As sociedades Espírito Santo (ES) Enterprises e a Espírito Management Services não serviram apenas para pagar alegadas remunerações extra a Zeinal Bava, ex-presidente executivo da PT. Ou alegadas contrapartidas ilícitas por ‘debaixo da mesa’, como o Ministério Público suspeita. Os seus fins eram tão multifacetados que terão igualmente servido para financiar alegados investimentos particulares de Ricardo Salgado, o ex-líder executivo do Banco Espírito Santo. Ou para responsáveis do Grupo Espírito Santo (GES) reembolsarem alegados empréstimos pessoais feitos pelo próprio Salgado.

Direta ou indiretamente, Ricardo Salgado terá recebido, no mínimo, um total de cerca de 7 milhões de euros das empresas que configuram o chamado ‘saco azul’ do GES, segundo apurou o Observador junto de fontes judiciais e da família Espírito Santo.

Um dos investimentos particulares de Salgado foi a compra de mais de 2 milhões de ações da EDP durante a última fase de privatização da EDP em 2011. Os cerca de 4 milhões de euros que Ricardo Salgado gastou na operação terão saído da conta que a ES Enterprises tinha no banco suíço do Banque Privée Espírito Santo.

Um pormenor relevante: quando Salgado realizou a aquisição de ações da EDP, o Banco Espírito Santo Investimento, do qual era o presidente do Conselho de Administração, estava a assessorar o concorrente China Three Gorges, que veio a ganhar o concurso público promovido pelo governo de Passos Coelho. Esse era um pormenor que já tinha sido noticiado pelo jornal i a 4 julho de 2014 mas o que não se sabia era que o dinheiro tinha origem na ES Enterprises — uma sociedade offshore com sede nas Ilhas Virgens Britânicas que era o ‘saco azul’ do Grupo Espírito Santo (GES).

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O circuito financeiro destes 4 milhões de euros é todo ele opaco, com recurso sistemático por parte de Ricardo Salgado a sociedades sedeadas em paraísos fiscais como o Panamá ou as Ilhas Virgens Britânicas, e foi descoberto durante as investigações à empresa Akoya — sociedade suíça que está no centro do caso Monte Branco. O dinheiro terá partido da Suíça e terminado em Singapura — onde Ricardo Salgado terá dado ordens de compra das ações da EDP.

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Infografia de Milton Cappelletti

O Observador enviou diversas perguntas para a assessoria de imprensa de Ricardo Salgado esta quarta-feira mas não recebeu qualquer resposta até ao momento.

O segundo encontro Rosário/Salgado

Precisamente 20 dias depois (a 24 de julho de 2014) de o jornal i noticiar a compra de ações da EDP por parte de Ricardo Salgado, o banqueiro foi confrontado pelo juiz Carlos Alexandre e pelo procurador Rosário Teixeira com estas transferências.

Era a segunda vez que Rosário e Salgado se encontravam depois de um primeiro encontro amigável em dezembro de 2012 no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) por iniciativa do banqueiro. O então todo-poderoso líder do BES (apelidado pela imprensa de Dono Disto Tudo) tinha pedido para ser ouvido depois de ter tido conhecimento prévio de que tinham quebrado o sigilo bancário na Suíça das contas das diversas sociedades offshore por si detidas. Salgado entrou nas instalações do DCIAP como testemunha e saiu com um atestado de inocência assinado pelo magistrado do Ministério Público responsável pelas investigações do caso Monte Branco e da Operação Marquês.

Mas desta vez o encontro não era amigável. Bem pelo contrário. Rosário Teixeira tinha requerido a sua detenção para interrogatório como arguido por suspeitas dos crimes de fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais e o juiz Carlos Alexandre assinou o respetivo mandado.

Um ano e meio depois de ter conhecido Salgado, muita coisa tinha mudado. O banqueiro já não era líder do BES, as sociedades do GES estavam em situação de falência e o céu parecia abater-se sobre a cabeça de Ricardo Salgado. E Rosário Teixeira já tinha identificado as duas sociedades que serviam de ‘saco azul’ do GES: a ES Enterprises e a Enterprises Management Services (EMS).

Foi precisamente esta última que transferiu 4 milhões de euros em outubro de 2011 para uma conta bancária aberta no Crédit Suisse em nome de uma sociedade chamada Savoices, sedeada no paraíso fiscal do Panamá e detida por Ricardo Salgado. Rosário Teixeira quis saber qual era a relação entre essas duas sociedades. Salgado terá respondido — com a mesma voz pausada que usou na comissão parlamentar de inquérito onde foi ouvido — que a ES Enterprises e a EMS eram a mesma empresa. Isto é, a sociedade começou por chamar-se ES Enterprises, tendo mudado de nome para EMS.

Os 4 milhões de euros, no entender de Salgado, também tinham uma explicação simples: tratava-se de um empréstimo. O banqueiro não negou que tenha feito a compra de ações da EDP, mas terá recusado que a operação tenha sido financiada com os fundos da EMS.

O ex-CEO do BES afirmou que tal empréstimo serviria para financiar a sua eventual participação num aumento de capital social do BES em 2012. Caso não fosse necessário, seria reembolsado — o que, em julho de 2014, já teria acontecido com metade do valor total (cerca de 2 milhões de euros).

Um ano depois, em julho de 2015, interrogado novamente mas no âmbito do caso BES, Ricardo Salgado continuava a dizer que ainda não tinha pago o empréstimo mas que tencionava fazê-lo em outubro desse ano. O ex-presidente do BES não quis esclarecer o Observador sobre se já o fez.

Mas o Ministério Público (MP) não se deixou convencer com a explicação. Ao que o Observador apurou, o MP entende que as datas de transferência dos fundos do ‘saco azul’ do GES e a compra das ações eram muito próximas. É certo que Salgado tinha outros fundos (de valor ainda não determinado) na conta da Savoices mas o dinheiro entrado na Suíça em outubro de 2011 saiu em dezembro de 2011 para Singapura para que fosse utilizado na compra de ações da EDP — nunca tendo sido utilizado no aumento de capital social do BES, que ocorreu em 2012.

Ricardo Salgado bem tentou convencer o procurador de que tinha comprado outras ações e que tinha mais dinheiro na conta da Savoices, mas Rosário insistiu: o que interessava era que, em termos de disponibilidade financeira, eram os mesmos 4 milhões de euros. E recordou-lhe o circuito financeiro opaco por si utilizado para comprar as ações da EDP.

O empréstimo a Hélder Bataglia e o pedido de Salgado

Uma das principais matérias em investigação no caso Monte Branco é a venda da empresa Escom, pertencente ao GES, a investidores angolanos. Um dos grandes mistérios do negócio prende-se com o sinal no valor de 52,2 milhões de euros que terá sido pago pela Sonangol à Espírito Santo Resources (que detinha formalmente a Escom) mas que nunca terá chegado a entrar nos cofres da sociedade do GES.

Em julho de 2014 ainda não era essa a questão que estava em cima da mesa mas sim uma transferência de cerca de 15 milhões de euros da ES Enterprises para a Green Emerald, sociedade offshore detida por Hélder Bataglia – o fundador e líder da Escom.

Bataglia recebeu esse valor em duas tranches de 7,5 milhões de euros que terão sido transferidas pela ES Enterprises em novembro de 2010.

Após receber cada uma das tranches, o líder da Escom seguiu o mesmo procedimento: transferiu uma parte para a conta bancária da offshore Savoices de Ricardo Salgado dias depois de receber da ES Enterprises.

Da primeira vez, Ricardo Salgado recebeu cerca de 1,5 milhões de euros; após a segunda tranche recebeu mais de 1 milhão e 250 mil euros. Total: 2 milhões e 750 mil euros.

Bataglia distribuiu ainda parte dos 15 milhões de euros por Álvaro Sobrinho, ex-presidente do Banco Espírito Santo Angola, e por Pedro Ferreira Neto, administrador da Escom.

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Infografia de Milton Cappelletti

Rosário Teixeira tinha duas perguntas simples para fazer a Ricardo Salgado sobre este circuito financeiro:

  1. Porque é que a ES Enterprises paga 15 milhões de euros a Hélder Bataglia em novembro de 2010?
  2. E, mais importante que tudo, porque é que a sociedade de Hélder Bataglia, depois de receber os 15 milhões de euros, transfere para a conta da Savoices (detida por Ricardo Salgado) um valor de 2 milhões e 750 mil euros?

Ricardo Salgado não soube responder à primeira pergunta e pediu tempo para investigar na contabilidade da sociedade offshore das Ilhas Virgens Britânicas — cujos movimentos eram controlados por um suíço chamado Jean-Luc Schneider, que reportava diretamente a Salgado.

Quanto à segunda pergunta, a resposta foi a mesma de sempre: um empréstimo. No caso, um empréstimo pessoal de Ricardo Salgado a Hélder Bataglia que o ex-presidente executivo do BES não soube localizar no tempo nem as respetivas condições. Apenas garantia que Bataglia tinha um recibo de quitação do mesmo em seu poder.

Rosário Teixeira não ficou convencido a tese de Salgado. O procurador confia mais nos papéis do que nas pessoas — é esse o seu lema.

Com mais de 30 anos de experiência e líder das principais investigações do crime económico dos últimos 20 anos, Rosário Teixeira tinha outra teoria: os 15 milhões de euros eram uma antecipação do valor da venda da Escom para convencer Hélder Bataglia a assinar os papéis da venda da alienação.

Salgado considerava essa tese como “apressada” e, talvez pensando que ainda estava no auge do seu poder e da sua influência, fez um “pedido” ao procurador: que não dissesse que se tratava de uma comissão que tivesse recebido de Hélder Bataglia.

A colaboração de Bataglia com a Enterprises

A investigação criminal é dinâmica e certo é que em fevereiro de 2015, portanto cerca de sete meses depois do interrogatório de Ricardo Salgado, o jornal i revelou um contrato de 2005 assinado entre Hélder Bataglia e a ES Enterprises que tinha sido entregue pelo próprio Bataglia na Comissão de Inquérito Parlamentar ao caso BES — a que o procurador Rosário Teixeira pediu acesso.

O contrato revelava que o líder da Escom tinha direito a receber 7,5 milhões de euros da ES Enterprises 30 dias após a assinatura e por conta de comissões relacionadas com a aquisição de direitos de exploração de petróleo na região do Soyo, em Angola, e de direitos de exploração de qualquer minério no Congo Brazzaville. Além disto, Bataglia procurava oportunidades no setor bancário deste último país — onde José Veiga veio a fazer uma fortuna que está também sob investigação do DCIAP. O valor recebido pelo líder da Escom poderia aumentar consoante o sucesso de novas oportunidades de negócio por si obtidas.

Ora, o valor de 15 milhões de euros transferido pela ES Enterprises em 2010 está precisamente dividido em duas tranches iguais de 7,5 milhões de euros — tal como o MP confrontou Ricardo Salgado em julho de 2015.

Igualmente certo é que estas transferências de 15 de milhões de euros da ES Enterprises para Hélder Bataglia não têm nada a ver com os cerca de 12,5 milhões de euros que Bataglia transferiu para as contas de Joaquim Barroca e de Carlos Santos Silva na Suíça — e que o procurador Rosário Teixeira relaciona com um alegado favorecimento do governo de José Sócrates à empresa proprietária do empreendimento de Vale do Lobo, a qual é parcialmente detida por Hélder Bataglia. Recorde-se que o líder da Escom afirmou ao Expresso que estes valores têm origem nas empresas do ‘saco azul’ do GES.

E não têm nada a ver porque as transferências de dinheiro do caso Monte Branco, acima descritas, são de 2010, enquanto aquelas que estão sob investigação judicial da Operação Marquês (abaixo descritas) são de 2008 e de 2009. Uma informação para situar o leitor: as sociedades offshore Markwell Finance e Monkway International pertencem a Hélder Bataglia.

Infografia de Andreia Reisinho Costa

Infografia de Andreia Reisinho Costa

Corrigido nome de sociedade offshore de Hélder Bataglia designada por Green Emerald.