Do russo Aleksandr Sokurov, o realizador que em “A Arca Russa” (2002) nos contou a história do Museu Hermitage, de São Petersburgo, num plano-sequência de 99 minutos, chega agora, em “Francofonia”, o elogio do Museu do Louvre – e, por extensão, de todos os museus – como grande, veneranda e sólida fortaleza que protege os tesouros da arte e da cultura, quer ocidentais, quer vindos de todas as outras latitudes, contra as muitas tempestades do mundo, entre invasões e revoluções. O filme abre com Sokurov na sua casa de Moscovo, a falar por Skype com o comandante de um navio de contentores que está a ser fustigado por um violento temporal em alto mar. Um dos contentores transporta obras de arte, e o comandante, tal como o cineasta, temem pela sua segurança. O simbolismo é algo óbvio, mas eficaz: os tempos estão difíceis, não deixem a cultura ir pela borda fora.

[Veja o “trailer” de “Francofonia”]

O filme, no entanto, passa-se quase todo no Louvre. Entre sequências fantasistas em que um espetral e entusiasmado Napoleão Bonaparte se passeia pelo museu gabando-se de o ter enchido de obras de arte saqueadas nas suas campanhas e posando ao pé de retratos seus, e uma Marianne ectoplásmica, histérica e a quem ninguém liga, não pára de gritar “Igualdade! Liberdade! Fraternidade!”, a câmara de Sokurov demora-se a admirar quadros e esculturas (o autor de “Mãe e Filho” e “Moloch” tem um fraco pela pintura dos séculos XVII, XVIII e XIX), e o realizador conta a história do museu. E junta-lhe a dos dois homens que, durante a II Guerra Mundial e a ocupação alemã de França, fizeram uma aliança para proteger os tesouros e as obras-primas do Louvre, que tinham sido na maior parte levados da instituição e guardados nas caves e adegas de vários castelos no campo.

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[Veja o realizador falar sobre pintura e cinema]

São eles o francês Jacques Jaujard, então diretor dos Museus Nacionais e do Louvre, que não fugiu para Vichy nem se juntou às forças de De Gaulle, permanecendo no seu posto; e o conde e oficial alemão Franz Wolff-Metternich (interpretados, respetivamente, por Louis-Do de Lencquesaing e Benjamin Utzerath), que chefiava a Kunstschutz, a unidade germânica encarregue de, durante as duas guerras, recensear, conservar e pôr a bom abrigo as obras de arte da Alemanha e as dos países ocupados. Embora separados pela origem social e pelo estatuto de ocupado e ocupante, os dois tinham lutado na I Guerra Mundial. E ambos eram homens de cultura, servidores fiéis e competentes dos seus governos e empenhados na preservação e proteção dos tesouros artísticos à sua guarda. Unidos pelo sentido de missão e pelo amor à arte, e filmados por Sokurov com as tintas sépias que lhe são tão queridas e enfatizam a impressão de tempo passado e arquivado, civil republicano francês e militar e aristocrata alemão mantiveram coeso e intacto o acervo do Louvre durante o conflito e até lhe acrescentaram algumas obras.

[Veja uma sequência do filme]

“Francofonia” é um filme de género fluido, ou não fosse de Aleksandr Sokurov. Deambulando despreocupadamente pelo espaço e pelo tempo, pela cultura ocidental e pela história de França e do Louvre, interpelando Tolstoi e Tchekov, passando de raspão pela I Guerra Mundial, pelo cerco de Leninegrado e pela memória sinistra de Estaline, meditando sobre o significado, o valor e a eternidade da arte, a fita tem um lado artesanal e outro experimental, é realista e fantasmática, faz reconstrução dramática e ilustração pedagógica, é documental e é ficcional, dá uma no cravo do rigor e outra na ferradura da subjetividade. É o que de mais próximo de um ensaio literário o cinema pode fazer.

[Veja um documentário sobre a história do Louvre]

A mensagem solidamente tradicional e humanista de Sokurov sobre o papel dos museus na defesa, preservação e divulgação da cultura e do património artístico, e dos valores intemporais da civilização ocidental e humana, vem, assim, metida num audacioso embrulho visual multiforme. “Francofonia” junta-se a “National Gallery”, de Frederick Wiseman, a “O Grande Museu”, de Johannes Holzhausen, e à série de televisão “Cathedrals of Culture”, que conta com Wim Wenders ou Robert Redford entre os seus autores, como um dos melhores filmes feitos recentemente sobre museus, a sua função e significado educativo, científico e cultural, e a sua importância como denominador comum civilizacional.