“Esta vaga de incêndios não é propriamente uma surpresa. A memória das pessoas é que é relativamente curta”. A sugestão é de Paulo Fernandes, especialista em incêndios e investigador no Departamento de Ciências Florestais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Foram precisos apenas “dois dias” para arderem “50 mil hectares” e, por muito tentador que seja, não é possível justificar esta anormal vaga de incêndios exclusivamente com a “anomalia meteorológica” que se sente sobretudo no noroeste do país, para lá do Rio Lima. Não chega. Esta, diz o investigador, “é a prova provada de que não é preciso muito para o sistema quebrar“.

E quebrou porque o sistema de prevenção e combate a incêndios é estruturalmente desajustado, assume o especialista. “O país precisa de uma reforma estrutural na forma como se combatem os incêndios em Portugal”. Os “anos benignos”, em que as condições meteorológicas e ambientais foram menos severas, permitiram “disfarçar” as debilidades do sistema português, a anos-luz dos congéneres espanhol, italiano e francês, por exemplo, e transmitiu um “falso sentido de sucesso“.

Este falso “sentido de sucesso”, nas palavras do investigador, serviu apenas para esconder a “muita descoordenação” entre responsáveis e autoridades, a descoordenação também na forma como são utilizados “os meios disponíveis” e na adoção de estratégias mais eficazes no combate aos incêndios. Desde o início de 2000, “houve mudanças positivas”, mas foram “tímidas” e, não raras vezes, desajustadas. À cabeça, a desproporção do investimento feito nos meios e estratégias de combate aos incêndios, em detrimento do investimento necessário para a prevenção.

Em 2013, a Autoridade Nacional da Proteção Civil (ANPC) dava conta que o dispositivo de combate a incêndios tinha um custo previsto de 74 milhões de euros, enquanto a prevenção mereceria apenas um investimento de cerca de 20 milhões. Daí para cá, o desequilíbrio mantém-se. “O sistema de combate a incêndios está divorciado do sistema de prevenção“, sublinha Paulo Fernandes. Em situações de crise como esta os sinais desse desequilíbrio dão de si.

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É isso que diz também José Cardoso Pereira, professor catedrático do Departamento de Engenharia Florestal do Instituto Superior de Agronomia (ISA), ao Observador. “O sistema é vítima do seu próprio sucesso. O ênfase colocado no combate aos incêndios tem efeitos que a curto-médio prazo são perversos. Resolvemos o problema a curto prazo, enquanto acumulamos vegetação nas matas e florestas que depois de servem de combustível”, reitera.

Depois, continua José Cardoso Pereira, há uma certa “atração política de responder com reforço de meios de combate“, ao invés de um plano consistente de prevenção. “É mediaticamente mais atrativo”, aponta. “Vemos todos os dias os noticiários das oito a serem abertos com helicópteros Kamov no terreno. Mas não vemos noticiários a serem abertos com desempregados a limparem as matas”, exemplifica o investigador.

Para isto contribui também um “sistema apoiado em corporações de bombeiros” e em”grupos de pressão política” — com “interesses legítimos”, salvaguarda o investigador — que impele os decisores políticos a colocarem a tónica no reforço de meios de combate aos fogos, quando os esforços deveriam ser concentrados também na prevenção.

Não são de excluir, ainda assim, as características invulgares do território e do clima português, que ajudam a explicar, pelo menos em parte, o porquê de Portugal ter um número anormal de incêndios quando comparado com os restantes países da bacia do Mediterrâneo, como Espanha, França, Itália e Grécia. “A metade do país a norte do Rio Lima, o ‘Portugal Atlântico’, é a zona da Europa onde a vegetação cresce mais rapidamente“. Este ano, em particular, depois de um “inverno e de uma primavera chuvosos”, que “potenciaram ainda mais o crescimento da vegetação”, chegou um verão quente, “uma vaga de calor” a que se juntou, nos últimos dias, um vento forte. “Foi a conjugação fatídica“. Um cocktail explosivo.

Os dois investigadores ouvidos pelo Observador concordam noutro ponto: a atividade humana é uma dimensão fulcral que ajuda a explicar também o número elevado de ignições. “Essa zona do território português é marcada por uma intensa exploração agrícola. As pessoas utilizam o fogo na pastorícia, como ferramenta de trabalho“, muitas vezes de forma negligente, aponta José Cardoso Pereira.

Além disso, está enraizada uma certa “cultura de risco“, completa Paulo Fernandes. “As pessoas não têm perceção do risco em que vivem. Não limpam as áreas que envolvem as habitações. Não há uma cultura de autoproteção“.

Prevenção é a resposta. Mas não chega

Se o diagnóstico é complexo, as respostas possíveis são ainda mais complexas. “O combate aos incêndios é um puzzle, com várias peças por juntar. É preciso atacar em todas as frentes, mas de forma integrada”, admite Paulo Fernandes. O “ideal”, continua o investigador da UTAD, seria colocar a tónica no “reforço da prevenção e da gestão florestal. Mas isso requer muito trabalho e muito tempo”, sublinha. E é preciso encontrar respostas mais rápidas.

Logo à partida, é urgente fazer uma aposta decidida na especialização dos autoridades competentes e em campanhas de sensibilização e fiscalização. “É preciso criar um sistema de combate aos incêndios mais especializado. Em Portugal, continuamos a olhar para os incêndios numa ótica de proteção civil. Não há bombeiros florestais especializados, não existem engenheiros florestais suficientes“, capazes de compreenderem o comportamento do fogo e de aplicar os melhores métodos. “Espanha tem esses meios desde a década de 60“, compara o investigador.

José Cardoso Pereira ajuda a completar o raciocínio. O investigador acredita que Portugal continua longe das melhores práticas no que diz respeito ao uso do fogo controlado para evitar problemas maiores no futuro, na criação de uma rede sólida de faixas de gestão de combustível ou no uso do gado miúdo como técnica ambientalmente sustentável de remoção de vegetação, à semelhança do que já faz, por exemplo, o estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Em Portugal, as apostas que foram feitas nesse sentido foram “muito tímidas” e pouco significativas em termos de investimento.

Mas isso são respostas para o futuro. No presente, e apesar do estado de calamidade, a situação não deve agravar-se. “O mais provável é que nos próximos dois, três dias a situação se desagrave”. As altas temperaturas, que tanto têm dificultado o trabalho dos bombeiros, devem diminuir. Mas os estragos estão feitos. “Em média, 80% da área que arde num ano arde em 10/12 dias“, lembra José Cardoso Pereira. As próximas horas serão críticas. Depois, prevê-se uma acalmia. No entanto, conclui o investigador, “ficou provado que quando as coisas correm mal, correm realmente mal“. Resta saber como — ou quando — será a próxima vez.