Foi aprovado no Parlamento mas ainda tem de passar em Belém. O projeto de lei sobre a maternidade de substituição vai agora para as mãos do Presidente da República, que terá de o promulgar — ou não. Mas há questões “técnicas”, mais do que “éticas”, que estão a ser levantadas e que levam a crer que este poderá ser o primeiro veto político de Marcelo Rebelo de Sousa. Se não vetar, o Parlamento pode não se livrar de um pedido de clarificação por parte do Chefe de Estado. Deputados da esquerda estão cientes das dúvidas, mas empurram questões para a regulamentação posterior. O BE diz-se pronto a reconfirmar o diploma e o PS a reavaliar.

Quais são afinal as dúvidas do Presidente? A avaliar pelo conteúdo do diploma que foi aprovado no passado dia 13 de maio na Assembleia da República, em causa estão questões “técnicas” que a lei, tal como está, não responde e que podem dar origem a desentendimentos na altura da aplicação: o que acontece se a gestante de substituição decidir, no final da gravidez, não entregar o bebé aos pais? O que acontece se a mulher que está a “emprestar” a barriga quiser abortar? O que acontece se uma das duas parte mudar de ideias? E se for detetada alguma deficiência no feto, quem se responsabiliza? Há quem veja aqui muitos “vazios legais” e, apurou o Observador, é isso que poderá impedir o Presidente da República de assinar o diploma de cruz.

É a própria deputada socialista Maria Antónia Almeida Santos, vice-presidente da comissão parlamentar de saúde, que admite ao Observador que na redação do texto da lei “foram deixadas questões de fora” que serão depois respondidas na fase da “regulamentação”. O objetivo foi tornar possível a aprovação da lei, que, com os votos contra garantidos do PCP e do CDS, e com a liberdade de voto dada aos deputados socialistas e aos sociais-democratas, precisava de ser redigida com cuidados redobrados para poder contar com o maior número de votos possível.

No articulado do diploma da autoria do BE, que acabou por merecer os votos do PS (menos dois deputados), do PEV, PAN e de 24 deputados do PSD, lê-se que a “celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição só é possível a título excecional e com natureza gratuita, nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem”. Além disto, estipula também que “a gestação de substituição só pode ser autorizada através de uma técnica de procriação medicamente assistida com recurso aos gâmetas de, pelo menos, um dos respetivos beneficiários e em caso algum a gestante de substituição poderá ser a dadora de qualquer ovócito usado no concreto procedimento em que é participante”.

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O diploma não especifica o que fazer nos casos de interrupção da gravidez, deficiência detetada no feto ou mudança de ideias da gestante. No projeto de lei que inicialmente saiu da comissão para ser votado no plenário lia-se que a gestante de substituição tinha um período de “48 horas após o parto” para se declarar como mãe da criança nascida, mas a alínea acabou por ser retirada pelo Bloco de Esquerda pouco antes da votação para poder merecer o voto favorável de um maior número de deputados do PSD.

Ao Observador, o deputado bloquista Moisés Ferreira, um dos responsáveis pelo projeto, admite a legitimidade das dúvidas, sublinhando mesmo que “todas elas já foram pensadas e discutidas no grupo de trabalho da PMA [Procriação Medicamente Assistida]”, onde foram feitas audições a várias entidades do setor. “Não são dúvidas novas”, diz, quando questionado sobre os problemas que podem estar a ser levantados em Belém. “Mas o que ficou acordado entre os deputados foi que essas questões seriam tratadas em sede de regulamentação”. Isto porque, afirma, cada caso de gestação de substituição tem a sua especificidade, pelo que só na fase de contratualização se pode dar resposta a todas as questões. O projeto de lei dá ao Governo um prazo máximo de 120 dias para aprovar a respetiva regulamentação, depois de promulgada a lei.

O objetivo, segundo o deputado bloquista, é que a lei dê os “instrumentos” para as respostas serem alcançadas, mas só na “relação contratual”, que é feita caso a caso, se deve regulamentar todas as questões associadas à maternidade de substituição. Caso o Presidente da República venha a vetar a lei, ou a pedir esclarecimentos aos deputados, Moisés Ferreira afirma ao Observador que o BE está pronto para “reconfirmar” a votação.

Do lado do PS, contudo, espera-se que, em vez do veto, o Presidente da República opte por “enviar uma mensagem à Assembleia da República com as dúvidas”. Se assim for, a deputada socialista Maria Antónia Almeida Santos admite a disponibilidade do PS para voltar a olhar para o diploma e proceder a alterações pontuais, se for caso disso.

Também a deputada do PSD Ângela Guerra, que tem estado a trabalhar o tema desde a legislatura passada e que foi uma dos 24 parlamentares laranja que votaram a favor, diz que caso o Presidente vete o diploma a bancada parlamentar terá de “debater a questão novamente”, ficando a sensação de que se volta à estaca zero. Se assim for, a deputada afirma ao Observador que o texto da lei tem “muito para ser melhorado”, nomeadamente no que diz respeito às molduras penais para a gestante que não cumpra o acordado. No diploma aprovado estão apenas previstas penas de multa e não penas de prisão.

Uma questão política

Certo é que um veto do Presidente da República a um diploma aprovado no Parlamento é sobretudo uma mensagem política. E calha bem a Marcelo Rebelo de Sousa demarcar-se da esquerda e fazer um gesto ao eleitorado do centro-direita, católico, que o elegeu. É pelo menos essa a esperança daqueles que, à direita, têm a expectativa de ver o Presidente a vetar o diploma. “Espero que, por ser de centro-direita, Marcelo Rebelo de Sousa alerte para as imperfeições jurídicas e apele a um maior debate público”, disse na semana passada ao Expresso António Pinheiro Torres, vice-presidente da Federação Portuguesa pela Vida.

Marcelo Rebelo de Sousa não se tem pronunciado sobre o tema, por ainda não ter o diploma nas mãos. A única vez que foi sujeito a esta questão sobre a maternidade de substituição foi em janeiro, durante a campanha eleitoral. “[Legalizar a gestação de substituição] tem à partida riscos, como o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida tem apontado, e eu, em princípio, sou crítico”, disse num debate televisivo com Sampaio na Nóvoa. Mas recusou responder se promulgaria ou não essa lei, defendendo que é uma “matéria que tem de ser legislada com extremo cuidado”.

No parecer que foi enviado para o Parlamento, durante o processo legislativo, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sugeria, por exemplo, que a gestante de substituição pudesse em qualquer momento até ao início do parto revogar o consentimento dado e ficar com o bebé, ou que as partes envolvidas não pudessem pôr restrições de comportamentos à gestante.

Aprovado no Parlamento no dia 13 de maio, o diploma que legaliza a gestação de substituição foi fixado esta quarta-feira em redação final, na comissão parlamentar de saúde. Depois de publicado em Diário da Assembleia da República é ainda preciso um prazo de três dias úteis para eventual correção de “inexatidões”, sendo que só depois disso segue para Belém.