O número de homicídios de menores continua a crescer no Brasil, com uma criança a ser assassinada por hora, uma realidade que tem cor, endereço e classe social e onde, muitas vezes, a polícia dá o exemplo.

“O número de homicídios de brasileiros de até 19 anos de idade duplicou. De 1990 a 2013, passou de cinco mil para 10,5 mil casos ao ano. Isso significa que, a cada dia, 28 crianças e adolescentes são assassinados”, lê-se num relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) de julho do ano passado.

O Brasil passou a ocupar o segundo lugar na lista dos países com mais assassínios de menores de 19 anos, ficando apenas atrás da Nigéria.

Segundo a organização, as vítimas “são, na sua maioria, meninos negros, pobres, que vivem nas periferias e áreas metropolitanas das grandes cidades”.

Nelcilene Santos Gama, de 34 anos, constatou esta realidade da pior forma, ao perder o filho de 12 anos, a 7 de setembro, numa zona pobre da periferia de Brasília.

“Eu sempre falei para o meu filho confiar na polícia, que a polícia era boa e que bandido era ruim, e a polícia vitimou o meu filho. Agora, é como ficar sem em quem me espelhar. Agora eu tenho de dizer que a polícia é ruim”, contou à agência Lusa.

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Nelcilene acusou uma polícia de sexo feminino de ter atirado sobre o seu filho quando um grupo de guardas perseguia um gangue, e adiantou ter “testemunhas e provas” de que a força policial, inclusive, “retirou a cápsula do local e acusou um menor”, que entretanto foi detido.

“[A polícia] falou que era acerto de contas, porque o meu filho é de um bairro pobre e eu sou negra”, referiu, acrescentando que, mais tarde, “eles mudaram a versão”, dizendo que Hítalo Gabriel não fazia parte de nenhum dos gangues, mas foi apanhado por “bala perdida” na troca de tiros entre os grupos, o que “também não é verdade”.

Segundo Nelcilene, a mudança de versão aconteceu após alguns agentes que conheciam o seu filho, que “participava num grupo que dá aulas de futebol justamente na Polícia Militar”, terem dito que “era um menino muito bom”.

“A polícia bate, atira primeiro e depois pergunta”, acusou, considerando que o exemplo de violência policial contribui para mais homicídios na sociedade.

A brasileira disse que está preparada para uma “batalha de anos” e de ver o crime prescrever, visto que “a justiça no Brasil é lenta”, sobretudo quando se trata de guardas, embora o adolescente, na altura com 16 anos, que continua detido pelo assassínio do seu filho, tenha sido “julgado em três dias”.

“Confio que a justiça é única e válida para todos, independente de raça, cor ou religião. Confio no Ministério Público e ainda confio na polícia. Embora tenha acontecido isso com o meu filho, eu não tenho raiva dos serviços da polícia e não sou contra o trabalho da polícia. Eu sou contra o trabalho de maus polícias”, vincou.

Segundo um relatório da Amnistia Internacional de 2015, “frequentemente, o discurso oficial culpa as vítimas, já estigmatizadas por uma cultura de racismo, discriminação e criminalização da pobreza”.

“Parte significativa da sociedade brasileira legitima estas mortes. O sistema de Justiça Criminal perpetua essa situação, uma vez que raramente investiga abusos policiais”, frisou a organização, segundo a qual “a polícia tem justificado, recorrentemente”, o uso da força letal falando em suspeitas de envolvimento em grupos criminosos.

A Polícia Federal remeteu uma reação para o Ministério da Justiça e Cidadania, que, sem falar no caso de Hítalo Gabriel, respondeu que realiza “diagnósticos a respeito das causas dos homicídios no Brasil” e articula ações para reduzir este tipo de crime, focando-se nas regiões “em que as taxas cresceram significativamente nos últimos 15 anos”.

O Governo está também a investir no “fortalecimento das delegacias especializadas em investigação do crime de homicídio e dos institutos de perícia criminal”, lê-se na nota.

A tutela informou ainda que eliminou termos como “auto de resistência” nos procedimentos da polícia para estes casos e que está a trabalhar para diminuir os tempos dos processos judiciais de homicídios e garantir “a independência” das entidades que “corrigem as más ações policiais”.