“O quê, mais um filme baseado num livro da Jane Austen?”, desabafarão alguns à notícia da estreia de “Amor e Amizade”, do americano Whit Stillman, compreensivelmente agastados com o fluxo regular de versões para cinema e televisão de obras da escritora inglesa, que já chegou ao ponto de incluir paródias tontas como “Sense and Sensibility and Sea Monsters” ou “Pride and Prejudice and Zombies”, que foram livros antes de passarem à tela, o segundo dos quais pudicamente intitulado em Portugal, na sua incarnação cinematográfica, “Orgulho e Preconceito e Guerra”. Mas seja como for, peço atenção para “Amor e Amizade”, porque apesar de adaptar uma obra de juventude e menos conhecida da autora, “Lady Susan” (ela teria 19 ou 20 anos quando a escreveu) e só publicada postumamente, este pode muito bem ser o melhor filme feito até agora sobre um livro de Jane Austen. E no caso, um livro atípico, atrevida e maliciosamente “subversivo”.

[Veja o “trailer” de “Amor e Amizade”]

Escrita sob forma epistolar, tal como uma primeira versão de “Sensibilidade e Bom Senso”, “Lady Susan”, uma novela curta, é diferente de outras obras de Austen e contraria as convenções literárias da época, porque a sua heroína, Lady Susan Vernon, uma aristocrata, viúva recente e sem pecúlio, é manipuladora, intriguista e fura-vidas, além de altiva, bonita, inteligente e espirituosa, mal vista pelas mulheres e admirada pelos homens. Lady Susan anda a tentar casar rica, enquanto se envolve com o marido de uma das amigas, que a acolheu na sua própria casa. De passagem, procura ainda um bom marido para a filha Frederica, um pãozinho sem sal, com a qual embirra solenemente. Não contente com isto, ainda troça dos códigos morais, de compostura e de comportamento social do seu tempo, e faz ativamente gato-sapato deles. Uma mulher “escandalosa”, como se dizia então, em finais do século XVIII, inícios do século XIX. Mas que, como as mulheres da sua condição e do ecossistema social da época, e as heroínas austenianas em geral, anda a fazer por ter uma vida confortável, solvente e segura, à falta de também encontrar a felicidade doméstica.

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[Veja a entrevista com o realizador Whit Stillman]

Talvez para sublinhar a ironia de na história haver pouco de ambos, Whit Stillman decidiu chamar ao filme “Amor e Amizade”, o título de uma outra obra juvenil de Jane Austen. E teve a ideia brilhante de, para personificar Lady Susan, convocar Kate Beckinsale, que já passou dos 40 e que há 20 anos entrou numa adaptação televisiva de outro livro de Austen, “Emma”, no papel principal. Lady Susan Vernon é uma personagem quer serve a Kate Beckinsale como uma luva cara na mão de uma mulher elegante. Fazendo o melhor uso da sua beleza aristocrática e da sua ampla experiência dramática, Beckinsale interpreta Lady Susan (que veste sempre de luto) como uma tão distinta como resoluta predadora social e sentimental, que se sabe superiora não só à maioria das mulheres que a rodeiam (quase todas resignadas, submissas ou burras), como também aos homens (andam quase todos entre ser tontos ou maçadores), e os despreza. Mas que não pode deixar de ter a nossa admiração, pela sua graça, altivez (a cena em que escorraça um conhecido que teve a falta de educação de a interpelar em voz alta na rua é impagável), esperteza, descaramento e sentido de humor, por desafiar constrangimentos, humilhações e hipocrisias sociais numa altura em que as mulheres não o faziam, e estar determinada a tomar conta do seu destino sem se vergar a ninguém.

[Veja a entrevista com Kate Beckinsale]

Whit Stillman refere a natureza epistolar de “Lady Susan” filmando várias sequências onde há cartas escritas, seladas, enviadas, recebidas e lidas, e até reproduz pedaços de texto de algumas na tela como legendas ou intertítulos. E apesar do enredo quase nunca andar por espaços abertos, confinado como está a interiores de mansões e casas, cantos de jardins e carruagens, “Amor e Amizade” nunca é um filme claustrofóbico ou acanhado. Estamos sempre entretidos pelas movimentações e pelos esquemas de Lady Susan, enquanto ela e a filha passam de casa senhorial para casa senhorial (“Não vivemos em parte nenhuma, visitamos”, diz aquela, imperial) pela fulgurância dos diálogos e pela esgrima espirituosa, pelas constantes saídas cómicas das personagens, e pela variada caracterização destas, interpretadas por um competentíssimo ramalhete de atores e atrizes, familiares como Stephen Fry, Jemma Redgrave ou Chloë Sevigny na (única) amiga e confidente americana de Lady Susan, ou menos conhecidos mas impagáveis como Tom Bennett, que quase rouba o filme no papel do incomensuravelmente estúpido, bronco e inconveniente, mas riquíssimo, Sir James Martin, que tem uma cena de escangalhar a rir envolvendo ervilhas num jantar formal.

[Veja os bastidores das filmagens e ouça o realizador e o elenco]

Além de orquestrar sem falhas todas as movimentações e interações deste pequeno mundo, tal como Lady Susan orquestra as suas, Stillman consegue ainda, em “Amor e Amizade”, refrescar as convenções do “filme de época”, impedindo que a fita não só desabe sob o peso dos cenários opulentos (a rodagem foi na Irlanda), do guarda-roupa, dos “décors” e suas minudências, da recriação de comportamentos, e usos e costumes sociais, como também que as atenções do espetador não sejam desviadas da história para eles. Tudo aqui, do mais anacrónico adereço à mansão mais rica ou ao fato mais minuciosamente recriado, é secundário e é serviçal do enredo e das personagens. Não estarei longe da verdade se escrever que “Amor e Amizade” se vai tornar no filme pelo qual se medirão todas as futuras adaptações ao cinema de livros de Jane Austen. E que vai ser muito difícil tirar-lhe esse estatuto, lá isso vai.