Título: “Não se pode morar nos olhos de um gato”
Autora: Ana Margarida de Carvalho
Editora: Teorema
Páginas: 350

Ana Margarida de Carvalho livro

Há um texto de António Sérgio em que ele, com maus modos mas bom olho, faz guerra ao poeta Junqueiro. Sérgio é cruel, junca insultos como “pitonisa histérica” a respeito do poeta, mas o cerne do texto é mais benevolente do que aquilo que a linguagem faz crer. Guerra Junqueiro, explica o seu crítico, é um rector de génio, sim, mas capaz de sacrificar o sentido do que diz à forma como o diz. “Media a presa o búfalo selvagem” é uma frase tão mais musical quanto mais louca, dado que o búfalo – animal herbívoro – não costuma atacar presas.

Ana Margarida de Carvalho não escreve sobre presas de búfalos mas sobre olhos de gatos; em tudo o resto, a crítica de António Sérgio poderia manter-se. Ana Margarida de Carvalho já conseguiu um estilo interessante, forte, completo, vigoroso; mas de tão forte, enorme e vigoroso, são várias vezes em que o sentido se encolhe amedrontado e lhe presta vassalagem. Há formulações incompreensíveis – o que é a “garra alçada de uma eterna nubente” (p.40) ou ficar “a revolver-se como um útero de tecido barato” (p.61)?

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Da mesma forma, também não sabíamos que os urubus e as formigas tinham vocação de Omo, para lavarem mais branco e à sua acção se compararem peles caucasianas, “brancas como ossos de urubus descarnados pelas formigas” (p.152). São os ossos de urubus especialmente brancos? Então porque não ossos de urubus descarnados, seja por formigas ou por dentes humanos rapaces? A propriedade branqueadora é característica que dentistas e lavadeiras de dinheiro deviam invejar às formigas? Então porque não ossos descarnados pelas formigas, sejam de urubus ou de galinhas? É a brancura exclusiva da mistura química entre a ganância das formigas e os tutanos de urubus? Então porque não brancas como ossos, simplesmente?

Ana Margarida de Carvalho tem uma imaginação forte para as metáforas, cadência de escritora, vocabulário decente, mas demasiado estilo. E se em nome da retórica se podem perdoar uns tropeções no catecismo (como em “despejar hóstias em bocas ávidas de absolvição”, quando a hóstia não serve para absolver, mas para quem já está absolvido); se até se perdoam umas confusões anatómicas que põem personagens a descaroçar lebres quando estas, caroço, só os supersticiosos é que acreditam que trazem; e se mesmo umas construções gramaticais bambas são perdoáveis (“a reter com um lenço pingos gordos de suor como escaramujos” significa que a retenção é feita à escaramujo, ou que a gordura é de um escaramujo? E “o escasso cabelo deixava antever” ou entrever a careca? Não é preciso ser grande pitonisa para adivinhar a careca a quem tem escasso cabelo…); se tudo isto é perdoável e redimido por um talento real e pouco comum, já é pena que a mestria linguística acabe por atabafar a história.

Osso, nervo e carne

A tempestade que motiva o enredo não é o que mais afoga as personagens. Elas submergem, incapazes de vir à tona debaixo do caudal linguístico que as devasta. O método agradará com certeza aos formalistas (não aos aprumados do protocolo, mas àqueles que, nas categorias de Aristóteles, precedem a forma à matéria) porque, passe alguns deslizes já referidos e outros por referir (“sulcos sequiosos das tábuas” no meio de uma tempestade, por exemplo? Como se matará então a sede às pobres tábuas?), a autora tem queda para o romance.

Tem voz própria mas também sabe usar as dos outros, em contrapontos e acordes engraçados, que incluem expropriação assumida de Gil Vicente, arremedos de Lobo Antunes e umas colheradas de sarcasmo à Saramago; tem nervo, tem osso e não falta carne, sobretudo carne viva, tal a profusão de pancadaria e ferimentos que sarrabulha os protagonistas.

Há osso, nervo e carne, isso há, mas pouca história. A ideia fundadora é interessante: contar o quotidiano de uma comunidade de náufragos muito heterogénea, que por várias razões se encontrava a bordo de um navio negreiro. Um capataz de chicote leve na mão mas pesado nas costas, uma senhoreca e sua filha, um criado, um escravo, um cura e um estudante, todos com dramas que talvez o mar levasse. A tese central apropinqua o enredo de alguns contos iluministas: passa por mostrar como, fora dos seus ambientes, muitos dos dilemas que degredaram os náufragos são pouco importantes. Um homem que afinal é mulher não escandaliza ninguém com o espectáculo transformista, a rapariga dá à luz um bebé (embora a autora escreva uma bebé, bebé não tem feminino) sem que uma aliança no dedo autorize as relações esponsais e a preocupação da comunidade está em ajudar, não em condenar. Após o naufrágio, reduzidos ao essencial, os sobreviventes veriam o que interessava verdadeiramente.

Ora, acontece que estes dramas carecem, no livro, de verdadeira importância psicológica, porque a autora não acredita neles. A autora não julga verdadeiramente importante que o casamento tenha ou não abençoado a concepção do bebé, daí que nenhuma personagem que o julgasse se fundamente em razões reais. Se um padre se consagra por amor ao conforto e não por amor à doutrina, é normal que não se choque com o incumprimento do catecismo: afinal, ele não acredita verdadeiramente no catecismo.

Os problemas das personagens são, para a autora, fruto de preconceitos, não de opiniões, pelo que o dilema nos dramas nunca é verdadeiramente justo: pende já para um dos lados. Falta grandeza psicológica aos dramas por faltar crédito ao contraditório; nesse sentido, Ana Margarida de Carvalho toma as suas personagens por tolas. Seria interessante se, por exemplo, a rapariga revelasse à outra parte interessada – a mãe – que o avô da criança que nasce na praia é também o pai dela. Esse sim, seria um verdadeiro drama, porque haveria duas partes interessadas. O drama de uma criança que nasce fora do casamento também poderia ser real, se alguma das personagens acreditasse verdadeiramente na sua religião ou no seu código civil; mas como no mínimo são hipócritas e no máximo desinteressados, é natural que os não choque o descasque do verniz ideológico quando já toda a civilização está em escombros.

Há lodo neste cais

Como os problemas psicológicos são quase artificiais, a autora compensa-os com sofrimento físico. Há verdadeiro lodo no cais em que estes náufragos aportam. E se Ana Margarida de Carvalho não tem medo da dureza e se orienta bem nela, se o à-vontade com que entra no sofrimento é um dos pontos fortes do livro, se consegue dar uma dimensão quase física às suas descrições da dor, também é verdade que o exagero lhe tira autenticidade. O livro fuça em toda a lama e todo o excremento, banha-se em todo o tipo de fluidos, seja ranho, seja vómito ou langonha, chafurda em toda a nojice e todo o lixo humano. Não negamos que lhe dá vigor, mas também lhe tira crédito.

Vejamos: Nunzio, o estudante, só urina as calças todas e assiste ao aborto de uma escrava; mas a mãe dele põe “manteiga de cacau na vagina” e ingere “esterco de cabra seco” para dissipar a líbido do marido. Ora, dado que “não eram estes pequenos truques que desencorajavam o marido”, porque insiste ela neles?

Já o padre, nasce pela imolação do seu salvador, não um cordeiro mas um cão, de pele rasgada, “ossos triturados” e “esquartejado” pelos lobos. Também os seus conterrâneos perfuram, aferroam, espancam e abrem brechas no corpo de uma loba, só comparáveis à facada que ele, eminente presbítero, dá nas costas do amor paterno. Os pais de Teresa, a senhora com pretensões aristocratas, fazem os escravos vomitar, arrancam “fetos aos pedaços”, remexem na varíola, escorbuto, tifo, úlceras e ensinam a filha a detectar quem “enfiava por si acima a agulha dos ratos e do crochet para provocar um aborto”, a afogar escravos e a diluir uma “porção de sangue menstrual no café” do marido para o manter fiel.

Pior do que aquilo que infligem, só aquilo que as personagens sofrem: Maria Clara, o criado que afinal é criada, tem de tudo; desde inspecções intra-uterinas da parte de freiras, até afluentes de dor que vêm “misturado com um líquido branco e viscoso”, “cuspo misturado com vómito”, até introduzir “um tubérculo no útero para impedir a fecundação”, que infecta e lhe põe a “escorrer-lhe entre as pernas aquele líquido fétido”.

Com o escravo também há litradas de sangue, e nas personagens secundárias há “hálito a urina velha” e “ar de cio de gata velha” (não queremos saber como se adquire o primeiro nem a que corresponde o segundo), entre uns mais suaves “olhar de feto” ou “caldo do útero”. São expressões que impressionam, mas ao mesmo tempo demasiado fáceis – como usar música lamechas para provocar compaixão – para o estilo de Ana Margarida de Carvalho: não precisa, já tem uma escrita suficientemente forte para poder eximir as suas personagens de navegar sempre por líquidos pegajosos e violência gratuita.

Podem, assim, perder força não apenas estes momentos isolados, como os gestos mais significativos. A última cena, por exemplo, tem tudo aquilo que este livro podia ser. É crudelíssima, é duríssimo o golpe do “sobrevivente” naquele que atrasa o grupo, dura a traição, mas mais dura ainda a resistência. De facto, a impiedade do Homem prático abre-nos os olhos para a inutilidade da luta do ferido. De que vale o esforço para chegar ao outro lado, quando lá se vai somente continuar a viver? Nunzio, que ao mesmo tempo talvez não justificasse o protagonismo de uma última cena num romance em que não há propriamente personagem principal, personifica o sinistro destino do grupo, apostado em alcançar algo que não lhes trará nada de diferente.

Ana Margarida de Carvalho mostra, sobretudo aqui, que já tem poder para fazer com a escrita tudo o que quiser. O que quer fazer é que ainda não está ao nível daquilo que já pode.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.