Aos 81 anos morreu Garry Marshall, cuja abordagem à comédia se fazia sempre ao serviço de quem estava a ver e com o intuito de agradar, alguém que teve um impacto considerável na produção do humor até à actualidade. Nos obituários do realizador, actor, produtor e argumentista, há uma constante: é quase sempre mencionado como o homem responsável por “Pretty Woman”, ou “Um Sonho de Mulher”, mas Marshall, que nasceu no Bronx, Nova Iorque, em 1934, foi muito mais do que isso — ainda que esse seja um dos momentos mais marcantes da sua carreira. Aqui fica uma curta lista de (alguns dos) feitos de Garry Marshall que não envolvem Julia Roberts nem Richard Gere, muito menos ocorreram ao som de Roy Orbison.

O argumentista e criador

Marshall começou a carreira em Nova Iorque, a escrever piadas para gente como Joey Bishop, o cómico que era membro do Rat Pack de Frank Sinatra. Daí, passou para o “Tonight Show”, na altura com o seu segundo apresentador de sempre, Jack Paar. Mudou-se para Hollywood e escreveu para sitcoms como a seminal “The Dick Van Dyke Show”. Em 1966, ele e o seu parceiro de escrita, Jerry Belson, criaram “Hey, Landlord!”, a primeira sitcom de ambos. Apesar de só ter durado uma temporada, os dois voltaram a juntar-se para adaptar “The Odd Couple”, a famosa peça e filme escrito por Neil Simon, para a televisão. E aí correu tudo bem: durou cinco temporadas e ainda hoje é recordada com uma das melhores sitcoms de sempre.

[o genérico de abertura de “Hey Landlord!”]

A ela seguiu-se “Happy Days”, de 1974, um império que gerou vários spin-offs como “Laverne and Shirley” — com a irmã de Garry, Penny, como uma das protagonistas –, “Mork & Mindy”, com Robin Williams, ou “Joanie Loves Chachi”, com o mesmo Scott Baio que tem andado nas notícias pelo apoio a Donald Trump. Passada nos anos 1950, era baseadas nas memórias da infância de Marshall e tinha um cariz muito mais artístico ao início. Mas, à segunda temporada, as audiências não eram muitas e a abordagem mudou: passou a ser gravada ao vivo e a dar primazia ao riso e a agradar muito mais a um público mainstream, sem a pretensão da arte e da verdade. O protagonista passou a ser uma personagem secundária, o Fonzie de Henry Winkler, que num episódio de uma das épocas posteriores saltou por cima de um tubarão, dando origem à expressão “saltar o tubarão” (“jumping the shark”, em inglês, funciona bem melhor), que é basicamente quando uma série dura demasiado tempo e começa a inventar artifícios mirabolantes para manter os espectadores interessados. Há um óptimo texto do crítico de televisão Todd VanDerWerff sobre a vontade de Marshall em agradar aos outros e o engenho com que o fazia.

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[os melhores momentos de Fonzie, a personagem de “Happy Days”]

O actor

Para alguém que começou a carreira nos anos 1950 e nunca deixou de trabalhar, Marshall podia ter mais participações como actor no currículo, mas só nos anos 1980 é que começou a aparecer mais frequentemente em frente à câmara. Sem estar creditado, faz de bandido em “Goldfinger”, o terceiro filme da saga James Bond, e ao longo dos anos 1960 e 70 foi surgindo em pequenos papéis nas suas criações e produções, bem como em filmes dos seus colaboradores (aparece em “Grand Theft Auto”, a estreia na realização de Ron Howard, também actor em “Happy Days”, por exemplo), mas pouco mais. Em 1985, cumpre um dos seus papéis mais memoráveis: o clássico da comédia “Lost in America”, de Albert Brooks.

https://www.youtube.com/watch?v=3Eh8lDJpwZc

Sempre com o seu sotaque do Bronx e sem qualquer paciência para parvoíces, Marshall era perfeito a reagir e a interpretar figuras de poder, frequentemente executivos da indústria do entretenimento. Era algo que, mesmo sendo natural, contrastava com a candura que revelava em entrevistas. Nos anos 1990 e depois, apareceu em filmes como “Liga de Mulheres”, da sua irmã, ou “Soapdish”, além de ter começado a dar voz a desenhos animados como “Pinky and the Brain”, “Simpsons” ou “BoJack Horseman”. A persona intratável do cómico viria a ser usada memoravelmente em “Murphy Brown”, quando fez de presidente da estação de TV em que a protagonista trabalhava, e em “Louie”, a criação de Louis CK, em 2012.

https://www.youtube.com/watch?v=WPsjN2qQGvE

O realizador

Até 1982, Marshall era argumentista, produtor executivo e um ocasional actor, com créditos na realização apenas em pilotos falhados e poucos episódios das séries em que esteve envolvido. Tudo mudou com a estreia de “Young Doctors in Love”, ou “Jovens Médicos Apaixonados”, uma paródia ao estilo Zucker-Abrams-Zucker (os responsáveis por “Aeroplano”) de telenovelas passadas em hospitais. Com produção de Jerry Bruckheimer, o senhor da acção e das explosões, o primeiro filme de Marshall conta com Sean Young, de “Blade Runner”, e Michael McKean, de “This is Spinal Tap”, nos papéis principais. Demi Moore aparece brevemente. Marcou a primeira colaboração do realizador com Hector Elizondo, que, por estipulação contratual, apareceu em todos os seus filmes seguintes – Marshall referia-se a ele como uma espécie de amuleto de boa sorte.

A carreira foi evoluindo com filmes como “The Flamingo Kid”, com Matt Dillon, “Nothing in Common”, com Tom Hanks e Jackie Gleason – no seu último papel –, “Overboard”, com Goldie Hawn e Kurt Russell, muitos deles com premissas ridículas mas transformadas em algo pouco estranho pelo realizador, até chegar a “Beaches”, de 1988, com Bette Midler e Barbara Hershey, um clássico sobre a amizade entre duas mulheres ao longo de 30 anos que ainda hoje inspira tanto amizades na vida real quanto piadas em filmes como “The To Do List” ou “Spy”. O filme seguinte, o tal “Pretty Woman”, de 1990, porém, viria a mudar tudo e a transformar o par Julia Roberts e Richard Gere em ouro – voltariam a juntar-se nove anos depois a Marshall para “Noiva em Fuga”. O sucesso de Marshall com as mulheres não se fica por aí: em 2001, realizou o primeiro “Os Diários da Princesa”, com Anne Hathaway, sobre uma adolescente que descobre que é herdeira do trono de um reino fictício e seguiu-se uma sequela três anos depois. Os últimos filmes do realizador foram uma trilogia: “Dia dos Namorados”, “Ano Novo, Vida Nova!” e “Um Dia de Mãe”. Curiosamente, só três filmes do realizador é que o têm creditado como argumentista: “The Flamingo Kid”, “The Other Sister” e “Um Dia de Mãe”.

O descobridor de talento

“Hey Landlord!” iniciou uma tendência que se manteve até ao final dos projectos de Marshall: pôr no elenco improvisadores cómicos, como membros do mítico grupo The Committee, de São Francisco. Nomes como Richard Dreyfuss, Rob Reiner ou Sally Field apareceram em alguns episódios e James L. Brooks escreveu um episódio. Não ficaria por aí a ajuda a novos talentos, entre os quais se incluem a sua própria irmã. Ron Howard já era uma estrela em criança pela participação em “The Andy Griffith Show”, mas “Happy Days” mostrou-o em adulto e ajudou em muito a carreira do actor. O mesmo para Henry Winkler e vários outros membros do elenco. Antes do cinema, foi “Mork & Mindy” que tornou Robin Williams uma estrela no papel de um extraterrestre vindo de um planeta chamado Ork. Williams já tinha aparecido em televisão – fazia parte do elenco do programa de sketches “The Richard Pyror Show”, que durou apenas quatro episódios –, mas não era praticamente ninguém até, na audição para Marshall, o criador de Mork lhe ter pedido para se sentar e ele o ter feito com a cabeça na cadeira.

[veja aqui duas cenas de “Mork & Mindy”]

Foi aí que percebeu a força da natureza da improvisação que Williams era. E resultou. Mesmo a última trilogia do realizador, que, apesar do sucesso, não é propriamente o melhor trabalho que ele fez na vida, mantém uma certa frescura na abordagem ao elenco, com uma mistura de caras conhecidas e valores recentes da comédia que apareceram numa altura em que Marshall já tinha entrado na terceira idade. Numa óptima conversa no podcast “WTF”, de Marc Maron, em Maio, Marshall admitiu que, antes de Louis CK o ter pedido para entrar em “Louie”, não estava familiarizado com o trabalho do cómico. Mas esses filmes têm um misto de estrelas com gente com piada que denota uma certa atenção ao que se está a passar – alguém que aparece em episódios de “Sarah Silverman Program”, “BoJack Horseman” e “Brooklyn Nine-Nine” não é alguém desatento à comédia nem desinteressado em fazer parte daquilo que de melhor se faz na área. A curiosidade era grande, portanto. Num post de Instagram desta quarta feira, a cómica de stand-up Cameron Esposito, cujo primeiro filme mainstream foi “Um Dia de Mãe”, disse que Marshall a tinha posto no filme e tinha pedido para a ver a fazer stand-up e passado o tempo todo do espectáculo a partir-se a rir no meio “200 hipsters e lésbicas”.