São Jorge, o novo filme do realizador português Marco Martins, foi escolhido para integrar a seleção oficial do Festival Internacional de Cinema de Veneza, que decorrerá entre 31 de agosto e 10 de setembro. O filme, que irá competir na secção Orizzonti, será o único português a integrar o festival.

São Jorge assinala o regresso de Marco Martins a Veneza, onde não participava desde 2006, altura em que a sua curta-metragem Um Ano Mais Longo, escrita em parceria com o famoso guionista italiano Tonino Guerra, foi selecionada para o certame. Ao Observador, Marco admitiu estar “muito feliz” com a seleção, lamentando que o seu filme seja o único português a integrar o festival, que já vai na 73ª edição.

“É um processo longo de seleção dos filmes e depois a lista vai reduzindo e a expectativa vai crescendo. Estou muito feliz. Acho que é muito diferente um filme estrear em Veneza ou em Cannes ou estrear num festival qualquer. Representa a possibilidade de o filme ter uma carreira internacional. Dá mais visibilidade.”

São Jorge marca também o regresso do realizador português às longas-metragens. A última, Como Desenhar um Círculo Perfeito, estreou em 2009, há cinco anos. Desde então, Marco Martins realizou um documentário, uma curta-metragem e envolveu-se em vários projetos de teatro. “São de cinco em cinco anos!”, disse em tom de brincadeira, explicando que a demora se deveu ao longo processo de realização do filme.

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São Jorge 1

“Foi um filme muito difícil de fazer”, contou. “Houve um ano em que o Instituto Português do Cinema esteve fechado e que não houve concursos. Todo o processo de financiamento foi bastante complicado. E é um filme que teve uma escrita bastante longa, feita com base numa pesquisa feita junto de empresas de cobranças difíceis. Mas, claro, gostava de filmar de menos em menos tempo!

São Jorge é um olhar sobre os anos de intervenção da troika em Portugal e sobre a crise financeira que atingiu o país. No centro da trama encontra-se um pugilista, Jorge, há muito desempregado, que aceita um emprego numa empresa de cobranças difíceis para pagar as suas dívidas. Cruzando ficção com o documentário, Marco Martins recorrendo a atores profissionais, mas também a não profissionais porque “certas personagens não poderiam ser feitas por profissionais”. As pessoas reais, com a sua maneira de falar, com a sua gestualidade própria, não poderiam ser substituídas por atores. Não seria a mesma coisa.

“Não ia funcionar”, admitiu. “[Durante a fase de pesquisa,] fui conhecendo pessoas que queria mesmo no filme. Achei que se não o fizesse, ia fazer um filme mais fraco, menos forte. Fui recolhendo estas personagens e trazendo-as para o filme.”

Nuno Lopes, um reencontro há muito esperado

Para São Jorge, Marco Martins voltou a juntar-se com Nuno Lopes, ator com quem trabalhou no filme Alice, de 2005. Este, a primeira longa-metragem do realizador português, recebeu reconhecimento internacional e foi distinguido com o prémio Regards Jeunes do Festival de Cannes nesse ano. O filme recebeu ainda o Globo de Ouro para “Melhor Filme” e Nuno Lopes o de “Melhor Ator”.

Ao Observador, Marco Martins explicou que os dois nunca deixaram de trabalhar, continuando a colaborar no teatro. “Fizemos cinco peças juntos no meio deste processo todo e falámos sempre na vontade de trabalharmos juntos. Mas faltava a história certa.” A vontade era tanta (assim como o adiamento) que, a certa altura, Nuno Lopes decidiu que estava na altura dos dois se sentarem e pensarem num filme juntos.

“E foi aí que começou esta ideia”, contou Marco. “Na verdade, começou com um filme sobre um boxeur amador português. Mas depois começámos a pesquisar e apercebemo-nos que havia muita gente [pugilistas] que trabalhava em empresas de cobranças difíceis.”

O elenco de São Jorge conta ainda com a participação de atores como Beatriz Batarda (que também entrou em Alice), Gonçalo Waddington e Carla Maciel, entre outros.

Uma história sobre o Portugal contemporâneo

Quando Marco Martins e Nuno Lopes decidiram fazer um filme sobre um pugilista, o realizador pensou logo que queria fazer uma coisa “diferente”. “Há tantos filmes de boxe, que é difícil fazer um que seja diferente”, explicou. “Isso foi um passo essencial para a escrita do guião”, um projeto feito a seis mãos, com a colaboração de Mariana Fonseca (que fez toda a pesquisa) e de Ricardo Adolfo (co-autor do guião), amigo e escritor com quem há muito Marco sonhava colaborar.

“Os filmes são feitos por pessoas, e acho que encontrar as equipas certas de criação é fundamental. Andamos sempre a fazer essa pesquisa. Ando sempre a ver com quem é que posso trabalhar no próximo filme. E tinha uma vontade muito grande de trabalhar com o Ricardo.”

São Jorge 3

Marco encontrou essa coisa “diferente” no Portugal contemporâneo. “Quando terminei o meu segundo filme, Como Desenhar um Círculo Perfeito, achei que queria fazer um filme sobre o Portugal contemporâneo. Sobre aqui e agora, uma coisa que falasse sobre o que se estava a passar. Esse universo estava completamente longe de tudo o que víamos, tudo o que líamos”, salientou.

“Acho que o cinema, numa sociedade muito rápida, de notícias muito rápidas, tem um papel fundamental — o de registo de um tempo, de um espaço, de um estado social.”

Utilizando os anos da troika como pano de fundo, o realizador conseguiu trazer uma perspetiva diferente e mais atual para a história de um pugilista que se vê confrontado com os mesmos problemas que tantos outros portugueses. “Foi um período de grande agitação social, em que as pessoas começaram a pensar no que é o Estado Social, o salário mínimo, os rendimentos sociais. Achei que era um espelho perfeito destas pessoas que têm dívidas, que recorrem a empréstimos para pagar essas dívidas. Pareceu-me muito interessante. Nunca tinha feito um filme mais social, mais sobre atualidade.”

Como muitos portugueses, Jorge também é um lutador, no ringue e fora dele. Daí o nome, São Jorge. “Como era um boxeur, um guerreiro, [eu e o Nuno Lopes] pensámos que ele devia ter uma adoração pelo São Jorge e que orava sempre ao santo antes dos combates. Achei que era uma imagem bonita. Um título bonito.”

Atualizado às 13h38 com as declarações do realizador Marco Martins