Título: O Caso do Camarada Tulaev
Autor: Victor Serge
Editora: E-Primatur
Páginas: 356

O Caso do Camarada Tulaev

Frequentemente, a intelectualidade comunista e de alguns setores de esquerda justificavam o seu apoio ao regime soviético, alegando desconhecer os crimes perpetrados por José Estaline e seus carrascos, mas tratava-se de uma justificação esfarrapada. Só não sabiam isso porque não procuravam saber.

O livro “O Caso do Camarada Tulaev”, do escritor belgo-russo Victor Serge, foi escrito e editado no Ocidente no início dos anos 40, não sendo o primeiro onde este autor, então figura proeminente do movimento comunista internacional, denunciava a criação do aparelho burocrático e repressivo que José Estaline criava na URSS. Esta sua obra apenas foi publicada na Rússia em 1992, após a queda da União Soviética.

Não obstante a sua vida e obra estar ligada à luta política, seria injusto reduzi-lo a um “autor político”. E a prova disso é este romance, que vai da aventura à comédia, do policial ao ensaio político, sem faltarem os episódios de amor e de traição. Ele deixa-nos um grande retrato da formação da ditadura soviética através da descrição da ascensão e queda política dos “velhos bolcheviques”. Victor Serge acompanhou por dentro e descreve, por exemplo, a tática estalinista, que mais tarde foi formulada por Orwell no romance 1984: “Quem dirige o passado, dirige o futuro; quem dirige o presente, dirige o passado”. Na URSS, essa política deu origem ao aforismo: “não há nada mais inconstante do que o nosso passado”.

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Este processo teve o seu ponto culminante durante os Processos de Moscovo de 1936-1938, durante os quais muitos antigos dirigentes bolcheviques, muito mais importantes no processo que conduziu à revolução comunista de 1917, foram acusados de “apoiantes do imperialismo e do fascismo”, reconheciam em “tribunais públicos” que tinham cometido inconcebíveis, como é o caso que é descrito neste livro.

Mas como é que um escritor francófono se vê participante dos acontecimentos que, como escreveu o escritor norte-americano, John Reed, “abalaram o mundo?

Victor Serge (cujo verdadeiro apelido é Kibaltchik) nasceu em Bruxelas em 1890, numa família de emigrantes políticos russos. Um dos seus parentes, Nikolai Kibaltchiki, foi um dos participantes do atentado terrorista que levou à morte do czar russo Alexandre II em 1870. A carreira política de Serge foi bastante atribulada, tendo começado a sua carreira política nas fileiras dos anarquistas francesas na véspera da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

O escritor e político viu-se na Rússia revolucionária em 1919, quando o governo francês o trocou por um oficial francês, capturado pela TcheKa (polícia política soviética) em São Petersburgo. Victor Serge aderiu ao Partido Comunista da Rússia (bolchevique) e realizou importantes tarefas para a Internacional Comunista, organização que visava levar o comunismo a todo o mundo.

À medida que Estaline impunha a sua ditadura, Serge começou a afastar-se da atividade política direta e a dedicar-se à literatura. Porém, não obstante isso, foi acusado de ligações à Oposição de Esquerda (ligada a Lev Trotksi) à ditadura e desterrado para Oremburgo, na Ásia Central, onde passou vários anos no início dos 1930. Foi libertado e autorizado a emigrar graças a pedido do conhecido escritor francês Roman Roland durante um encontro com José Estaline. O ditador soviético utilizava agilmente esse tipo de “idiotas úteis” para branquear o seu regime na Europa. Em 1936, tenta juntar-se a Trotski, mas divergências ideológicas rapidamente levaram a uma rutura de relações entre eles.

Vivendo em condições materiais muito difíceis, Victor Serge morre no México em 1947, não se excluindo a possibilidade de ele ter sido mais uma das vítimas dos serviços secretos soviéticos.

Um tiro na noite fria de Moscovo

Victor Serge deixou-nos uma basta obra política e literária, nomeadamente o livro “A vida e a morte de Lev Trotski”, em conjunto com Natália Sedova, segunda esposa de Trotski. Porém, “O Caso do Camarada Tulaev” é talvez a obra de maior destaque, pois constitui um quadro diversificado e vivo da sociedade soviética dos anos 30.

Numa das noites frias de Moscovo, um jovem armado encontra-se cruza-se acidentalmente na rua com um dos carrascos estalinistas Tulaev, que regressava a casa do trabalho. O jovem Kostia nada satisfeito com a realidade criada pelo regime comunista teve uma ideia inesperada: tirar uma pistola que trazia no bolso, assassina-lo e fugir do local do crime.

Esta morte adquire imediatamente um caráter político tão grande era a paranoia do regime estalinista. Perante o terror de novos actos terroristas, Estaline põe todo o aparelho securitário a descobrir mais uma “conspiração” da oposição política, mas cujo objetivo é organizar mais um processo contra os seus opositores. Porém, o plano acaba por falhar devido ao seu grau de absurdo.

O desenrolar da ação permite ao autor analisar as mais amplas camadas da sociedade soviética. Desde o pequeno funcionário Romachkin, passando pelo professor de História Rublev e pelo general Kondratiev, herói da Guerra Civil Espanhola, até Makeev, dirigente de uma organização regional do Partido Comunista extremamente cruel, fazer retratos dramáticos e realistas deixando Kafka para trás.

Além disso, Serge aponta pormenores quotidianos que enriquecem a obra. Por exemplo, a jovem que fugiu da fome na sua aldeia, provocada pela coletivização, e foi obrigada a prostituir-se em Moscovo por apenas alguns rublos. Ou esta pergunta lançada por alguém num dos mercados de Moscovo: “Acredita realmente que há de chegar o dia em que o Homem deixará de ter piolhos? Socialismo verdadeiro, pois então, com manteiga e açúcar para todos? E, talvez, para nossa felicidade, piolhos macios e perfumados que nos façam festas?”.

Sobre todo este mundo caótico, onde se combinam de forma quase inacreditável esperança, fé e dor, paira a força invisível que devora não só os inimigos reais, mas também os marginais. As revoluções devoram os seus próprios filhos, ou como escreve Victor Serge: “Quando, durante a noite, na casa comunal, soava a campainha, os habitantes diziam: “Vieram prender um comunista”, como diriam antes: “Vieram prender um fabricante ou um antigo oficial do regime czarista””.

Uma crítica implacável do estalinismo feita não por um escritor e pensador de direita, mas por um daqueles que acreditava nos “ideais originais” da revolução comunista de 1917 e aos quais se manteve fiel até ao fim da vida. Resumindo, um grande romance.