O início do jantar estava marcado para as 20h15 mas, numa atitude muito pouco portuguesa, bem antes das 20h já se concentrava uma quantidade apreciável de comensais no exterior do antigo Odéon, ao lado do antigo Condes, em frente ao antigo Olympia e à vista do quase antigo, mas ainda moribundo, Ateneu Comercial de Lisboa. Podia confundir-se o magote, cheiroso, aperaltado e bem-falante, com uma excursão de delegados de propaganda médica / operadores de turismo / agentes de imobiliário. Mas não, eram apenas apreciadores de alta cozinha, dispostos a pagar 100€ por pessoa para tomar parte na mais recente série de jantares guerrilha do projeto Silver Spoon em Lisboa.

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O pré-jantar, debaixo de uma fachada que já viu dias melhores.
(foto: © Divulgação)

Sobre a Silver Spoon já se falou aqui e aqui, na antevisão de eventos prévios deste género. Para não se perder o balanço, eis uma explicação resumida do que se trata, roubada a um desses artigos: trata-se de uma empresa dinamarquesa fundada por Tiffany Ng, especialista naquilo a que chama guerilla dining — jantares temáticos que ocorrem sempre em locais secretos, divulgados apenas umas horas antes de acontecerem, e com menus que só os chefs conhecem, até começarem a ser servidos.

O passado do Odéon

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Inaugurado a 21 de setembro de 1927, o cinema Odéon foi, durante boa parte da sua existência, uma das salas de espetáculo mais imponentes e respeitáveis de Lisboa, onde se projetaram fitas clássicas do cinema nacional e internacional para quase 700 espetadores, distribuídos por plateia, dois balcões e camarotes, onde, segundo consta, Salazar tinha reserva em permanência. Vítima de uma lenta decadência, encerrou em meados dos anos 90, numa altura em que a respetiva tela já só exibia filmes pornográficos.

Ou seja, quando os participantes reservaram o seu lugar à mesa para um dos quatro jantares que aconteceram nas noites de 22 a 25 de junho não sabiam que o palco escolhido pela organização seria o do devoluto Odéon. Logo, desconheciam também que esta seria uma oportunidade única para se despedirem de um ícone da cidade antes da sua anunciada transformação em bloco de apartamentos, confirmada no local por fontes próximas dos atuais proprietários.

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No exterior, ainda antes de se abrirem as portas, não faltava quem comentasse a imponência da fachada, o rendilhado das varandas ou, numa toada mais insurreta, o crime que é deixar-se apodrentar um edifício com tanto carisma. Tiffany Ng, a mentora da Silver Spoon, fazia por descansar os mais desconfiados da estabilidade do edifício. “Não se preocupem, fizemos todas as inspeções necessárias. É provavelmente o local mais seguro onde já organizámos jantares em Lisboa.” O vodka sour, servido à chegada, ajudava a dissipar quaisquer preocupações.

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O Odéon, noutros tempos, ainda com o letreiro antigo e a fachada bem cuidada.
(foto: © Arnaldo Madureira / Arquivo Municipal de Lisboa)

“Quando estivemos em Lisboa da última vez já queria ter feito o jantar no Odéon. Mas na altura não consegui chegar até aos proprietários”, recordava Tiffany, ainda à frente das portas fechadas, escondendo os últimos preparativos. “Isto promete”, ouvia-se à sua volta. “E ainda não viram nada: esperem até chegar lá dentro”, retorquia a responsável, antes de explicar o conceito do jantar: The Dirty Model Edition, uma interpretação satírica dos estereótipos associados à indústria da moda.

O futuro do Odéon

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A manifesta riqueza arquitetónica — interior e exterior — do edifício não impediu que este chegasse a um estado tal de ruína que a Câmara Municipal de Lisboa teve de interditar o passeio à sua frente pelo risco de derrocada. Também não ajudou que fosse detido por uma sociedade com várias dezenas de participantes que chegou a consenso sobre a sua recuperação. Depois de se ter ponderado a sua transformação em espaço comercial, com a preservação de alguns elementos originais, foi adquirido por investidores que entregaram, já em maio deste ano, um pedido de licenciamento para a reconversão num bloco com 13 apartamentos e uma loja com uma área de 660 metros quadrados, que inclui a antiga boca de cena e teto do teatro.

“Ooohh”,”Aaaah”, “Uaaauu” foram três das interjeições mais ouvidas assim que se autorizou a entrada no Odeón. E apesar da visível degradação, o espaço merece-as, ainda que possa haver quem as tenha soltado só por cortesia à organização. A moldura do palco em relevo Art Deco, as galerias, a clarabóia ou o (que resta do) teto trabalhado são elementos que já não se associam às estéreis salas de cinema dos dias de hoje, que, salvo raríssimas exceções, têm menos personalidade que um caroço de abacate.

Com os convidados distribuídos por duas mesas corridas na antiga plateia da sala, o evento começou com uma espécie de desfile a partir do palco. Espécie porque se tratava de uma modelo e de um vestido único, com assinatura Storytailors, e a palavra desfile implica, em princípio, uma fila. Enquanto isso, no palco disfarçado de cozinha improvisada trabalhava uma equipa liderada por dois chefs, Pascal Meynard, do Varanda do Ritz, e Adrien Norwood, um californiano que passou por alguns dos restaurantes mais criativos da Europa, casos , por exemplo, do Geranium, em Copenhaga (três estrelas Michelin), ou do belga In de Wulf (uma estrela Michelin).

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Um registo do interior, com o relevo da moldura de palco bem visível.
(foto: © Observador)

Seriam Meynard e Norwood os responsáveis por um menu que, também ele, circulou pelo imaginário do mundo da moda — da entrada, Cocktail Party & Face Masks, onde a finger food se misturava com pequenas versões de cocktails clássicos (dry e vodka martini), à sobremesa, Black & Blue, à base de mirtilos, que o chefe norte-americano descreveu como a sua “versão de uma beat up model*. O momento alto seria um tártaro, designado por Skinny Bitch, apresentado debaixo de uma capa crocante de alcachofra de Jerusalém, com maionese de alho queimado, sementes de girassol e maçã. Tão alto, aliás, que soube a pouco. “É uma refeição de modelo e as modelos comem pouco”, brincava Adrien.

*(Entre os presentes ficou por esclarecer se queria dizer esmurrada ou esgotada, mas, ao mesmo tempo, ficou a esperança que se estivesse a referir à segunda hipótese.)

O mesmo Adrien, justiça lhe seja feita, veio à mesa no final da refeição, munido de uma caixa descartável, oferecer as sobras do tártaro e respetiva maionese aos interessados. Um ato generoso que contribuiu para que a noite tivesse final feliz, digno de todas as películas (incluindo as pornográficas) que passaram pelo Odéon ao longo da sua história. Depois, não se fecharam as cortinas, nem se leu The End. Mas também não foi preciso.

O Observador participou no jantar Silver Spoon: The Dirty Model Edition a convite da organização