“Sou médica, mas agora já me chamam escritora”, conta Katia Mecler. “Acho que escrevo bem, mas muito lentamente, por falta de tempo e porque a minha formação é outra.”

A psiquiatra brasileira está em Lisboa e promove o livro Psicopatas do Quotidiano, que acaba de ser publicado em Portugal. A edição brasileira saiu em agosto do ano passado e nos primeiros meses vendeu cerca de 25 mil exemplares, informa a autora.

Médica há quase três décadas no Rio de Janeiro, decidiu escrever sobre as “perturbações mentais que fazem parte do quotidiano e podem causar sofrimento” porque “o público leigo tem pouco acesso a livros sobre os transtornos da personalidade e do comportamento”.

Acrescenta: “Várias outras doenças psiquiátricas estão muito divulgadas e bem descritas, como o transtorno bipolar ou a esquizofrenia, são até muito faladas nos media, mas isso não acontece com os transtornos de personalidade.”

psicopatas_do_quotidiano

“Psicopatas do Quotidiano”, de Katia Mecler; ed. Casa da Letras; 223 páginas; 15,50€

Não estamos propriamente a falar de terroristas ou assassinos em série, antes de pessoas perfeitamente comuns cujo “comportamento inflexível e repetitivo” as torna de difícil convivência. E toda a gente tem características assim, sustenta a autora.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

De perto, ninguém é normal. Toda a gente tem as suas questões ligadas à anormalidade. Mas para diagnosticar um transtorno psíquico é necessário reunir uma série de sintomas que fazem parte de critérios específicos, são situações que envolvem o exagero de determinadas características e costumam vir acompanhadas de sofrimento.”

Muito expressiva na forma de falar e comedida nos gestos, a psiquiatra assume que “todas as pessoas têm uma ou outra característica que foge à normalidade”, o que não quer dizer que não haja gente sem quaisquer transtornos psíquicos.

“Nem todas as pessoas têm diagnóstico de transtorno psíquico, no sentido científico, mas é provável que ao longo da vida todos tenhamos algum transtorno em maior ou menor grau, ainda que leve.”

A afirmação desvia a conversa para um velho tema que surge sempre que se fala de psiquiatria ou psicologia: como se determina o que é ser normal?

De resto, no prefácio do livro, o psiquiatra brasileiro Miguel Chalub escreve que mais pessoas passaram a ser consideradas psicopatas na era do capitalismo comercial e industrial, porque quem não produz e não rende é visto como anormal.

Katia Mecler está disponível para elaborar, mas dá a entender que se trata de um tema estafado. “É uma discussão interminável”, introduz.

“Há várias formas de definir hoje a normalidade. Um dos critérios seria o estatístico: normal é o que não foge muito a um determinado padrão de comportamento que existe no meio social e cultural da pessoa. Aquilo que se desvia da normalidade estatística será uma anormalidade. Outro critério, por exemplo, é o sofrimento. Quando defino a normalidade, até para poder trabalhar, centro-o na noção de sofrimento. Nem sempre o próprio tem consciência de que adota um determinado comportamento que acarreta sofrimento para si e para o outro de uma maneira repetitiva”, explica.

Psicopatas do Quotidiano não é um livro de autoajuda, pois apresenta uma abordagem científica e técnica, e também não é um manual para médicos. Com o objetivo de chegar ao grande público, a autora recorre a exemplos do cinema, de séries televisivas e da literatura.

Bernardo Soares, heterónimo de Fernando Pessoa, é dado como exemplo de personalidade esquiva. A obra-prima de Franz Kafka, A Metamorfose (1912), aparece como um bom retrato de um indivíduo esquizóide. O protagonista da série House of Cards, Frank Underwood, é a típica personalidade antissocial.

A parte introdutória tem 56 páginas e é nesse início que se concentra a parte mais técnica. O restante livro está dividido em três capítulos principais que correspondem aos “transtornos de personalidade” estabelecidos pelo Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria, referência mundial na matéria.

As tipologias

Eis as “perturbações” abordadas no livro e o respetivo resumo, feito pelo Observador:

  • Grupo A
    – Esquizóide: Indivíduo “estranho, solitário, misantropo, deixa clara a sua aversão aos seres humanos”, como o Dr. House da série norte-americana;
    – Esquizotípico: Tal como o miúdo do filme O Sexto Sentido, é o indivíduo que tem “processos de raciocínio e experiências incomuns da realidade”, o que o coloca “numa fronteira ténue da normalidade”;
    – Paranóide: Com “grande desconfiança e suspeita em relação aos outros”, estas pessoas “acreditam que podem ser exploradas, maltratadas ou enganadas, mesmo sem o menor indício de que isso realmente vá acontecer”.
  • Grupo B
    – Anti-social
    : “Carecem de culpa e empatia”, por isso “seduzem, mentem, abusam, manipulam, agridem e transgridem”, como a personagem principal de O Lobo de Wall Street;
    – Estado-limite: A pessoa “parece viver numa montanha-russa de sentimentos”, caracteriza-se, entre outras coisas, por “comportamento suicida, sensação de vazio, raiva intensa”;
    – Histriónico: “A exibição é a regra, não importa o que é exposto”; são os “caçadores de atenção”, com “comportamento sedutor e exagerado”;
    – Narcísico: São “caçadores de admiração”, estão “sempre a almejar o topo, lugar que consideram ser-lhes destinado”, numa “procura excessiva de atenção.”
  • Grupo C
    – Dependente
    : Tem “dificuldade em tomar decisões quotidianas”, “falta de iniciativa”, “medo irreal de ser abandonado à própria sorte”;
    Evitante: Sentem-se “socialmente incapazes”, por isso “preferem o conhecido e a rotina de um quotidiano tranquilo”;
    – Obsessivo-compulsivo: Apresentam “padrões elevados de desempenho autoimpostos”, como o detetive Hercule Poirot, personagemde Agatha Christie, e são “extremamente autocríticos”, além de terem “preocupação excessiva com regras, organização e horários.”

Ao que explica Katia Mecler, nenhum destes “transtornos” é mais prevalente do que outro na população geral. Calcula-se que cada uma destas “patologias” atinja cerca de 10% das pessoas. Ainda assim, acrescenta, certas características destas “patologias” (não as “patologias” em si) são hoje muito frequentes na generalidade das pessoas.

“As características do Grupo B são cada vez mais observadas”, diz a médica, insistindo que “o que vai definir a patologia e o transtorno é o excesso de características, o verificar-se que a pessoa desde jovem se comporta assim, ou seja, que tem um padrão duradouro e repetitivo”.

KatiaMecler-003

Katia Mecler, a autora

Mas porquê o Grupo B (também designado “Cluster B”)? Porque a sociedade Ocidental “valoriza muito mais o ter do que o ser, é uma sociedade altamente competitiva e exibicionista, onde toda a gente tem de aparecer e destacar-se”, entende Katia Mecler. “É uma sociedade muito coisificada e centrada no consumo”, logo, certas características narcisistas ou antissociais, no sentido psiquiátrico dos termos, tendem a emergir.

Neste contexto, refere a médica, a utilização das redes sociais da internet assume foros de preocupação, pois “já há pessoas com quadros de compulsão”. “Quem estudar e investigar esta área nos próximos anos vai estar na crista da onda”, acredita.

Em rigor, quem dedica tempo considerado excessivo ao Facebook, Instagram ou Twitter está a mostrar sinais de dependência e compulsão que não são novos, pois poderiam estar presentes noutras práticas e consumos. Simplesmente, o acesso às redes sociais é muito fácil para a maioria das pessoas.

“Quando a pessoa para de investir em atividades habituais, perde interesse ou prazer em tudo, e passa a centrar-se apenas na droga que vai usar, no álcool que vai beber, nas compras compulsivas ou no uso da internet, passa a ser uma patologia”, afirma a médica. “Há pessoas que deixam de comer ou dormir e que vão tendo prejuízos na sua vida laboral, social e de convívio. Aí estamos a falar de anormalidade e grave prejuízo para a vida da pessoa”.

Qual seria então a dose certa no caso das redes sociais? “Não é uma verdade, é a minha opinião pessoal e profissional, mas acho que mais de duas horas por dia já é excessivo”, estabelece Katia Mecler.

“Num dia de 24 horas preciso de dormir sete a oito horas, tenho de ter tempo para estar com a família, para trabalhar e ganhar a vida, para fazer alguma ginástica… Mais de duas horas nas redes sociais acho que já retira tempo às outras coisas”, reflete.