Em 1977, a Walt Disney estreou “Meu Amigo o Dragão”, um filme musical infantil passado nos EUA do início do século XX, onde um órfão foge do seus cruéis pais adotivos, acompanhado por um amigo mágico: um dragão bonzinho com o dom da invisibilidade. Combinando imagem e atores reais com um dragão desenhado, e com um elenco cheio de veteranos, “Meu Amigo o Dragão” foi um sucesso modesto para a Disney e ficou entre os filmes menores do estúdio. Por isso, houve alguma surpresa quando, paralelamente à sua política recente de filmar versões “realistas” de clássicos da animação da casa, a Disney anunciou uma “reinvenção” desta fita pouco notável, agora sem canções, com outro tom narrativo, uma história muito retrabalhada e um dragão “new look”.

[Veja o “trailer” de “Meu Amigo o Dragão” (1977)]

Meu dito, meu feito, e aí está “A Lenda do Dragão”, realizado por David Lowery, vindo do cinema “indie” (“Amor Fora da Lei”). É a boa surpresa deste verão em seca de filmes potáveis, a versão aerodinâmica e podada de música e comédia tonta do original, rodado em 1977 pelo veterano Don Chaffey. A história foi mudada de cima a baixo e relocalizada para 1982, nas grandes florestas do noroeste dos EUA (na realidade, na Nova Zelândia, onde decorreu a rodagem) e até a premissa-base sofreu algumas alterações, ao ponto dos dois filmes muito pouco terem a ver um com o outro. Mesmo o dragão, que espirra muco verde mas pode cuspir fogo quando se zanga, passou de desenhado à mão para criado digitalmente nos computadores da Weta Workshop de Peter Jackson.

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[Veja o “trailer” de “A Lenda do Dragão”]

Pete (Oakes Fegley), o pequeno herói, tem cinco anos e vai de carro em viagem de férias com os pais. Um acidente no meio de nenhures deixa-o órfão e sozinho nos bosques, até encontrar um pacífico e patusco dragão verde, que o adopta. Pete dá-lhe o nome de Elliot, o mesmo do cãozinho do seu livro de histórias favorito. Seis anos depois, Pete vive na floresta como um jovem selvagem, protegido por Elliot. Um dia, é visto por Grace (Bryce Dallas Howard), uma simpática e maternal guarda-florestal, pela sua filha Natalie (Oona Merchant), que tem a idade de Pete, e por Jack (Wes Bentley), madeireiro e noivo de Grace, que depois de algumas peripécias o conseguem levar para a vila. E aí as coisas complicam-se, porque Pete sente a falta de Elliot, e Elliot de Pete, e por isso o dragão vai à procura dele.

[Veja a entrevista com Oona Merchant e Oakes Fegley]

David Lowery conseguiu filmar uma fantasia infanto-juvenil bem ancorada num ambiente realista, evitando que a presença do dragão se torne obviamente inverosímil (de há muito que na região correm histórias sobre o dragão que viveria nos densos bosques, e o pai de Grace – interpretado à medida por Robert Redford – até o viu, mas só os miúdos acreditam nele). O facto da história se passar no início dos anos 80, quando ainda não havia tecnologias de deteção e comunicação muito sofisticadas, nem Internet, e numa zona remota e florestal, ajuda a que o dragão – que além de verde, ideal para se camuflar na floresta, tem o dom da invisibilidade, não o esqueçamos – passe indetectado e despercebido.

[Veja a entrevista com o realizador David Lowery]

Para um filme fantasioso sobre a amizade entre um rapazinho e uma criatura fantástica, “A Lenda do Dragão” é invulgarmente investido de sensibilidade em termos de relações humanas, desde a que se forma lentamente entre o órfão Pete, que esqueceu os pais e perdeu os afectos familiares, e aqueles que o acolhem, à que une Grace ao pai, passando pela agitada conexão fraternal entre Jack e o seu irmão Gavin (Karl Urban), que quer caçar o dragão e tornar-se famoso à custa dele. E a relação entre Pete e Elliot, ternurenta sem ser sentimentalona e com dramatismo e comicidade em porções certas, é reminiscente da que em “O Livro da Selva” (recentemente refilmado pela mesma Disney, com grande sucesso, e com um ator de carne e osso posto entre animais digitais) une Mowgli aos bichos que o receberam no seu “habitat”.

[Veja a entrevista com Bryce Dallas Howard]

“A Lenda do Dragão” é todo ele feito de equilíbrio virtuoso: entre fantástico e realismo, entre espetacularidade e intimismo, entre encantamento e verosimilhança, entre efeitos digitais e atores reais, entre sentimento, aventura e comédia. É um filme na melhor e mais clássica veia da Walt Disney, o mesmo é dizer ideal para toda a família ir ver neste verão do nosso pouco contentamento cinematográfico. Entretanto, David Lowery já está apalavrado para rodar a versão com atores de carne e osso de “Peter Pan”.