Como não podia deixar de ser, a morte dum editor não tem cabimento nos destaques noticiosos, mesmo que o seu trabalho relevante nos tenha deixado algo tão distintivo e valioso como várias centenas de livros bons ou muito bons — que fisicamente hão de perdurar muito para além de quem os escreveu, publicou e leu, e fazem da arte editorial um dos ofícios mais nobres. Mas não foi só nos ecrãs televisivos: sem nada ter a ver com constrangimentos ou especiais sensibilidades diante da Morte, é ensurdecedor o silêncio dos mandarins da edição portuguesa perante esse facto consumado, silêncio esse que segue pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, passa pela Sociedade Portuguesa de Autores, cruza a Biblioteca Nacional e espalma-se na fachada do Instituto Camões, onde é especialmente escandaloso, pois o editor agora defunto foi um pródigo e precursor protagonista dos proclamados intercâmbios culturais que esse organismo tutela mas claramente não desenvolve nem facilita.

Não é por discrição, pudor ou distração (aconteceu com Vítor Silva Tavares em Setembro do ano passado), é tão-só a prova mais retinta dum desmembramento da cena cultural, em que as posições de poder — e respetiva soberba — prevalecem sobre o desejável espírito de corpo duma comunidade que se reconhecesse enriquecida por diferenças e contrastes. A Presidência da República e o Ministério da Cultura publicaram notas de pesar, e alguns autores e amigos divulgaram tributos pessoais (o de Tatiana Salem Levy e de Isabel Lucas são particularmente expressivos). Fizeram bem.

André Fernandes Jorge, que ontem sucumbiu a um cancro linfático, deixa um legado livreiro construído com os meios de fortuna primeiro cedidos e mais tarde herdados de seu pai, um farmacêutico do Bombarral, que ele aplicou ao longo de quase trinta anos na construção esforçada e quase utópica dum catálogo literário de primeira categoria, atento aos grandes clássicos tanto quanto à contemporaneidade.

O trabalho de um editor — como todos, não isento de equívocos e erros de avaliação — não é só o de passar a tantos outros os livros que ele pessoalmente gostou de ler: exige uma capacitação oficinal que não é inata mas vai sendo formada num ambiente colaborativo com escritores, tradutores, designers e outros — e é isso que faz das editoras de pequena dimensão autênticos e gratificantes laboratórios culturais e da sua fábrica de livros um quotidiano de trabalho efetivo, não simplesmente delegado, como ocorre nos empórios do papel impresso, para colaboradores de quem não se conhece o rosto e praticamente se escraviza com condições laborais sem a mínima lisura, dignidade ou compaixão, que é hoje o atual retrato inquietante desta indústria.

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Podemos por isso dizer que a lição dum pequeno editor, como André Fernandes Jorge exemplarmente foi, é também essa qualificação humana do trabalho polido a várias mãos, em defesa e louvor dum património civilizacional — em construção contínua — a que por comodidade chamamos literatura e edição. É por aqui, e não é pouco, que deve começar o elogio de qualquer editor de livros digno desse nome, que é ainda alguém que, observando o panorama em seu redor, identifica o que falta fazer e faz.

Pode até reconhecer-se que a sua tarefa e prestigiante evidência foram imensamente facilitadas pela desertificação instituída como a bitola baixa que caracteriza a nossa sociedade, tão pouco exigente consigo própria, em que os livros, ainda hoje “sacralizados”, não são tidos como “bens de primeira necessidade” e a rede de bibliotecas públicas se parece mais com um programa de construção civil do que com um instrumento de efetiva, atualizada e instigante partilha cultural que possa ser também, concomitantemente, um sustentáculo de projetos editoriais relevantes. Mas isso não diminui o seu gesto, muito pelo contrário, pois, para se perceber (pois há ainda quem não tenha percebido!…) como a vida dos pequenos editores foi tornada extremamente difícil — praticamente suicidária -, é preciso saber dos circuitos concentrados e protocolos draconianos de distribuição e venda livreira, e também avaliar os efeitos da massiva pressão dos grandes grupos editoriais sobre as aliás exíguas páginas culturais da nossa “comunicação social”, que de tão pouco independente, atenta e qualificada se torna quase insensíveis às iniciativas daqueles editores ainda capazes de surpreender.

Nas suas memórias, o editor italiano Giulio Einaudi escreveu que a sua vida e o seu trabalho eram uma e só coisa. Também assim André Jorge, editor dedicado.

Com o decorrer do tempo e o crescente canto da sua Cotovia, André Jorge foi deixando de ser “o irmão do João Miguel Fernandes Jorge”, inspirado poeta e crítico de arte nas últimas décadas do século passado, com quem iniciara o projeto da editora, para se tornar um editor respeitado pela excelência das suas escolhas e pela elegância sóbria das montras da sua livraria-sede, que não deixava indiferente quem passasse pelo edifício da antiga livraria Opinião, à Trindade, uma escolha simbólica, também política. O grafismo inicial, concebido por João Botelho, grande amigo de João Miguel e de Joaquim Manuel Magalhães (alguém se lembra deles, alguém os esqueceu?!), também afirmava a Cotovia como algo distintivo, facilmente identificável. Livros limpos, produzidos com bom papel, tipo e mancha gráfica exibiam padrões estáveis e amadurecidos — agradáveis a leitores de grande fôlego — que nessa altura não era comum encontrar no nosso meio.

Tudo isso ajudou a Cotovia a ganhar boa posição junto de outras duas editoras já estabelecidas e com as quais criou evidentes afinidades, a Assírio & Alvim (agora côté Sistema Solar) e a Relógio d’Água, ao ponto de terem partilhado livros num inovador projeto de grandes clássicos de bolso, num esforço notório para elevar o padrão literário quando a política pública de incentivo da leitura acentuava o mais em detrimento do melhor.

A clarividência do trabalho de André Jorge com Frederico Lourenço nos clássicos greco-romanos antigos, com Abel Barros Baptista na literatura brasileira e com Jorge Silva Melo no teatro merece elogios rasgados, mas destacá-la pode eclipsar injustamente o mérito de muitas outras escolhas de autores ou obras que sem a Cotovia ainda não teriam sido lidos. (Referir nomes seria só a demonstração duma preferência pessoal, à qual não atribuo valor neste contexto).

Apesar das muitas diferenças geracionais, podemos compará-lo, e à incerteza do destino da Cotovia a partir de agora, a Rogério de Moura (1925-2008) e os seus Livros Horizonte, também ele um grande editor que apostou — e são tão raros… — os seus meios de família na criação de uma biblioteca capaz de ajudar a transformar o ambiente cultural do seu tempo, propósito nobre dos editores que merecem ficar na memória. E André Fernandes Jorge foi certamente um deles.