Shane Black não faz filmes sobre boas pessoas. Os protagonistas dos filmes por ele escritos e realizados não são grandes heróis que fazem sempre o que está certo. Mal são virtuosos. São polícias, detetives, vigaristas, mentirosos, falhados, sacanas, misantropos, assassinos ou algumas destas características combinadas. Muitas vezes pouco é o que os separa dos verdadeiros maus, seja um código moral que os irrita solenemente ou uma missão, um objetivo a cumprir. São péssimos para as famílias, caso as tenham, não vivem grandes vidas de luxo, sucesso ou fantasia. Estão no fim da linha, já viveram muito, têm pouca esperança num futuro melhor e, por vezes, são solitários e até suicidas.

Os vilões, esses, são sádicos, alguns adoram tortura e são altamente memoráveis. Como o próprio diz em entrevistas como esta ao crítico Elvis Mitchell este mês: as personagens dele, que têm sempre algo mais importante para fazer, dizem piadas mas não têm tempo para ficar à espera do riso; ou então têm piada sem saberem que estão a ter. E isto é importante: os filmes de Shane Black tendem a ser hilariantes. Geralmente isso envolve grandes explosões, disparos e muitos cadáveres pelo caminho, bem como muita destruição de propriedade privada e pública. Quando são sobre uma parelha, no final, os dois protagonistas que ao início não se suportavam gostam um bocadinho mais um do outro, e o mais selvagem aprende a ser mais regrado e vice-versa. Mudam um bocadinho e aprendem a ser ligeiramente melhores, mas não muito. A isso ajuda que estes filmes, frequentemente passados em Los Angeles, geralmente se desenrolem durante a época natalícia.

É assim desde 1987, quando Black assinou, aos 24 anos, o seu primeiro guião: “Arma Mortífera”. Como argumentista, Black era alguém com uma marca autoral muitíssimo grande e é muito fácil perceber que um filme é dele, independentemente de quem seja o realizador, algo que não é propriamente comum. Desde 2005, depois de quase dez anos sem um único crédito, reinventou-se como realizador dos próprios guiões. “Bons Rapazes”, que, depois de “Kiss Kiss Bang Bang” e “Homem de Ferro 3”, é o terceiro filme de Black como realizador e chega esta semana aos cinemas, continua na mesma onda. Passado nos anos 1970, junta Russell Crowe e Ryan Gosling e inclui a piada, os diálogos e a vontade de subverter alguns lugares comuns do género que tem marcado o trabalho de Black. E a ação. Junta-se a outros cinco filmes importantes na carreira do argumentista transformado em realizador. São estes:

“Arma Mortífera”, Richard Donner, 1987

Filmes como “Freebie and the Bean” (“Os Anjos da Guarda”, em português), de 1974, “48 Horas”, de 1982, ou “Running Scared” (“Dois Polícias à Solta”) já existiam antes, mas nada fez mais para cristalizar as regras e o modelo dos buddy cop movies como a estreia na escrita de Black. Vendido logo após Black, com 24 anos, ter saído da universidade, o filme de Richard Donner, que antes tinha dado ao mundo filmes como “Superman: o Filme” ou “Os Goonies”, é sobre dois polícias de Los Angeles que descobrem um negócio de droga que envolve ex-militares especiais e a Air America. Mel Gibson é Martin Riggs, cuja mulher morreu há pouco tempo e tem tendências suicidas: urge traficantes de droga a matarem-no, põe o cano da pistola na boca, tem uma bala escolhida para o matar a ele próprio e tudo e salta de um prédio com outro suicida. Toda a gente acha que é louco e ninguém quer trabalhar com ele, até que o põem como parceiro do Roger Murtaugh de Danny Glover, que, aos 50 anos, só se quer reformar. Clássico absoluto, deu origem a três sequelas, mas Black só esteve envolvido na primeira, e abandonou o projeto a meio. Foi a estreia do estilo colorido, mas altamente envolvente, de escrita de guiões do autor. Tanto o tipo de filme que ele escreve quanto a própria maneira de escrever, com descrições bastante ousadas, foram altamente imitados, mas nunca igualados.

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“A Fúria do Último Escuteiro”, Tony Scott, 1991

Depois de “Arma Mortífera 2”, Black ainda escreveu, a quatro mãos, o guião de “The Monster Squad” (“Os Caça-Monstros”), com o seu amigo Fred Drekker, que realizou, sobre um grupo de miúdos viciados em monstros que lutam contra o Conde Drácula e outros monstros míticos que querem tomar conta do mundo. Mas “A Fúria do Último Escuteiro” é o projeto original de Black mais importante a seguir. O guião vendeu por 1,75 milhões de dólares, o mais caro para um spec script – escrito sem ter sido encomendado por ninguém – até à altura. Foi um projeto tumultuoso: quase toda a gente andava às turras. O realizador Tony Scott não adorava a história e foi forçado a incluir cenas que odiava, Bruce Willis e Damon Wayans, os protagonistas, não gostaram nada um do outro – o que até pode ajudar neste género, pelo menos na primeira metade de duração do filme –, e Black não ficou lá muito contente com as mudanças que Joel Silver, o produtor – com quem continua a trabalhar até hoje – e Willis fizeram ao guião. Scott acabou por incluir uma paródia de Silver em “True Romance”. O resultado foi salvo por Stuart Baird, um editor inglês que era contratado para salvar filmes. É sobre um detetive caído em desgraça – um padrão – que se junta relutantemente a uma estrela de futebol americano.

“A Profissional”, Renny Harlin, 1996

Depois dos 1,75 milhões de “A Fúria do Último Escuteiro”, Black ainda trabalhou em “O Último Grande Herói”, que na verdade tinha começado como um guião a parodiar os tipos de filmes que Black escrevia normalmente e foi um desastre de bilheteira (ele foi uma das duas pessoas creditadas pelo argumento, mas gente como William Goldman e até Carrie Fisher puseram as mãos no filme). E, por “A Profissional” (“The Long Kiss Goodnight”, no original), recebeu quatro milhões. Teve o azar de ser um filme do realizador Renny Harlin com a sua então esposa Geena Davis como protagonista logo após ao falhanço retumbante que foi “A Ilha das Cabeças Cortadas”, e o próprio Black diz que isso pode ter ajudado a que o filme, que foi altamente reescrito antes de ser filmado, não tenha corrido lá muito bem. Para alguém cuja obra é muitas vezes acusada de ser demasiada masculina, é o único filme com uma protagonista feminina, não que haja muitas mais mulheres à sua volta: é quase tudo homens. A personagem de Davis é uma ex-assassina da CIA que fica com amnésia e durante vários anos acredita ser uma simples professora de uma terra que, quando descoberta pelos antigos colegas e patrões, se junta a um detetive vigarista interpretado por Samuel L. Jackson – daqueles que, postos ao lado de gente extremamente proficiente e especialista, dizem que nunca fizeram uma única coisa bem na vida. A era dos milhões por spec scripts que nem sempre tinham grandes retornos estava acabada e o primeiro capítulo da carreira de Black encerrado.

“Kiss Kiss Bang Bang”, Shane Black, 2005

Desde a adolescência solitária em Pittsburgh, na Pensilvânia, que Shane Black coleciona livros baratos de detetives. E lê-os todos. É uma influência enorme para os filmes por ele escritos, mas torna-se ainda mais óbvia na sua estreia na realização, de 2005. Black passou os anos anteriores a trabalhar com James L. Brooks, o criador da sitcom Mary Tyler Moore Show e realizador de filmes como “Laços de Ternura” ou “Melhor é Impossível” – em que Black aparece como ator –, alguém que o argumentista considera um herói e mentor – como foi para gente como Cameron Crowe ou Wes Anderson. Em entrevistas, menciona que Brooks se demitiu da parte de votação para argumento da Academia quando Black se candidatou à Academia e foi rejeitado por, com vários filmes e êxitos de bilheteira no currículo, não ter nada de mérito para apresentar e para tentar depois quando tivesse mais créditos. Isto por ser visto em Hollywood como alguém que era demasiado bem pago e não fazia nada de especial. Black começou a tentar escrever uma comédia romântica à moda de Brooks. Mostrou as primeiras páginas ao veterano e este disse-lhe que tinha partes boas, mas estava terrível, no geral. Black ficou destroçado, mas decidiu que devia continuar a fazer aquilo que sabia fazer melhor. Por isso, pôs um homicídio e um detetive gay no meio – um contraste com as personagens de Mel Gibson e Bruce Willis em “Arma Mortífera” e “A Fúria do Último Escuteiro”, respetivamente, que são abertamente homofóbicas em vários comentários – e assim nasceu este filme sobre um ladrão nova-iorquino que, a fugir da polícia, entra sem querer numa audição para um filme e é levado para Hollywood. Não foi um sucesso, mas ajudou para reabilitar tanto a carreira de Black quanto a de Robert Downey Jr., o protagonista, que viria a tornar-se dos atores dos atores mais bem pagos de sempre no papel do Homem de Ferro.

“Homem de Ferro 3”, Shane Black 2013

Em 2013, graças ao seu amigo Robert Downey Jr., Shane Black foi escolhido para substituir Jon Favreau, que tinha realizado os dois primeiros filmem, na saga “Homem de Ferro”. O resultado está em décimo na lista de filmes que mais dinheiro fizeram no mundo. A culpa não é só de Black, claro, mas do facto de “Homem de Ferro 3” fazer parte do universo Marvel e de Downey Jr. ser das maiores estrelas de cinema da atualidade. Mesmo que pertença a um universo alargado, é claramente um filme de Black, ou não se passasse na época natalícia e que funciona por ele próprio. Black diz que recebeu ameaças de morte por ter transformado um dos maiores vilões das histórias da banda desenhada do Homem de Ferro em algo totalmente diferente – tudo a ver com a vontade que tem de subverter lugares comuns. Black tem mencionado ainda, em entrevistas como esta ao site Uproxx, que a ideia original era ter uma vilã e não um vilão, mas alguém que mandava na Marvel vetou isso, por dizer que brinquedos femininos não vendiam.

Para o futuro está programada uma nova entrada da saga “Predador” (Black, que teve formação de ator e diz que isso o ajudou nos ritmos para a escrita de diálogos, apareceu no primeiro filme, de 1987) e um filme baseado na personagem Doc Savage, herói das revistas pulp e livros baratos das décadas de 1930 e 1940 que tanto influenciaram o argumentista/realizador, com Dwayne “The Rock” Johnson no papel principal.