Chrisi Karvonides estava há apenas um dia em Lisboa quando a fomos encontrar sentada no ateliê de costura do Teatro São Carlos. Com os óculos na ponta do nariz, a figurinista dava os últimos pontos num longo pano negro, parte de um dos figurinos de Iphigénie en Tauride, de Christoph Willibald Gluck, a ópera para onde foi “arrastada” por James Darrah, diretor musical.

Levantou-se com uma rapidez inesperada, habituada a correr de um lado para o outro, contra o próprio tempo. Sempre com um sorriso nos lábios, contente por “estar aqui”. Pegou num dossier cheio de fotografias — dos coralistas, solistas e da própria Iphigénie, com a sua longa capa vermelha a arrastar pelo chão — e guiou-nos um labirinto de corredores estreitos até ao sótão do São Carlos onde, por entre mesas antigas e manequins desfeitos, se acabavam de pintar os figurinos.

“Tem de estar tudo pronto amanhã às três”, disse ansiosa. “Para o ensaio?” “Sim, para o ensaio”.

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Os figurinos foram feitos de raiz em Los Angeles, nos Estados Unidos da América (MICHAEL M. MATIAS /OBSERVADOR)

Quando é que começaram a trabalhar nos figurinos?
O James [Darrah] falou comigo em junho.

Há quase um ano.
Sim, sim. E estou a fazer uma outra ópera para o James, chamada Breaking the Waves. Vai ser para a Ópera de Filadélfia e depois vai para Nova Iorque, para um festival. Estávamos a trabalhar nisso quando ele me disse: “Sabes, tenho uma ópera em Portugal. Queres fazê-la?” Na altura, também me tinha comprometido com uma série. (Desenho para cinema e para televisão, e às vezes para teatro. Mas principalmente para televisão).

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Estou a trabalhar nisso agora, ao mesmo tempo que estamos a trabalhar neste projeto. É a segunda temporada, e o ator principal é o Patrick Stewart, do Star Trek. Por isso, não tem sido a coisa mais fácil de sempre. Tenho viajado para trás e para a frente.

Os figurinos foram todos feitos em Los Angeles e depois enviados para Portugal. Porque é que decidiram fazer as coisas desta forma?
O diretor [James Darrah] estava em Los Angeles. E como eu, a cenógrafa e o designer iluminação também lá estávamos, acabámos por produzir os protótipos — as primeiras amostras dos figurinos — lá. O James adorou-os e, como ele também participou no design, perguntou-me se podíamos acabá-los, ajustá-los e alterá-los lá, uma vez que toda a gente estava lá. E, por isso, fizemos assim.

Era mais fácil.
Em alguns pontos sim, em outros não. [Risos]. Gosto de manter o projeto no país onde estamos a trabalhar, mas desta vez não aconteceu assim. Mas todos os ajustes estão a ser feitos aqui, em Portugal. Assim é melhor.

Quantas vezes é que teve de viajar para Portugal?
Esta é a minha terceira viagem.

Tem sido complicado.
Sim, mas é ótimo. É uma cidade maravilhosa e um país muito bonito.

Como é que funciona o processo e criação dos figurinos? Por onde é que começaram?
A primeira coisa que temos de fazer é comunicar com o diretor musical porque somos nós que tornamos as suas ideias reais. O James Darrah é muito visual, e ele tinha uma ideia do que queria — queria algo simples, intemporal, moderno, talvez com uma pequena alusão à Grécia, mas que não desse a entender em que tempo a ópera se passava. Isso é algo de que ele realmente gosta, porque ele quer chegar à essência da história. Não quer algo demasiado decorativo. Ele queria que tudo se passasse num lugar muito escuro, parecido com um armazém.

O cenário parece uma fábrica antiga, que foi abandonada.
Sim, parece. E ele não queria que as roupas fossem espalhafatosas, que tivessem flores, ou algo do género. Queria que tudo fosse tão simples quanto possível. E depois pegámos nessas ideias e fizemos a pesquisa. Comecei por investigar a história, a sua origem, e porque é que uma história grega, do tempo de Agamémnon e da Guerra de Tróia, foi recontada no tempo de Gluck e se tornou tão popular. Porque é que se tornou tão popular escrever sobre os gregos no século XVIII.

Ou seja, olhei para influências da Grécia Antiga, para influências do tempo em que foi escrita por Gluck, e depois olhei para interpretações contemporâneas. Resultado: centenas de páginas com imagens, que depois mostrei ao James. Gosto de mostrar os desenhos pessoalmente porque assim consigo captar o que as pessoas sentem ao vê-los. Às vezes não precisam de dizer nada para darem uma resposta.

E comecei a desenhar a partir daí. E desenhei, desenhei e desenhei até que ele disse: “Oh, gosto desta ideia! É assim que vai ser”. E comecei a desenhar a mesma ideia, uma e outra vez, até que chegámos a algo que funcionasse. Comecei em junho e acabei os desenhos a meio de setembro.

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Os diferentes figurinos da ópera, desenhados por Chrisi Karvonides (© CHRISI KARVONIDES)

Não acha que é difícil fazer com que as pessoas se esqueçam de que esta ópera, Iphigénie en Tauride, é baseada numa história grega?
É uma tragédia grega e, é interessante, porque continuamos a ter tragédias terríveis hoje dia. Como o que se está a passar no Médio Oriente, com as pessoas que migram para a Grécia e que tentam entrar na Europa. Continuam a existir grandes migrações, tragédias, e histórias de mulheres que tentam atravessar as águas e que perdem os seus filhos.

Adoro história antiga — bem, adoro qualquer tipo de história, e é por isso que adoro estar aqui –, mas não quero que a ópera seja tão esotérica, tão decorativa que o público sinta que se passa noutro tempo, noutro espaço, e que não tem nada a ver com a sua vida. Adoro quando a arte, a música e a ópera fazem com as pessoas se revejam e que digam: “Eu sinto aquela dor.” E seria uma tragédia se os jovens não viessem à ópera. Penso que, ao fazer um projeto como os que o James faz, que muitos, muitos jovens, gostarão de vir à ópera porque é moderna e até cool. Desde que não se desrespeite o passado, não vejo nenhum problema nisso.

Mas ainda assim há muitos que pensam que a ópera é só para os mais velhos.
Veja a quantidade de jovens que vão para a escola para aprenderem a ser cantores de ópera, figurinistas, cenógrafos e diretores. É uma arte que não está a morrer.

E quando é que começaram a fazer os figurinos?
Primeiro começámos a fazer os protótipos, a procurar os tecidos e a pensar em como é que as íamos pintar. Depois, no final de novembro, recebemos as medidas. Começámos a fazer as roupas em dezembro e janeiro, e depois viemos para aqui no início de janeiro para as provas. Fizemos todos os ajustes aqui.

O Eyan Candini, que também é figurinista e que também é de Los Angeles — é o meu duplo aqui — esteve cá durante as últimas seis semanas. Trabalhou com a assistente daqui e depois foram para o sótão e pintaram os figurinos, enquanto estavam pendurados numa corda. Tiveram de os escurecer muito, porque no início estavam muito claros. Não ficavam bem com o cenário, e eles tiveram de os ajustar.

Depois trouxe a Maria, porque ela é uma pintora incrível. Ela é a única pessoa que conheço que consegue reproduzir exatamente aquilo que pintei. Já pintámos muito juntas (porque eu adoro pintar) e ela percebe o que quero sem ter de dizer muita coisa sobre a cor, o ritmo, a maneira como flui e sobre como será o produto final. O que ela faz é muito sofisticado. Já fizemos três séries juntas, mas ela trabalha muitos filmes grandes, como os Piratas das Caraíbas. Basicamente, cobrei-lhe um favor para a trazer. [Risos].

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O figurino de Iphigénie foi pintado manualmente com um aerógrafo construído de propósito (MICHAEL M. MATIAS /OBSERVADOR)

Há quanto tempo é que ela está em Lisboa?
Ela chegou na sexta e eu no domingo. E os figurinos têm de estar secos até às três da tarde de amanhã.

Tem sido uma correria.
É sempre assim… [Risos].

No total, quantas pessoas é que trabalharam nos figurinos?
Há uma mulher em Los Angeles, Annamarie von Firley, que faz reproduções de roupas antigas. Ela tem uma pequena fábrica na baixa de Los Angeles. Foi ela que fez todos os moldes e as roupas com a ajuda de outras duas pessoas. Portanto, três pessoas trataram da costura. O Eyan comprou os tecidos e a Maria fez os chapéus. Também fizemos muito tingimento em Los Angeles, antes de virmos para aqui.

Para além disso, precisámos de um sítio para tingir as capas, que são muito grandes e pesadas, e não conseguimos arranjar isso aqui. Também precisávamos de uma máquina de lavar especial, onde pudéssemos meter tanto tecido. Por isso, tivemos de levar as capas para Los Angeles na semana passada, tingi-las outra vez, e trazê-las outra vez esta semana.

As roupas também têm viajado muito.
Sim! É engraçado! Vivemos para aprender. Não voltava a fazer o mesmo.

Não? Porquê?
Não, preferia ter tudo aqui.

Num sítio só.
Sim. É muito complicado, porque nos esquecemos de certas coisas em Los Angeles, e eu esqueci-me de certas coisas aqui. É muito confuso.

Esta não é a primeira vez que trabalha com o James, o Cameron Mock [designer de iluminação] e a Emily MacDonald [cenógrafa]. Como é que se conheceram?
Eu também sou professora, dou aulas de figuração para teatro, cinema e televisão na UCLA [University of California — Los Angeles ]. A ironia é que eu fui professora da Emily na UCLA, e ela é extremamente talentosa! É inacreditável! Ela chegou a trabalhar para o Ikea, no início da carreira, e o que eu adoro nela é que ela arranja sempre uma maneira de encontrar a essência da história e simplificá-la. Mas continua a ser bonito e continua a contar a história. Não é apenas uma cadeira — ela continua a refletir o que é a história. E eu adoro isso na Emily!

E o Cameron é um designer de iluminação incrível. Os dois ajudam-se, porque são uma equipa. Por isso acho que eles têm o mesmo crédito no que diz respeito à cenografia.

Também conheci o James através da UCLA, mas ele já se tinha licenciado. Há cerca de dois anos, perguntou-me se queria fazer um projeto para a Filarmónica de Los Angeles, o [musical] 200 motels do Frank Zappa. Correu muito bem. Ele perguntou-me se o queria fazer porque o elenco ia chegar muito tarde. Ele disse-me: “Sabes, podemos só ter dez ou cinco dias para ter os figurinos prontos”. E pronto, é a história da minha vida por causa da televisão. Então disse-lhe: “Não há problema, consigo fazer isso”. Desde que haja dinheiro, consigo fazer depressa!

A Chrisi também fez os figurinos para a primeira temporada da série American Horror Story e para a série da HBO Carnival. Como é que surgiu essa oportunidade?
Trabalhei na American Horror Story por causa da minha amiga Lou Eyrich, que fez os figurinos das outras quatro temporadas. Somos muito chegadas. Ela teve um problema de saúde e perguntou-me: “Podes fazer isto por mim?”

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As roupas foram pintadas à mão por Maria no sótão do Teatro Nacional de São Carlos (MICHAEL M. MATIAS /OBSERVADOR)

Isso parece que está sempre a acontecer.
Sim! [Risos]. Fiz os figurinos, mas não foi fácil. Recebíamos os guiões cinco dias antes de começarem as filmagens. Às vezes recebíamos o guião no próprio dia, e apenas tinha umas quantas páginas. Isso não é o ideal. Na televisão, principalmente nas séries de época, costumam dão-nos o esqueleto da história e, geralmente, os guionistas tentam manter-se dentro desses parâmetros. A partir daí, posso construir guarda-roupas para as personagens principais. Por vezes, temos de construir tudo. Na Carnival foi assim.

Apesar de se passar no início dos anos 30, precisávamos de dez, 15 e, às vezes, 20 cópias por causa das sequências e de ter de filmar em dois sítios diferentes. Era de loucos! Por isso, tínhamos de encontrar uma peça original dos anos 30 e copiá-la. Depois, alguém como a Maria envelhecia-a para que se parecesse exatamente como o original.

A verdade é que a Chrisi tem trabalhado sobretudo em televisão. Como é que acabou numa ópera?
Oh, eu adoro ópera! Comecei na ópera, um dos meus primeiros trabalhos foi para a Ópera de Boston. A Maria também trabalhou para a Ópera de Boston, mas ela é dez anos mais nova do que eu. E o Eyan Candini trabalhou para a Shakespeare Company em Ashland, no Oregon. Temos todos formação no teatro clássico.

Depois da Ópera de Boston, trabalhei para a Ópera de Nova Iorque, que já não existe, e depois passei dois anos na Ópera de Santa Fé. Comecei como aprendiz. Aliás, estava a tentar ser uma aprendiz, mas tornei-me logo cortadora. A pessoa que fazia os moldes adoeceu, então viraram-se para mim e disseram: “Ok, não vais ser mais uma aprendiz. Agora vais ter de ser uma cortadora porque não temos mais ninguém!” [Risos].

Mas adoro ópera. Sempre achei que ia fazer ópera profissionalmente, mas estudei durante 12 anos, na escola e na faculdade, e os empréstimos para estudantes eram muito altos. Não tive outra alternativa — tive de fazer televisão para pagar os meus empréstimos. Agora estou numa posição financeira que me permite encontrar um equilíbrio entre televisão e ópera. Então, aqui estou.