Há pouco mais de uma semana, depois de comer uma perdiz à Convento de Alcântara que, garante, estava “de estalo”, Ricardo Branco, 36 anos, reparou no “semblante mais carregado do que o costume” de Almerindo Gonçalves, o proprietário-anfitrião-cozinheiro do Petite Folie, na António Augusto Aguiar, em Lisboa. Quando o inquiriu das razões do desânimo recebeu uma péssima notícia: com a escassez de freguesia a pôr em risco a sustentabilidade do restaurante, comunicou-lhe o senhor Gonçalves que está a considerar entregar a casa ao senhorio para não entrar numa situação de devedor que seria incompatível, assegura Ricardo, “com a sua maneira de viver proba e honrada”.

Em vez de cruzar os braços e lamentar-se, este consultor jurídico e docente de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Lisboa descruzou-os e pôs mãos à obra no sentido de salvar a que diz ser a sua “sala de jantar de família”. Compôs uma missiva apaixonada, com 7800 caracteres de rasgados elogios à casa e ao seu artífice e convidou os destinatários para um jantar a acontecer nesse mesmo Petite Folie no dia 2 de junho, pelas 20h30. O prato principal? Perdiz à Convento de Alcântara, precisamente, acompanhada por um Quinta da Fata 2011 (reserva), com direito ainda a bar aberto de canapés, sopa de peixe (acompanhada por um branco Duque de Viseu) e uma sobremesa tradicional portuguesa. Tudo isto a 34€ por cabeça.

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O restaurante tem capacidade para 45 ‘manducantes’, expressão usada por José Quitério, autor de uma crítica bastante elogiosa ao Petite Folie em 2009.
(foto: © Tiago Pais / Observador)

O apelo de Ricardo foi de tal forma entusiástico que convenceu pelo menos uma pessoa — esta que vos escreve — a querer saber mais. E não só isso: a sua descrição do Petite Folie e a confirmação, in loco, das suas palavras, fazem até refletir sobre os propósitos desta função — afinal, que favor se presta aos leitores quando se exulta sobretudo o que é novo, e não raras vezes apenas por ser novo, enquanto um sítio destes, raríssimo em Lisboa, onde o serviço é tão luxuoso como a respetiva relação preço-qualidade corre o risco de desaparecer por não ter conseguido renovar a sua geração de clientes? Mas adiante.

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Como tudo começou

Almerindo Gonçalves, 78 anos, trabalha em hotelaria desde 1951. Mil-novecentos-e-cinquenta-e-um. O ano impressiona por si só, mas para se ter real noção da experiência deste gentleman alto-minhoto de Monção nada como ilustrá-la com cinco factos que lhe remontam.

  1. Ainda presidiu à República o Marechal Óscar Carmona.
  2. Foi inventada a super-cola e o primeiro gravador de cassetes de vídeo.
  3. Um bilhete para ver a Orquestra Sinfónica Nacional, na plateia do Teatro Tivoli, custava 15 escudos.
  4. No plantel do Sporting Clube de Portugal, o campeão nacional, pontificavam nomes como Juca, José Travassos, Mário Wilson ou Jesus Correia.
  5. Inaugurou-se o Cine-Teatro Monumental, em Lisboa.

Foi no Hotel Infante de Sagres, no Porto, que começou a carreira. Tinha apenas 13 anos e, como outros da sua idade, incumbia-lhe a função, entretanto desusada, de mandarete. “Tinha um irmão que trabalhava em Matosinhos para o senhor Delfim Ferreira [o industrial que mandou construir o hotel] e que me recomendou”, recorda. Acha que foi “por causa da cara de menino” que, justiça lhe seja feita, ainda mantém, com os inevitáveis ajustes temporais. Garante o mestre Almerindo que “lá na aldeia não passava fome.” Mas os tempos eram outros e “começava-se a trabalhar mais cedo”. Por isso foi.

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Almerindo Gonçalves, um gentleman do Alto Minho formado nos melhores hotéis nacionais, continua a ser, aos 78 anos, a força motriz do Petite Folie.
(foto: © Tiago Pais/Observador)

Ficou no Infante de Sagres até ao serviço militar obrigatório, que cumpriu nos arredores de Lisboa. E já não voltaria ao icónico hotel portuense porque o final da tropa coincidiu com a abertura de um outro hotel, tão ou mais icónico, na capital: o Ritz. Estávamos em 1959. Fez parte da equipa fundadora e rapidamente chegou a maître do respetivo restaurante, o mítico Varanda do Ritz, onde serviu, por exemplo, a rainha Isabel II. A responsabilidade, claro está, era muita: num estabelecimento daquele calibre exigia-se ao chefe de sala que fosse um homem de mil ofícios, que soubesse responder a todas as dúvidas, em vários idiomas, atender a qualquer pedido e, inclusive, cozinhar à mesa, nos carrinhos de showcooking.

A prática hoteleira adquirida ser-lhe-ia especialmente útil mais tarde. Mas já lá vamos. Depois do 25 de abril, o Ritz passou por dificuldades financeiras. “Nos dias a seguir à revolução estava apenas uma família no hotel inteiro”, lembra Almerindo. Os salários em atraso fizeram-no considerar alternativas e oportunidades. E quando o empresário António Clara — que tinha andado pelo Mónaco a servir Rainier III e Grace Kelly (a quem, segundo consta, tornou adepta de pastéis de bacalhau) — abriu o restaurante Clube dos Empresários, juntou-se-lhe como braço direito.

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Um arranjo de mesa invulgar mas carismático.
(foto: © Tiago Pais / Observador)

No belíssimo 38 da Avenida da República, Prémio Valmor em 1906, Almerindo Gonçalves ficou até tomar a casa que nos traz aqui, o Petite Folie. Comprou-a em 1988, a uma senhora francesa, professora da língua, que ali se tinha dedicado aos tachos. Manteve o nome e alguns clássicos da cozinha gaulesa mas fez obras profundas no espaço. “Gastei aqui 30 mil contos, mas ao fim de três anos estava tudo pago”, conta com orgulho.

O Petite Folie

Escrever que já não se fazem restaurantes assim não será, de todo, exagero. A casa tem um aspeto clássico, na melhor aceção da palavra. a começar logo no bar, à entrada, onde pontificam as madeiras de várias tonalidades. Já na sala principal, os sofás vermelhos acoplados à parede fazem lembrar, por exemplo, o Café do Paço ou o de São Bento. As cadeiras que os defrontam remontam às de outra instituição lisboeta recentemente transplantada, o Pap’Açorda. Nas paredes há obras assinadas pelo pintor Lino António — filho –, que foi, também ele, o responsável pela decoração do restaurante. Ao fundo, fica um castiço jardim de Inverno nascido da cobertura do antigo pátio que pode ser utilizado para refeições de grupo. Tudo está impecavelmente mantido, o que não acontece com frequência em restaurantes desta natureza. Com patine, sim, mas sem pingo de decadência.

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Dois dos quadros de Lino António (filho), que foi, também, o responsável pela decoração do restaurante. (foto: © Tiago Pais / Observador)

A carta foi-se progressivamente afastando da matriz gaulesa da origem, com devidas exceções, casos dos escargots à francesa, do chateaubriand com molho béarnaise ou dos crepes, que ainda vai fazendo. Como bom minhoto que é, Almerindo foi recheando a ementa de clássicos nacionais, da sua região, principalmente. O bacalhau à Narcisa (chama-lhe “à moda de Monção”) é um deles, de fritura irrepreensível e lasca fácil. A época da lampreia não se passa sem que esta ali seja servida em arroz ou à bordalesa aos fiéis da receita. O fornecedor é, aliás, o mesmo do Solar dos Presuntos. Só difere, e muito, a quantidade de bichos que vão para um restaurante e para outro.

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Uma pequena amostra do Bacalhau à Moda de Monção da casa.
(foto: © Tiago Pais / Observador)

Nos pratos de caça, além da supracitada Perdiz à Convento de Alcântara, considerada a única receita de alta cozinha de origem nacional, cabe também na ementa uma empada de lebre com castanhas que envolve truque (leia-se especiaria) no recheio, de modo a tornar a carne especialmente aromática. Os preços são bem abaixo de outras casas de menos qualidade e mais fama: andam na ordem dos 20/25€ por pessoa.

O serviço de vinhos está a cargo de Artur, o sommelier e fiel escudeiro do mestre. Quando chegou ao Petite Folie, há mais de 20 anos, o atendimento aos clientes era assegurado por quatro pessoas na sala e outras quatro na cozinha. Hoje, resta ele e o patrão, que se desdobra em funções com uma energia assinalável para a idade. Os standards, esses, mantêm-se ao nível de um hotel de cinco estrelas: o serviço é farto em delicadeza — com uso frequente de expressões como “com a sua licença” — e atenção, contribuindo, para tal, a infeliz diminuição do fluxo de clientes.

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O jardim de inverno, uma espécie em vias de extinção na restauração lisboeta.
(foto: © Tiago Pais / Observador)

Escrito isto, impõe-se perguntar: mas com todas estas qualidades, porque faltam então os clientes? Em primeiro lugar, porque os que vieram dos tempos do Ritz e do Clube dos Empresários estão — como impõe a lei da vida — a desaparecer a pouco e pouco e as gerações sucedâneas estão mais interessadas em descobrir conceitos contemporâneos. As tais novidades que, mea culpa, marcam a agenda do jornalismo gastronómico. Depois, porque a Avenida António Augusto Aguiar, que outrora albergava um notável conjunto de serviços, está, também ela, a ficar despida de escritórios. E, finalmente, porque nisto da restauração, como noutros negócios ou atividades, nem sempre são os melhores que resistem. Às vezes é preciso uma pontinha de sorte. Ou um cliente especial.

Nome: Petite Folie
Morada: Avenida António Augusto Aguiar, 74B, C/V (São Sebastião da Pedreira), Lisboa
Telefone: 21 314 1948 / 93 939 6048
Horário: Das 12h30 às 15h30 e das 19h30 às 23h. Fecha sábado todo o dia e domingo ao jantar.
Preço Médio: 25€
Reservas: Aceitam