À frente de dois dos grandes grupos de construtores automóveis estão dois homens cujo vencimento tem estado sob fogo. Dois homens que se conhecem, que respondem ambos por Carlos e que já foram unha com carne na liderança da Renault. Mas a ambição e a vontade de mostrar serviço colocou-os em rota de colisão.

Um é o português Carlos Tavares, de 57 anos, que deixou de ser o número dois do Grupo Renault-Nissan, para assumir em 2014 o cargo de CEO do Grupo PSA, composto pelas marcas Citroën, Peugeot e DS. O outro Carlos, de apelido Ghosn, acumula três naturalidades (brasileira, francesa e libanesa) e, também, três cargos: é simultaneamente presidente e director executivo do Grupo Renault (Renault, Dacia, Samsung Motors), da Nissan e do conglomerado franco-nipónico, a Aliança Renault-Nissan.

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Amem-se ou odeiem-se, ambos são dois dos mais respeitados nomes na indústria automóvel. O português Carlos Tavares porque salvou da falência, em apenas 18 meses, o Grupo PSA. Ghosn porque está prestes a converter-se, aos 62 anos de idade, na mão de ferro capaz de forjar o inimaginável até há pouco tempo atrás: catapultar a Aliança Renault-Nissan para a liderança dos construtores mundiais, destronando de uma assentada os tradicionais três primeiros: Toyota, Volkswagen e General Motors. São uma espécie de super-heróis do “management” no sector automóvel, que auferem um rendimento compatível com os “milagres” que têm operado. Ghosn acumulou mais de 16,25 milhões de euros no ano fiscal de Abril de 2015 a Março de 2016, enquanto Tavares recebeu 5,24 milhões. Apesar da discrepância, nenhum dos dois foi poupado a críticas em relação aos rendimentos. Sobretudo por parte do Estado francês, que tem uma palavra a dizer sobre essa matéria, uma vez que é accionista minoritário em ambos os aglomerados industriais, detendo uma participação quer na Renault (19,73%) quer na PSA (14%). Neste último caso, em paridade com os chineses da Dongfeng Motors, pois cada um entrou, em 2014, com 800 milhões de euros para resgatar da falência o grupo que controla a Peugeot, Citroën e DS.

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Os ministros franceses das Finanças e da Economia, respectivamente Michel Sapin e Emmanuel Macron, foram as vozes do Governo que vieram a público pronunciar-se duramente contra os vencimentos dos responsáveis máximos pelos grupos automóveis locais. Em declarações à cadeia de rádio France Inter, Sapin afirmou que “se a PSA fosse uma empresa onde o Estado detivesse 30%, 40% ou 50%, o governo bloquearia essa decisão”, lamentando ainda que “os restantes accionistas não assumissem essa posição”. Segundo o ministro das Finanças, “atravessamos um período difícil e é necessário que os esforços sejam partilhados”. Já Macron ameaçou mesmo “legislar, caso o conselho de administração da Renault não retire as devidas ilações das consequências” do incremento remuneratório de Carlos Ghosn.

Declarações que acabaram goradas, com a oposição por parte do governo a ser ultrapassada por ambas as administrações. A remuneração de Tavares foi aprovada por 76,5% dos accionistas da PSA, ao passo que na Renault os 54% de votos contra de um órgão meramente consultivo acabaram por cair por terra com a aprovação da administração e do comité das remunerações.

Mas este assunto não está perto de estar encerrado. Adivinha-se mesmo nova celeuma e acusações a subirem de tom. Em causa, a forte probabilidade de estes CEO virem a ser premiados, em virtude dos bons resultados alcançados no corrente ano, dado que representam uma franca melhoria face ao ano transacto. O Grupo Renault, por exemplo, acaba de anunciar um incremento nas vendas de 13,4% no primeiro semestre do ano, bem acima da média do sector.

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Ganhar 15 milhões é justo ou um disparate?

Em média, o presidente de um grande fabricante de automóveis recebe, anualmente, 15 milhões de euros – valor conseguido, em grande parte, à custa dos prémios por objectivos previstos nos contratos. Ou seja, a indústria entende que mais vale pagar 15 milhões a um CEO que obtenha bons resultados do que 1 milhão a outro que perca dinheiro.

Em 2015, Carlos Ghosn recebeu 16,25 milhões – 7,25 milhões da Renault e 9 milhões provenientes da Nissan – e deverá aumentar consideravelmente esta verba no corrente ano, sobretudo se, agora que passa a controlar igualmente a Mitsubishi, ascender ao estatuto do maior construtor de automóveis.

Apanhada no meio da fraude das emissões poluentes, a Mitsubishi deverá anunciar este ano perdas líquidas de 1,2 mil milhões de euros, sensivelmente o dobro do que teve como lucro em 2015, sendo contudo os primeiros prejuízos nos últimos oito anos. Mas é com o seu volume de vendas que a Aliança Renault-Nissan conta para crescer dos actuais 8,5 milhões de unidades comercializadas anualmente para cerca de 9,5 milhões, valor que lhe irá permitir bater-se com os tradicionais líderes do “ranking” de vendas (os grupos Toyota, Volkswagen e General Motors).

Onde é que está o mérito de Ghosn nesta operação? Para além do que já poupou em sinergias na Aliança Renault-Nissan, é ele o cérebro por detrás das “nuances” deste negócio, que tem muito de estratégico. Tudo começou em 1999, quando a Nissan atravessava um período complicado e foi “salva” pela Renault, que desde então tem 43,4% da Nissan, com direito a voto, ao passo que os 15% que os japoneses detêm na Renault não lhes conferem direito a voto. É certo que foi a Nissan que adquiriu o controlo da Mitsubishi (comprou 34% por 1,9 mil milhões de euros, o que lhe permite nomear a administração), mas acaba por ser a Renault e Ghosn a comandar os destinos da futura tripla aliança. E a assumir os riscos associados.

Já o líder luso Carlos Tavares também teve de mostrar que valia cada cêntimo que recebe, com a agravante de ter de o fazer num curtíssimo período de tempo. O lisboeta assumiu o cargo de CEO da PSA no decurso de 2014, quando a empresa foi salva da falência pelo Estado francês e pela Dongfeng. Tavares reduziu custos, incrementou vendas, mas sobretudo organizou o grupo, definindo uma linha específica para cada uma das marcas, que entretanto passaram de duas a três, com a independência da DS face à Citroën. Os resultados não tardaram a confirmar o acerto da estratégia: em 2014, a PSA anunciou resultados operacionais positivos de 905 milhões de euros, bem melhores do que os 364 milhões de perdas registadas em 2013, ou dos 576 milhões negativos do ano anterior. Ainda assim, o grupo francês continuava no vermelho em matéria de resultados líquidos, agora com perdas de 555 milhões de euros, valor que, no entanto, era bem melhor do que os prejuízos de 2013, em que perdeu 2,2 mil milhões de euros. O ano de 2015 foi de regresso aos resultados líquidos positivos, o que não acontecia desde 2010. Pelo seu desempenho, Tavares recebeu 5,24 milhões de euros. Em contrapartida, deu uma notícia que só estava programada para 2017: o regresso aos lucros dois anos antes do previsto. Lucros “net” de 1,3 mil milhões, depois das perdas de 555 milhões no ano anterior.

É justo ou um perfeito disparate premiar a competência e os resultados? Diga-nos qual é a sua opinião.