sempre como a veste vazia do rei nu.

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Daí que a sua obra esteja sempre próxima da comédia. O seu humor corrói as fundações dos mais sólidos sistemas filosóficos e emperra as roldanas do pensamento mais activo. De facto, não se apieda das suas personagens: estas, ou são sacos de pancada por causa das suas ideias ou, se as não têm, são vítimas das que os outros lhes impingem.

O Cândido faz parte de uma tradição de paródia filosófica que usa as suas personagens como modelos de falência das ideias. Aquilo que acontece a Cândido – acreditar no melhor dos mundos possíveis quando este lhe desaba sobre a cabeça – é o inverso do que se passa com o Misantropo de Molière: este decide descrer da bondade Humana, a despeito de todo o bem que lhe acontece.

Ferney near Geneva, Switzerland, 1786. The chateau where Francois Marie Arouet de Voltaire (1694-1778), French writer and embodiment of the Enlightenment, settled after 1758, viewed from the garden. From The European Magazine, (London, 1786). (Photo by Ann Ronan Pictures/Print Collector/Getty Images)

Ferney, o castelo onde Voltaire viveu depois de 1758

De facto, quando lhe faltasse o génio, a Voltaire e a Cândido valeria a moda. Conto meio pícaro, cheio de acção, com tal quantidade de mortes e ressurreições que fazem Cristo parecer um amador nestas matérias, exotismo, cidades utópicas, e a roda da fortuna em plena crise bipolar, tal a rapidez a que se alternam sortes e azares. A mesma sucessão de venturas e desgraças que afadigaram Mendes Pinto, o insólito de Lazarillo, as cidades de S. Tomás Moro, e a pretensão enciclopédica de iluminar um mundo obscurecido pela malvada sotaina negra que cobria, numa conspiração pérfida e universal, todos os cantos do mundo.

Quase tudo o que há em Cândido do ponto de vista formal, já outros o tinham experimentado. Voltaire imita, sim, mas não imita a ninguém melhor do que a ele próprio: François Arouet (o verdadeiro nome do filósofo) é perito no uso das formas comuns para espalhar ideias, de alguma forma, imprevisíveis.

Não é a primeira vez que Voltaire recupera o velho expediente iluminista que passa por deslocar um estrangeiro da sua terra Natal para o fazer delator universal dos bizarros costumes de cada localidade. Montesquieu fez o mesmo nas Cartas Persas, Gracián no Criticon, Malebranche fez parecido no diálogo entre um filósofo Cristão e um filósofo Chinês, mas ninguém o fez tão bem ou tantas vezes como Voltaire. O seu Ingénuo é um selvagem imparcial que denuncia a perversão dos costumes franceses, o seu Filósofo Ignorante também assiste ao sofrimento dos crédulos no melhor dos mundos, Zadig passa no Oriente as passas do Algarve, e Cândido reúne as características desta plêiade de vítimas de teses filosóficas.

Corrida ao ouro

Cândido é, antes de o termo estar na moda, um conto de tese. Ora, a tese começa logo no título. Cândido faz jus ao nome porque é a epítome da razão natural, que não está obscurecida por preconceitos, e pode aferir a validade das ideias dos filósofos. Ora, o primeiro destes que conhece, o Dr. Pangloss, é um Leibniziano que justifica o mal do mundo com a crença de que aquele que habita — o pequeno mundo da província alemã — é o melhor dos mundos possíveis: se Deus é sumamente Bom, este foi o melhor mundo que foi possível criar.

Todo o conto está montado como forma de desmontar esta opinião. Segue-se uma ladainha de desgraças para provar que o mundo é mau (o que ainda assim não impede de ser o melhor possível) e a passagem por outros países com formas de vida melhores (que ainda assim não são outros mundos). A crítica de Voltaire a Leibniz, embora poderosa por causa do brilhantismo literário do francês, não toca nunca o fundo da questão. Voltaire mostra que a teoria é ridícula, não mostra que a teoria é falsa. Como Rilke explica numa das suas cartas a Franz Kappus, a ironia nunca chega ao fundo das questões: sugere, mas não explica. Voltaire goza com a tese de Leibniz, mas só num momento se atreve a propor uma alternativa. É na altura em que Cândido chega ao El Dorado que as verdadeiras ideias de Voltaire são expostas. Até lá, as críticas são de efeito, não de substância. Critica-se a cobiça dos Jesuítas, como se com isto se estivesse a criticar as suas ideias; ora, o problema de julgar uma ideia pela hipocrisia dos seus apóstolos – esquema tão caro a Voltaire – está no facto de se censurar precisamente aquilo que a ideia critica. O problema dos Jesuítas de Voltaire não está em serem católicos; está precisamente em não o serem. A ideia, na verdade, sai incólume da provação, mas é tal o estado do mensageiro que já ninguém a ouve. Voltaire não poupa clérigos nem aristocratas, os primeiros falsos e os segundos pedantes. A sua personagem, que no fundo representa a razão livre, é sempre vítima das mentes rapaces que dominam o poder ocidental. Estas classes, para Voltaire, são inimigas da razão, razão essa que levaria à igualdade e harmonia entre os Homens.

Daí que, no El Dorado — a sua sociedade ideal — todos os Homens se dêem bem: são todos racionais, pelo que todos pensam o mesmo e nunca divergem.

Talvez seja um pouco perigosa a sociedade ideal do autor do Tratado da Tolerância; Voltaire parte do princípio de que como a Natureza pode, até certo ponto, ser percebida, os Homens podem chegar à verdade sobre ela. Daí que, todos os que chegaram à Verdade, chegaram à mesma conclusão. É um esquema de que é difícil sair, mas que também é fácil de usar: os Homens racionais chegam a esta conclusão; se não chegam, não estão a ser racionais.

Voltaire não tem em conta que é possível ser racional com premissas contrárias, ou mesmo irracionais. Isto é, o método da razão, o método dedutivo, está dependente das premissas, que, como o próprio nome indica, implicam sempre uma aceitação prévia à razão. As certezas materiais de Voltaire implicam uma crença na infalibilidade dos sentidos; crença essa que, para os escolásticos, está fundamentada na Bondade do Criador que Voltaire tanto moteja.

O Cândido é um livro brilhante no uso do sarcasmo, divertido, mordaz e inteligente. Comprime algumas das teses mais importantes de Voltaire: desde o seu racionalismo mais ingénuo à descrença na utilidade da filosofia, da crença na igualdade da razão à desconfiança dos Homens que o circundam. É também ilustrativo do método crítico de Voltaire, como explica o desconhecido autor (que se faz passar por um padre Lisboeta) de Les Erreurs de Voltaire: primeiro reduz as ideias dos seus oponentes a uma caricatura, depois, goza com a fealdade da caricatura.

Apesar disso, é impossível deixar de reconhecer as delícias da magnífica prosa de Voltaire, a vivacidade dos seus enredo e o extraordinário poder do seu humor. É um livro brilhante, tipicamente iluminista e até tem um El Dorado. Mas nem tanta quantidade chega para fazer ouro de tudo o que é luz.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério e é alfarrabista.